domingo, setembro 11, 2005
CONSTITUCIONALISMO
«A propósito de Constituições, do seu valor teórico e prático, li, outro dia, a afirmação de que a Constituição portuguesa de 1826, vulgo Carta Constitucional, «governou o País durante mais de oitenta anos, em plena liberdade política e civil, nunca prejudicando, e antes fomentando a riqueza material e o bem-estar moral dos cidadãos».
Esta tentativa de reabilitação fez-me sorrir. Esqueceu ao autor da afirmativa citar os Actos adicionais. E, pelo visto, também lhe não lembrou que, por ocasião da queda da Monarquia, em 1910, os partidos monárquicos consideravam a Carta Constitucional uma coisa que precisava de ser pintada, reformada, substituída. Essa convicção intensificou-se pouco a pouco, alastrou pouco a pouco, e dentro de algum tempo, entrava na Consciência dos portugueses, de tal maneira que se fez o 5 de Outubro - uma bernarda de caserna e de rua, facilimamente dominável por um esquadrão da Guarda, se não tivesse a apoiá-la, numa cumplicidade manifesta, toda a gente que tinha o ouvido direito cheio das promessas dos republicanos, e o ouvido esquerdo atulhado das críticas que os monárquicos faziam da Monarquia.
A Carta Constitucional introduziu-se em Portugal, sem corresponder a qualquer necessidade do País. Foi obra do Maçonismo e da Revolução - quer dizer, do estrangeiro. O levantamento que se operou contra ela, e que terminou bruscamente em Évora-Monte, é das páginas mais viris da história de Portugal, apesar das defecções individuais conhecidas. Foi verdadeiramente o levantamento em massa da Nação, em defesa de Deus e do Trono, que teria feito evaporar os bravos do Mindelo, se estes não tivessem atrás de si o estrangeiro, a sustentá-los. Encerrado o ciclo da guerra civil, por cansaço, que não por convencimento da Nação, e abrandadas as disputas à mão armada a que a Carta Constitucional deu nascimento, dentro dos seus próprios partidários, entrou-se numa era de fomento deveras notável - de que ainda hoje, até certo ponto, vivemos, em que se traçaram vias férreas, se lançaram estradas, e se fundaram empresas. Seguindo-se o preceito do Fontes, regou-se o País com libras. Os empréstimos sucederam-se. Mas como os governantes são honrados, o dinheiro que entrava no País era aplicado ao benefício material do mesmo País.
Isto, por virtude da Carta Constitucional?! Afirmá-lo é uma coisa sem pés nem cabeça. Por muito grande que tivesse sido essa época de desenvolvimento material - ela não tem comparação com a dos Descobrimentos. E a Nação encheu quase dois séculos, nessa empresa magnífica, eterna, trazendo pela mão mundos novos à Civilização antiga, e abrindo a esta horizontes inéditos e ilimitados. Caiu exausta em Alcácer, levada no sonho luminoso do seu chefe imortal. Mas a obra que realizara, essa ninguém mais lha arranca, e enquanto houver mundo, o nome de Portugal ninguém o apagará da História. E todavia, não havia Carta Constitucional, com a Liberdade política e civil inerente...
A obra de fomento realizada pela Nação durante a segunda parte do século XIX, não tem nada que ver com o papel que, em 1826, o estrangeiro lhe meteu nas mãos, e que ela sacudiu, mas que em 1834, o mesmo estrangeiro lhe impôs à força. Essa obra de fomento realizou-se a despeito da Carta Constitucional. E porquê? Porque, em regra, ninguém fazia caso dela. Quando se começou a fazer caso dela, isto é, do seu espírito, da filosofia que a inspirava, aí por volta de 1880 - entrou-se no primeiro círculo da Demência política.
E duas coisas ressaltaram logo: a letra da Carta Constitucional, démodée, e a sua alma procurando corporizar-se, e revestir nova forma. A alma da Carta Constitucional era a Revolução: a letra fôra a máscara. A máscara já não servia. A alma queria outra. Essa outra, deu-lha a República. A Carta Constitucional é a primeira forma da Constituição republicana.
A Constituição republicana é o desenvolvimento da Carta Constitucional.
Que trouxe a Carta Constitucional ao País?
Em que aumentou ela o Património nacional?
Vejamos:
São três as categorias das manifestações da vida de uma Nação: morais, espirituais e materiais.
Moralmente, a Carta Constitucional, regalista, introduziu a política na igreja e transformou os párocos em galopins eleitorais; espiritualmente, isto é, culturalmente, não deu mais do que já havia. Tivéramos as Universidades de Coimbra e de Évora florescentíssimas. Vinham do antigo regime, as Academias, onde tanto se trabalhou.
Sob o ponto de vista material, não me consta que a Carta Constitucional contenha disposições que lhe digam respeito.
Que trouxe, então, a Carta Constitucional ao País? Trouxe-lhe o Liberalismo, isto é, a Anarquia em potência, como diriam os Escolásticos. Introduziu no Estado um espírito novo, uma Doutrina nova, uma Filosofia nova - o Liberalismo.
Ora o Liberalismo é como a formiga branca, numa casa: roe, discretamente, em silêncio. Quando a gente menos espera - a casa está arruinada pela formiga branca, a Nação está morta pelo Liberalismo. A gente vive na casa, faz obras na casa, diverte-se na casa - e a formiga branca roe, roe, roe. A Nação traça estradas, lança pontes e caminhos de ferro, abre portos, levanta fábricas, expande-se - e o Liberalismo roe, roe, roe...
E um dia, a casa desaba, a gente vê o madeiramento em pó; e um dia, a Nação sucumbe, e a Nação vê os seus fundamentos morais, os seus alicerces espirituais, desfeitos. Caíu a casa. Morreu a Nação. Foi o que se deu connosco.
O Liberalismo introduziu-se nas folhas e nos artigos do papel Constitucional, e começou a sua obra de sapa, discreta, silenciosa.
A prosperidade material cegou os homens: eles só viam as estradas, os caminhos de ferro, as empresas, as fábricas. Deslumbrados pelo desenvolvimento material do País, eles não reparavam em que a Disciplina ia enfraquecendo, em que a Autoridade se ia desprestigiando, em que a Religião se ia entibiando, em que o respeito ia desaparecendo. Eles só viam portos, caminhos de ferro, estradas, fábricas, e não reparavam na falência progressiva do nosso Património moral e cultural. Eles esqueciam que nem só de pão vive o homem, que nem só de riqueza material vivem as Nações. Essa concepção materialista que já tenho ouvido muitas vezes na boca dos defensores do Liberalismo é um dos piores sintomas que a deficiência intelectual e a desorientação cultural nos podem oferecer.
Um regime político não se avalia só pelo bem estar material que proporciona ou facilita ou permite a um Povo - porque nem os indivíduos nem os Povos vieram a este mundo exclusivamente para os bens materiais.
A Carta Constitucional não impediu o desenvolvimento material da Nação? Não impediu. Mas foi o veículo da sua desorganização moral e da sua anarquia mental.
Nos primeiros tempos, ninguém deu por elas. Quando um Rei previdente e inteligente deu pelo mal - era tarde, muito tarde. Mataram-no. É que fazer frente a uma Ideia é mais perigoso do que afrontar os tigres e as panteras. A Ideia liberalista, democrática, como a formiga branca, atacara os vigamentos da Nação. Quando viu diante dela, disposto a contê-la no seu avanço maldito, a figura do Rei, mobilizou todas as suas energias e atirou-se à bruta contra o adversário. Era forte. Era muito forte. Já era vaga. Enrolou o Rei, enrolou a Dinastia. E atrás do Rei afogado, da Dinastia subvertida - os senhores são tão cegos que não vêem que vai também a Nação, que vão também sete séculos de História?»
Alfredo Pimenta
(In Nas Vésperas do Estado Novo, págs. 78/83)
0 Comentários
Esta tentativa de reabilitação fez-me sorrir. Esqueceu ao autor da afirmativa citar os Actos adicionais. E, pelo visto, também lhe não lembrou que, por ocasião da queda da Monarquia, em 1910, os partidos monárquicos consideravam a Carta Constitucional uma coisa que precisava de ser pintada, reformada, substituída. Essa convicção intensificou-se pouco a pouco, alastrou pouco a pouco, e dentro de algum tempo, entrava na Consciência dos portugueses, de tal maneira que se fez o 5 de Outubro - uma bernarda de caserna e de rua, facilimamente dominável por um esquadrão da Guarda, se não tivesse a apoiá-la, numa cumplicidade manifesta, toda a gente que tinha o ouvido direito cheio das promessas dos republicanos, e o ouvido esquerdo atulhado das críticas que os monárquicos faziam da Monarquia.
A Carta Constitucional introduziu-se em Portugal, sem corresponder a qualquer necessidade do País. Foi obra do Maçonismo e da Revolução - quer dizer, do estrangeiro. O levantamento que se operou contra ela, e que terminou bruscamente em Évora-Monte, é das páginas mais viris da história de Portugal, apesar das defecções individuais conhecidas. Foi verdadeiramente o levantamento em massa da Nação, em defesa de Deus e do Trono, que teria feito evaporar os bravos do Mindelo, se estes não tivessem atrás de si o estrangeiro, a sustentá-los. Encerrado o ciclo da guerra civil, por cansaço, que não por convencimento da Nação, e abrandadas as disputas à mão armada a que a Carta Constitucional deu nascimento, dentro dos seus próprios partidários, entrou-se numa era de fomento deveras notável - de que ainda hoje, até certo ponto, vivemos, em que se traçaram vias férreas, se lançaram estradas, e se fundaram empresas. Seguindo-se o preceito do Fontes, regou-se o País com libras. Os empréstimos sucederam-se. Mas como os governantes são honrados, o dinheiro que entrava no País era aplicado ao benefício material do mesmo País.
Isto, por virtude da Carta Constitucional?! Afirmá-lo é uma coisa sem pés nem cabeça. Por muito grande que tivesse sido essa época de desenvolvimento material - ela não tem comparação com a dos Descobrimentos. E a Nação encheu quase dois séculos, nessa empresa magnífica, eterna, trazendo pela mão mundos novos à Civilização antiga, e abrindo a esta horizontes inéditos e ilimitados. Caiu exausta em Alcácer, levada no sonho luminoso do seu chefe imortal. Mas a obra que realizara, essa ninguém mais lha arranca, e enquanto houver mundo, o nome de Portugal ninguém o apagará da História. E todavia, não havia Carta Constitucional, com a Liberdade política e civil inerente...
A obra de fomento realizada pela Nação durante a segunda parte do século XIX, não tem nada que ver com o papel que, em 1826, o estrangeiro lhe meteu nas mãos, e que ela sacudiu, mas que em 1834, o mesmo estrangeiro lhe impôs à força. Essa obra de fomento realizou-se a despeito da Carta Constitucional. E porquê? Porque, em regra, ninguém fazia caso dela. Quando se começou a fazer caso dela, isto é, do seu espírito, da filosofia que a inspirava, aí por volta de 1880 - entrou-se no primeiro círculo da Demência política.
E duas coisas ressaltaram logo: a letra da Carta Constitucional, démodée, e a sua alma procurando corporizar-se, e revestir nova forma. A alma da Carta Constitucional era a Revolução: a letra fôra a máscara. A máscara já não servia. A alma queria outra. Essa outra, deu-lha a República. A Carta Constitucional é a primeira forma da Constituição republicana.
A Constituição republicana é o desenvolvimento da Carta Constitucional.
Que trouxe a Carta Constitucional ao País?
Em que aumentou ela o Património nacional?
Vejamos:
São três as categorias das manifestações da vida de uma Nação: morais, espirituais e materiais.
Moralmente, a Carta Constitucional, regalista, introduziu a política na igreja e transformou os párocos em galopins eleitorais; espiritualmente, isto é, culturalmente, não deu mais do que já havia. Tivéramos as Universidades de Coimbra e de Évora florescentíssimas. Vinham do antigo regime, as Academias, onde tanto se trabalhou.
Sob o ponto de vista material, não me consta que a Carta Constitucional contenha disposições que lhe digam respeito.
Que trouxe, então, a Carta Constitucional ao País? Trouxe-lhe o Liberalismo, isto é, a Anarquia em potência, como diriam os Escolásticos. Introduziu no Estado um espírito novo, uma Doutrina nova, uma Filosofia nova - o Liberalismo.
Ora o Liberalismo é como a formiga branca, numa casa: roe, discretamente, em silêncio. Quando a gente menos espera - a casa está arruinada pela formiga branca, a Nação está morta pelo Liberalismo. A gente vive na casa, faz obras na casa, diverte-se na casa - e a formiga branca roe, roe, roe. A Nação traça estradas, lança pontes e caminhos de ferro, abre portos, levanta fábricas, expande-se - e o Liberalismo roe, roe, roe...
E um dia, a casa desaba, a gente vê o madeiramento em pó; e um dia, a Nação sucumbe, e a Nação vê os seus fundamentos morais, os seus alicerces espirituais, desfeitos. Caíu a casa. Morreu a Nação. Foi o que se deu connosco.
O Liberalismo introduziu-se nas folhas e nos artigos do papel Constitucional, e começou a sua obra de sapa, discreta, silenciosa.
A prosperidade material cegou os homens: eles só viam as estradas, os caminhos de ferro, as empresas, as fábricas. Deslumbrados pelo desenvolvimento material do País, eles não reparavam em que a Disciplina ia enfraquecendo, em que a Autoridade se ia desprestigiando, em que a Religião se ia entibiando, em que o respeito ia desaparecendo. Eles só viam portos, caminhos de ferro, estradas, fábricas, e não reparavam na falência progressiva do nosso Património moral e cultural. Eles esqueciam que nem só de pão vive o homem, que nem só de riqueza material vivem as Nações. Essa concepção materialista que já tenho ouvido muitas vezes na boca dos defensores do Liberalismo é um dos piores sintomas que a deficiência intelectual e a desorientação cultural nos podem oferecer.
Um regime político não se avalia só pelo bem estar material que proporciona ou facilita ou permite a um Povo - porque nem os indivíduos nem os Povos vieram a este mundo exclusivamente para os bens materiais.
A Carta Constitucional não impediu o desenvolvimento material da Nação? Não impediu. Mas foi o veículo da sua desorganização moral e da sua anarquia mental.
Nos primeiros tempos, ninguém deu por elas. Quando um Rei previdente e inteligente deu pelo mal - era tarde, muito tarde. Mataram-no. É que fazer frente a uma Ideia é mais perigoso do que afrontar os tigres e as panteras. A Ideia liberalista, democrática, como a formiga branca, atacara os vigamentos da Nação. Quando viu diante dela, disposto a contê-la no seu avanço maldito, a figura do Rei, mobilizou todas as suas energias e atirou-se à bruta contra o adversário. Era forte. Era muito forte. Já era vaga. Enrolou o Rei, enrolou a Dinastia. E atrás do Rei afogado, da Dinastia subvertida - os senhores são tão cegos que não vêem que vai também a Nação, que vão também sete séculos de História?»
Alfredo Pimenta
(In Nas Vésperas do Estado Novo, págs. 78/83)
0 Comentários
Comments:
Enviar um comentário
Blog search directory