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sábado, setembro 10, 2005

SUFRÁGIO 

«Suponhamos...
Sim, suponhamos que o Sufrágio é uma coisa séria, que a Soberania popular é uma coisa séria, que a Vontade popular é uma coisa séria.
Suponhamos que os recenseamentos eleitorais são documentos honestos. Suponhamos que amanhã um governo digno se resolve a fazer eleições dignas. Suponhamos toda esta quimera doirada, isto é, suponhamos a pureza e a bondade da Democracia. É o impossível; mas não é contra o bom senso argumentar pelo absurdo. Suponhamos então o absurdo da Democracia não ser a mentira integral que é, e que ela seja aquilo que não é nem pode ser. Suponhamos.
A maioria da Nação é indiscutivelmente monárquica, politicamente, e católica, religiosamente. Elegia, na hipótese, uma maioria parlamentar monárquica e católica. Admitamos, agora, que os parlamentares católicos, eram de tendências monárquicas. À face dos princípios democráticos, dos princípios da soberania popular, essa maioria parlamentar representava a vontade suprema da Nação. O que ela decidisse, o que ela resolvesse, a atitude que tomasse, representavam, à face dos princípios dos meus adversários, a expressão da Vontade nacional.
Aqueles que a ilusão democrática seduz, aqueles monárquicos que acendem suas velas no altar do Liberalismo e do Constitucionalismo e da Democracia, andariam radiantes, esfregariam as mãos de contentes, nas vésperas da abertura do novo Parlamento. Porque claro estaria que a maioria parlamentar monárquica, logo que o Parlamento abrisse, iria proclamar a Monarquia. Erro fundamental, triste erro o seu! Há uma Constituição. Uma Constituição derroga-se ou por um golpe de Estado, ou por uma revolução, ou por uma votação parlamentar.
Golpe de Estado ou revolução - são actos revolucionários: precisam da cooperação do Exército.
Este seria o seu sustentáculo contra quem quer que fosse que tentasse destruí-la revolucionariamente. Resta-nos o processo da votação parlamentar. Como estamos na vigência da Constituição, o Parlamento eleito, na hipótese, teria de se meter dentro dela, pois que, se tentasse sair dela, encontraria pela frente as espadas zelosas da pureza constitucional. Ora o que diz a Constituição da República? Diz isto, que aqui deixo exarado, para ensinamento dos teóricos da Democracia e do Liberalismo:

«Art. 82.º, § 2.º. Não poderão ser admitidas como objecto de deliberação, propostas de revisão constitucional que não definam precisamente as alterações projectadas, nem aquelas cujo intuito seja abolir a forma republicana do governo».

Quer dizer: a maioria parlamentar monárquica do Parlamento hipotético que temos diante dos olhos não poderá, dentro da legalidade, proclamar a monarquia. Fora da legalidade, o Exército não lho permitiria. Dentro da legalidade, não lho permite a lei. Os cavalheiros de 1910 - porque foram eles que fizeram a Constituição de 1911 - os cavalheiros de 1910 impingiram-nos um sistema de governo para toda a eternidade, ou então, e é aqui que eu quero chegar, atiram a causa monárquica para o caminho revolucionário. Eles já tinham declarado, no n.º 12 do art. 3.º, que as congregações religiosas e ordens monásticas «jamais serão admitidas no território português». Jamais! A introdução das ordens religiosas em Portugal é matéria constitucional. E como a Constituição declara que jamais elas serão admitidas entre nós, evidentemente que qualquer tentativa que se fizesse no sentido de as introduzir esbarraria na disposição constitucional proibitiva do n.º 12 do art. 3.º. Ora pois.
A República não tem que recear uma maioria parlamentar monárquica. E os monárquicos (que os há!) acalentam o sonho de, por meio do Parlamento, modificarem as instituições do País, bem podem pôr de parte o seu sonho - porque ele é constitucionalmente irrealizável! Então? Então, o regime republicano é, por natureza, por disposição constitucional, o regime da guerra civil.
E a Soberania popular, o Sufrágio, a Vontade nacional, todos esses palavrões campanudos com que nos enchem até à demasia os ouvidos, depois de terem saturado os ouvidos dos nossos pais, todos esses palavrões são mentiras, e já agora não são teóricas, mas constitucionais. Nós já o sabíamos; mas, pelo visto, há muita gente que o desconhece. É uma coisa curiosa esta: neste país onde toda a gente mete o bedelho na política, há um diploma que a quase totalidade da gente ignora: a Constituição. Pois olhem que vale a pena lê-la. Vale, vale. Aprende-se muito e aprende-se principalmente a conhecer de que casta é a Democracia.
Não há tirania mais absorvente e mais implicante. De falinhas mansas, arvorando princípios superficialmente sedutores, prometendo Liberdade a jôrros, Igualdade às canadas, e Fraternidade aos almudes, a Democracia é, no entanto, o Despotismo mais feroz, e mais truculento, e mais abusivo, e mais casmurro.
E o mais difícil de sacudir, porque é o mais difícil de convencer. A tirania dum só abranda, cede, que mais não seja diante do receio da cólera dos tiranizados. A tirania da Democracia porque é irresponsável, porque é uma tirania de mil cabeças, não há lógica que a abrande, não há espectáculo que a atenue, não há consequências que a dobrem, não há razões que a convençam. É a tirania dos cobardes, é a tirania dos hipócritas. É a tirania do Número, e, sendo a tirania do Número, é a tirania do Vácuo: está em toda a parte e não está em parte nenhuma. Lisonjeia os inferiores, e submete as capacidades às suas exigências.
Pois há quem goste disto, há quem entenda que é com isto que se deve viver. Não é ainda suficiente o espectáculo que este pobre País, vítima da Democracia, apresenta? Pois então continuem - e, depois, apertem as mãos na cabeça, e gritem contra a catástrofe, que há-de servir-lhes de muito! Repito o que tantas vezes tenho dito: ou pela Revolução, ou contra a Revolução. Ou pela Revolução com a Democracia, ou contra a Democracia e contra a Revolução. Não há terceiro caminho. Não há outra solução.»
Alfredo Pimenta
(In Nas Vésperas do Estado Novo, págs. 73/74)

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