quarta-feira, outubro 12, 2005
ALFREDO PIMENTA DOUTRINADOR DE PORTUGALIDADE
(Soube do recente falecimento, na sua querida terra do Minho, do Dr. Júlio Evangelista. Por acaso do destino, pelos mesmos dias morreu Antunes Varela, com quem ele trabalhou em Lisboa partilhando muitos anos escritório de advogado e jurisconsulto. Para quem não conhecia as alturas do Verbo e o Pensamento do antigo Deputado da Nação, oferece-se hoje aqui um discurso por ele proferido numa famosa sessão portuense para homenagear Alfredo Pimenta, então falecido pouco tempo antes. Sirvam-se, se fazem favor).
I
Há escritores que nascem com um destino singular. Toda a gente fala deles, toda a gente se acha à altura de os discutir, toda a gente os critica, — nos mais pequenos pormenores, nas mais pequenas atitudes. São homens acerca dos quais há sempre uma opinião definida — boa ou má —, acerca dos quais ouvimos dizer coisas, desde o homem da rua ao estudioso, desde o ignorante ao erudito. Ouve-se deles o que há de mais díspar e contraditório, porque, em todas as bocas, o seu nome suscita sempre uma reacção. O certo, porém, é que, se formos a averiguar a fundo, se tentarmos saber os fundamentos de tais opiniões, se quisermos investigar honestamente, ficamos com a desoladora certeza de que muito poucos os leram, muito pouca gente conhece a sua obra. Raros se debruçaram sobre os seus livros e os meditaram. Raros tentaram penetrar no seu pensamento. Raros procuraram compreendê-los. E mais raros, ainda, quiseram saber das razões de muitas das suas atitudes, quantas vezes incompreensíveis à primeira vista!
Há, de facto, escritores e artistas com um destino singular. Possuem uma personalidade tão forte, uma obra tão rica, que se impõem ao espírito e à inteligência dos que sabem ler, e aí são acolhidos, respeitados, discutidos. Mas os que sabem ler são muito poucos. E vem depois a hoste enorme dos que fingem que sabem ler. Estes não se dão, sequer, ao trabalho de consultar os seus livros. Mas têm opiniões: as que escutaram nalguma conversa de café; as que leram em qualquer almanaque ou borda-d`água; as que viram escritas em qualquer história resumida da arte ou da literatura; mas, enfim, opiniões!
Assim nascem os lugares comuns, as ideias generalizadas, que muita gente aceita e de que faz dogmas, certezas, a maior parte das vezes sem qualquer fundamento real, sem nenhuma razão de ser.
Muito disto se passa com Alfredo Pimenta. Quase toda a gente, neste País, se acha no direito de ter opiniões acerca da sua obra e da sua pessoa. E no entanto, quase toda essa gente fala de cor.
Uns conhecem dele alguns artigos de jornal — pouco mais. E isso lhes basta... Outros vêem nele o polemista contundente, o caceteiro que esmagava o adversário com o poder de uma argumentação inabalável. E isso lhes basta. Outros, ainda, porque o escutaram nalguma conferência, sentem-se intimamente satisfeitos e dizem para consigo próprios que estão à altura de poderem discutir a personalidade de Alfredo Pimenta.
Poucos, porém, conhecem, ou tentaram conhecer, a sua vastíssima obra de esclarecimento político; muito poucos leram os seus trabalhos de historiografia; e quase nenhuns sentiram o admirável poeta de "O Livro da Minha Saudade" e de "O Livro das Quimeras".
É por isso que, numa sessão, como esta, de homenagem póstuma a Alfredo Pimenta, eu me sinto no dever de dizer aqui, diante de todos e antes de mais, que a melhor homenagem a prestar à sua memória, a que ele mais estimaria, a mais real e mais profícua, será precisamente a que, por um dever de consciência e por um imperativo da inteligência, cada um de nós fizer por si mesmo, — lendo a sua obra, meditando-a, compreendendo-a.
II
«Tu m`en demandes trop long. J`évolue, comme on dit. Par conséquent, je ne sais pas exactement ou j`en suis. Je sais très bien ce que je ne crois plus, je ne suis pas encore fixé sur ce que je dois croire.» Esta resposta de Jules Lemaître, quando lhe perguntaram o que era, afinal, em política, — se era realista ou se era bonapartista —, vem na "Enquête sur la Monarchie" de Charles Maurras. Um dia, um amigo, de visita a Alfredo Pimenta, abriu o exemplar da "Enquête" que estava sobre a secretária, e encontrou esta passagem sublinhada a lápis. Era em 1915. E, com a queda do Governo de Pimenta de Castro, frustraram-se as derradeiras esperanças dos que ainda poderiam acreditar na viabilidade da República.
Deu-se, durante o século passado e no começo deste, um equívoco de graves consequências. Tinha-se feito do Estado, na expressão de Oliveira Martins, uma agência de caminhos de ferro. Vivia-se de Saldanhadas e de Janeirinhas. Fazia-se política como quem faz ski, por uma encosta demasiado íngreme. Foi-se a moeda, foi-se a noção do respeito, foi-se o prestígio. E quando um hábil Ministro, que se chamou Barros Gomes, caiu, mas firme na defesa dos nossos direitos e dos nossos interesses de País colonial, cedendo apenas diante da força irresistível, em vez do respeito que lhe era devido, em vez das palavras de gratidão e apreço, a que tinha direito, que vemos nós? Vemos a populaça, debaixo das suas janelas, gritando vivas à Pátria, na intenção de, assim, o insultar, e vemos, ainda, preparar-se essa coisa incrível que dá pelo nome de 31 de Janeiro. Vemos a política degradada, perdida a noção das conveniências, e até da decência. Partidos que se degladiam, monárquicos que se insultam e difamam mutuamente. Nem o próprio Rei escapa. «Desde que me conheci» — escreve Alfredo Pimenta — «o menos que ouvi aos monárquicos chamarem-se uns aos outros, a começar no Rei e a terminar no mais sertanejo regedor, foi ladrões.» Isto é mais que sabido, mas é bom recordá-lo. De que servem estadistas de valor, se as instituições lhes tolhem os movimentos? Que poderia fazer um Rei extraordinário, como D. Carlos, se, por força do sistema, ele era apenas o quarto poder do Estado — um vago, teórico poder a que chamavam moderador? De que serviam, além do exemplo e demonstração de vitalidade, feitos gloriosos e heróicos, como os de Mouzinho e Paiva de Andrade, se a política os poderia desperdiçar em qualquer altura, e até por questiúnculas entre Braga e Guimarães — como quando, em Paris, discutíamos importantes problemas de limites e de esferas de influência na África?
Era assim o sistema que felizmente já não nos rege, de que Ramalho zombava, denunciando-lhe a nudez.
Tornara-se evidente que isto não servia. E diante deste espectáculo tristíssimo, temos de admitir que, a muitos espíritos, a República se apresentasse como uma solução desejável. A propaganda era intensa, servia-se de tudo — de discursos, de promessas, de calúnias. O regime caíra no descrédito. Muitos espíritos honestos — sobretudo entre os novos — aderiram ao movimento republicano, fundamentalmente por oposição à Monarquia e ao sistema que não tinha possibilidades de satisfazer aos mais instantes interesses do País. E eis o grande equívoco de que há pouco falei: é que se tomou por Monarquia uma coisa que o não era na realidade. É que se não soube olhar para trás, penetrar no espírito do passado, e tirar daí as lições necessárias. É que se tomou por Monarquia, a Monarquia liberal, embrião e prefácio de todas as repúblicas. Chega a ser paradoxal: eles eram anti-monárquicos — e é o caso de Alfredo Pimenta — porque eram anti-democráticos; eles eram anti-monárquicos, — muitos homens sérios desse tempo —, porque eram anti-liberais; eram contra a Monarquia, porque eram contra o parlamentarismo.
Onde estava o equívoco? No nome de Monarquia, dado a um regime que o não merecia verdadeiramente. Porque uma Monarquia de partidos e discursos da Coroa, uma Monarquia liberal, democrática e parlamentar, pode ser tudo o que quiserem, menos Monarquia. Eis o grave equívoco de que falei. Eles eram contra aquela Monarquia. Não viram, nesse momento, que a solução estava no Passado e no espírito das suas instituições. Não viram — muitos deles — que a satisfação dos seus anseios e dos seus ideais estava precisamente na Monarquia, mas na Monarquia verdadeira, na Monarquia Tradicional, — anti-democrática, porque o Poder vem de Deus; anti-liberal, porque orgânica; anti-parlamentar, porque anti-democrática. Não viram. E sinceramente, convictos, com o idealismo e o entusiasmo dos vinte anos, foram atrás da República, e serviram-na com lealdade, sempre de cara descoberta.
Em breve viria a desilusão. Se a Monarquia liberal era a desordem, a República era a anarquia. Se aquela era um equívoco, esta era uma mentira. E um espírito sério, honesto, não pode servir uma mentira. Foi este o caso de Alfredo Pimenta.
Je sais très bien ce que je ne crois plus. É a desilusão de um honrado lutador que, ao fim de batalhas e batalhas, ingratas e cruéis, vê a inutilidade de tanto esforço dispendido. É mais. É a amargura do soldado que, depois de inúmeros combates, vê tudo de repente iluminado por uma luz mais forte e verdadeira, e conclui, em plena luta, desesperadamente, que a causa porque tanto se bateu, com heroísmo e com fervor, não merecia o seu fervor, nem merecia o seu heroísmo.
Je sais très bien ce que je ne crois plus. Esta confissão é de um extraordinário dramatismo. É o desmoronar de ilusões e de ideais. É ter de concluir que era mentira aquilo que, durante muito tempo, tomamos por verdade e, por isso mesmo, amamos e servimos. É verificar, desoladamente, que era de barro cru o Deus que defendíamos. É o desespero de ver que servimos o mal e julgávamos servir o bem.
Mas é também o começo de um profundo exame de consciência e um sinal de redenção - je ne suis pas encore fixé sur ce que je dois croire. Em Alfredo Pimenta, foram alguns meses de meditação, a sós com os seus livros e com as suas ideias, com os sonhos do passado e os desgostos do presente.
Je ne suis pas encore fixé sur ce que je dois croire. Foram alguns meses de meditação. As suas ideias nunca poderiam concretizar-se em regime republicano. Eram verdadeiramente incompatíveis — umas e outro. Afinal, aquela quimérica República, com as funções do Presidente elevadas ao mais alto grau e as atribuições parlamentares reduzidas à matéria de imposto e pouco mais; afinal, aquela espécie de ditadura presidencialista, que não era parlamentar, que não era democrática, nem era liberal, com um Presidente vitalício, estava próxima da Monarquia tradicional.
Foram alguns meses de reflexão sincera. E, como não podia deixar de acontecer, pôs no vértice da sua doutrina aquilo que lhe faltava para que fosse coerente, lógica e viável: o Rei.
III
Alfredo Pimenta pertencia a uma espécie de espíritos que ele próprio definiu, chamando-lhes expansivos e dizendo que são «tipicamente transformadores», isto é, «caracterizam-se pela actividade; sofrem e reagem; absorvem e exportam». Toda a gente pode acompanhar a evolução das suas ideias, pois ele, precisamente porque era um expansivo, intelectualmente honesto e corajoso, punha-as sempre em letra de forma e proclamava-as onde quer que fosse. Não era homem de arcas encoiradas nem homem que se calasse facilmente, nem homem que dissesse preto onde era branco, verdade onde era mentira, se a sua consciência lhe ensinasse que, de facto, era branco ou era mentira.
Foi monárquico, quando a sua inteligência, iluminada pela cultura e esclarecida pela lição dos factos, verificou a superioridade do princípio monárquico na aplicação ao caso português. E, a partir daí, foi-o com inteireza, com superioridade, e lutou desassombradamente pelas suas ideias.
Foi católico, quando a sua consciência, tocada pela divina claridade da Fé, encontrou e recebeu a Verdade Suprema. E desde então, foi um crente sincero e convicto.
O 14 de Maio tinha posto fim à derradeira esperança de um Governo honrado. Era em 1915. Homens como Alfredo Pimenta, não se afastam, quando isso seria mais cómodo, nem se calam, quando isso fosse, porventura, mais proveitoso. Após meio ano de bem madura reflexão, chegou à Monarquia. Surgiu, assim, "A Solução Monárquica" — opúsculo que não é apenas o depoimento de uma inteligência esclarecida, mas ainda o documento onde se reflecte toda a grandeza moral de uma alma. É com esse depoimento que Alfredo Pimenta inicia a sua notável carreira de doutrinador e apóstolo das ideias monárquicas.
«Na plena posse da minha serenidade, — escrevia ele precisamente nessa altura —, livre de qualquer sugestão, tão profundamente concentrado como se estivesse confiando, na hora última da minha existência, à inteligência de Deus ou ao juízo da História, os meus mais íntimos pensamentos; evocando tudo quanto de belo tive nos sacrifícios do Passado e pensando no destino sagrado dos meus filhos; não esquecendo o que devo ao meu nome que é puro de mácula, e o que devo ao respeito dos homens que em mim confiam — neste estado de espírito e de alma, a minha mão, serena e firme, escreve que a única solução nacional da crise portuguesa, compatível com o orgulho próprio de quem tem uma existência de sete séculos e levou, através os mares e regiões desconhecidas, a Civilização e a Beleza — é a solução monárquica, a restauração da monarquia.» Homens como Alfredo Pimenta não se calam, nem se acomodam. Ele procurava a Verdade, ansiosamente, desesperadamente. Mas uma vez que a encontrou, não a guardava para uso pessoal e recreio egoísta do seu espírito. Procurava-a, para a servir. E um dos meios de servir a Verdade, é dá-la a conhecer aos outros. Eis a razão de ser de toda a sua actividade de escritor — de crítico, de polemista, de historiador, de doutrinador — servir a Verdade!
De doutrinador... De facto, o que é doutrinar, no sentido de missão, que o termo encerra, senão ensinar aos outros a Verdade que se alcançou pela experiência, pela inteligência, pela cultura, ou pela Fé? O que foi a acção doutrinária de Alfredo Pimenta, senão um admirável apostolado, — junto da juventude, para a ensinar e lhe evitar os enganos por que ele passou, o calvário que tanta amargura lhe custou; junto dos mais velhos, a levar-lhes os esclarecimentos de uma sólida erudição, conseguida através de uma vida inteira dedicada ao estudo.
Mas há, ainda, uma faceta curiosa, na sua actividade de doutrinador, que não é inútil referir. Ele foi sempre anti-democrático e, talvez por isso mesmo, nunca falou ou escreveu para as massas, para a multidão, para o grande público. Nem isso compete a um doutrinador. As suas palavras eram dirigidas a um número limitado de pessoas e, muitas vezes, falava ou escrevia para uma pessoa, apenas, uma pessoa, em particular, pouco lhe interessando que os outros o lessem ou o escutassem. Essa pessoa, a quem, na sua finalidade oculta, se dirigiam as suas palavras, sem, muitas vezes, o dar a entender a ninguém, nem mesmo ao próprio, essa pessoa tanto pode ter sido António José de Almeida, como o foi, depois, o Senhor D. Manuel II, como o foi, por último, Salazar.
António José de Almeida era director do jornal "República". O regime republicano entrou a dar imediatamente os seus frutos lastimosos e funestos. Alfredo Pimenta era, como se sabe, um republicano sui generis, pois, entre as constantes do seu pensamento, está o desprezo absoluto pelo mito democrático, pela mistificação da Urna.
Era colaborador do jornal "República". E então, começou aí a desenvolver uma campanha, no sentido de travar o inevitável afundamento na anarquia, para que tudo indicava se iria caminhar. Mas essa campanha, no fundo, era dirigida apenas a António José de Almeida, que foi Chefe do Governo e era um homem com altas responsabilidades na política republicana. O próprio Alfredo Pimenta conta. António José de Almeida, que, como director do jornal, lia os artigos, antecipadamente, dizia-lhe muitas vezes, a propósito de qualquer deles, que não poderia ser publicado — ou porque era muito conservador ou porque criticava asperamente o parlamentarismo. E Pimenta não dizia nada, mas retirava-se intimamente satisfeito. Não lhe interessava a publicação do artigo. O que lhe interessava é que António José de Almeida o tivesse lido. O resto era o menos.
Depois que entrou para o campo monárquico, vemo-lo a exercer a sua acção doutrinária a favor da Monarquia tradicional. E, por outro lado, com o sentido exacto de que mais vale um dos bons do que um milhão dos maus, também, então, a sua acção se exerce, silenciosamente, junto do Senhor D. Manuel II, com quem manteve correspondência, no sentido de provar a El-Rei que tinha caducado o seu juramento aos princípios constitucionais e que era necessário levar a efeito a unidade doutrinaria da Causa Monárquica.
Vem Salazar. Alfredo Pimenta continua a ensinar a doutrina monárquica. Mas quem não vê, em muitas das suas páginas, que elas são especialmente dirigidas ao Sr. Presidente do Conselho? Quem não vê que, quando isso vinha a propósito, Alfredo Pimenta lembrava a Salazar a fragilidade de tudo isto a que já se chamou Estado Novo? Quem não tem ideia de que Alfredo Pimenta lembrava constantemente ao Sr. Presidente do Conselho, o desastrado fim a que estaria condenada toda a sua obra admirável, de mais de duas décadas, se não lhe assegurasse o futuro — preparando o regresso do Rei?
«Pretender que o regime salazariano sobreviva a Salazar — dizia ele — é uma ilusão que pode sair caríssima ao Povo português — em dinheiro, em vidas, em sangue e em honra.» Dizia mais: que o Povo português «não vê em Salazar o primeiro ministro de uma República mas sim o Chefe de uma Nação, o precursor do Rei».
Ele escreveu isto — e muito mais — em artigos de jornal ou em livros que muita gente leu. Mas é flagrante que, na sua intenção profunda, estas palavras foram escritas para serem meditadas por um Homem. O resto era o menos.
IV
Qual era a doutrina ?
A doutrina foram os séculos que a fizeram, moldando as instituições ao carácter do Povo, fazendo a Nação e dando-lhe possibilidade de vida. A doutrina não é o produto da imaginação de um homem — como a que a Revolução Francesa consagrou e exportou. Assenta nas bases firmes de uma História de muitos séculos, acompanhou um Povo inteiro no seu longo evoluir, em horas de grandeza como em momentos de luto e desespero. Deu à Nação consciência da sua unidade, fez dela um corpo inteiro, obedecendo a um pensamento superior e cumprindo admiravelmente o seu destino. A sua lógica é a experiência, o seu fundamento a Tradição e a sua razão de ser é a razão de ser da própria História do Povo que serviu.
Ao doutrinador, em matéria como esta, cumpre ir à História e tirar dela os princípios que informaram a organização social do País. Cumpre-lhe analisar as instituições, acompanhá-las na sua evolução histórica — expondo os resultados dessa análise. Mas doutrinar não é expor friamente, secamente, as ideias e os princípios. É alguma coisa mais. É mostrar as vantagens e virtudes das instituições e as suas possibilidades de adaptação. É fazer a defesa dessas ideias e desses princípios. É dar à exposição um sopro de vida e de alma! E aqui, já o homem que doutrina é, em certa medida, um criador.
Qual o fim de toda a acção doutrinária, entendida como apostolado e missão? É chamar os outros para a nossa verdade. É mostrar-lhes o erro em que se encontram e procurar desviá-los dele. É dizer-lhes as nossas razões e a superioridade dos nossos princípios.
Este é um dos aspectos.
Porque não se doutrina apenas para os que estão no erro. É preciso, também, ensinar os que estão na verdade — mas ignoram porquê. É preciso fazer, de elementos amorfos, elementos conscientes. E então, a actividade consiste, neste caso, em explicar-lhes que a verdade é aquela, aquele o caminho verdadeiro, por tais e tais razões, por estes e estes fundamentos. E aqui, entra, ainda, uma parte de criação. Porque o doutrinador político e social, ao justificar as suas ideias, mesmo que sejam obra da História e de um Povo inteiro, desenvolvidas através dos séculos e da experiência, ao explicar os seus fundamentos, como ao fazer a sua exposição apaixonada, deixa sempre inevitavelmente, nessas operações, qualquer coisa de seu, da sua própria alma, da sua própria inteligência. E nessa medida, ele é um criador.
Alfredo Pimenta foi um doutrinador de Portugalidade, conceito que abrange tudo o que é típica e especificamente nosso, isto é, as instituições e as ideias que são fruto do génio português, a civilização que nós criamos e espalhamos pelo mundo. Portugalidade, em oposição à Latinidade, à Hispanidade, e até, à Lusitanidade. Em oposição às duas primeiras porque, dentro delas, ou nada significamos ou somos confundidos. E em oposição à Lusitanidade, porque Portugal não é precisamente o mesmo que Lusitânia, visto esta não ser toda nossa.
Em matéria político-social, a Portugalidade compõe-se de vários elementos: uns que a criaram e estão, portanto, na sua origem e lhe são, até, anteriores, como a Monarquia; outros que a integraram, completaram e desenvolveram, como o Nacionalismo e a Tradição.
Antes de sermos uma nacionalidade, já éramos um Estado, já éramos uma Monarquia. A Nação, isto é, a consciência de um passado comum, de interesses e de aspirações comuns, surgiu mais tarde e foi obra dos seus Reis e da Igreja Católica. Eis porque um doutrinador de Portugalidade, como o foi Alfredo Pimenta, tem de, fatalmente, defender a Igreja e defender a Realeza. Defender a Igreja, primeiro, porque esta representa Deus na terra, e as sociedades humanas nascem, desenvolvem-se e existem, para servir um fim espiritual, ou seja, para servir a Deus. Depois, porque é em Deus que reside a origem do Poder, para a Monarquia hereditária. E, finalmente, porque, como Alfredo Pimenta escreveu, se «foi a espada dum Rei que fez Portugal», fê-lo «por amor da Cruz e para servir a Cruz». E acrescentava: «Português que não seja fiel a esta dupla tradição religiosa e política, é português transviado por influências estrangeiras ao espírito, aos sentimentos e ao sangue de Portugal, seja qual for o seu valor particular».
Defender a Realeza, porque uma Nação não é o dia de hoje, é o que passou e é o que virá, os seus mortos e os seus heróis, a sua saudade e as suas esperanças. E se «o Rei é anterior à Nação», é, também, o representante visível de uma Dinastia, isto é, e ainda empregando uma expressão de Alfredo Pimenta, «o elo vivo e activo que liga o Passado ao Futuro».
Na actividade doutrinária de Alfredo Pimenta, se há, como não podia deixar de ser, um aspecto positivo, há também um aspecto negativo.
As ideias da Revolução penetraram profundamente nos espíritos, dementaram a Nação, foram consagradas nas constituições, o Estado aceitou-as e obedeceu-lhes. Era preciso, pois, antes de mais, destruir todas as suas influências perniciosas e funestas, pôr a nu os seus sofismas e as suas mentiras. Eis o aspecto negativo, importantíssimo como pressuposto de toda a acção positiva.
Era preciso combater o espírito democrático, provar que a Democracia não passa de uma mistificação — aspecto negativo — e opor-lhe a Monarquia Tradicional e o Nacionalismo Integral — aspecto positivo. Era preciso condenar o liberalismo político, estrangulador das nossas regalias municipais e das nossas liberdades profissionais e corporativas, denunciando a burla do Poder que emana da Urna e do Voto, para se lhe opor o Autoritarismo contra-revolucionário. «O homem, munido do papelinho branco, é omnipotente, é omnisciente»? Oiçam, ainda, Alfredo Pimenta: «Um milhão de homens de um lado, outro milhão de homens de outro lado. Empate. Quem vai desempatar? O Pistautira (oh!) que se esquecera de que era o grande dia do Povo Soberano. Vão chamar o Pistautira! E o Pistautira chega, e vota. E desempata... Quem foi omnipotente? Quem foi omnisciente? O Pistautira...»
Foi, assim, orientada nestes dois aspectos, a acção doutrinária de Alfredo Pimenta: desfazer os mitos e refazer as realidades, combater os desvios nefastos e apontar o caminho verdadeiro. Numa época desorientada e quase demente, a sua palavra firme, de razão e coerência, foi como fio de água límpida onde irão sempre refrescar-se os que estejam fartos de malabarismos e tenham sede de verdade e de raciocínios claros.
E, para terminar, duas palavras mais. Apenas duas.
Há homens de quem se pode dizer, em verdade, que valeu bem a pena terem passado neste mundo, quanto mais não fosse, ou que mais não valessem, pelo exemplo que deixaram. Alfredo Pimenta pertence incontestavelmente, a esta categoria.
Está, ainda, fresca a terra da sua sepultura. Ainda não cessaram, à volta do seu nome, os ódios e os despeitos. Rugem, ainda, as vozes de rancor. Mas nem os ódios, por mais ferozes, nem os despeitos, por mais ignóbeis, nem o rancor, por mais repugnante, conseguirão, de forma alguma, diminuir a memória do homem, cuja vida foi magnífica lição de carácter, de coragem e desassombro; cuja vida foi exemplo verdadeiro de trabalho exaustivo, de estudo sério e consciente.
Uma vida inteira dedicada ao serviço da Verdade, à Cultura do seu País, ao combate leal pelas suas ideias, à ternura e ao carinho do seu lar. Há ideal mais belo? Há exemplo melhor, agora, que o carácter é feito de transigências, de falsificações e de renúncias? Há exemplo melhor, agora, que a coragem e o desassombro dependem da maior ou menor capacidade do cordão umbilical? Há exemplo melhor, nestes tempos, em que a Verdade anda arrastada pelas ruas da amargura, mutilada e esquecida ?
Júlio Evangelista
(1 — Discurso proferido na homenagem ao Dr. Alfredo Pimenta, promovido pela Junta Escolar Monárquica do Porto, em 28 de Abril de 1951)
(Publicado in «Gil Vicente», vol. II — 2.ª série, págs. 185/195, nº 11/12, Novembro/Dezembro de 1951)
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I
Há escritores que nascem com um destino singular. Toda a gente fala deles, toda a gente se acha à altura de os discutir, toda a gente os critica, — nos mais pequenos pormenores, nas mais pequenas atitudes. São homens acerca dos quais há sempre uma opinião definida — boa ou má —, acerca dos quais ouvimos dizer coisas, desde o homem da rua ao estudioso, desde o ignorante ao erudito. Ouve-se deles o que há de mais díspar e contraditório, porque, em todas as bocas, o seu nome suscita sempre uma reacção. O certo, porém, é que, se formos a averiguar a fundo, se tentarmos saber os fundamentos de tais opiniões, se quisermos investigar honestamente, ficamos com a desoladora certeza de que muito poucos os leram, muito pouca gente conhece a sua obra. Raros se debruçaram sobre os seus livros e os meditaram. Raros tentaram penetrar no seu pensamento. Raros procuraram compreendê-los. E mais raros, ainda, quiseram saber das razões de muitas das suas atitudes, quantas vezes incompreensíveis à primeira vista!
Há, de facto, escritores e artistas com um destino singular. Possuem uma personalidade tão forte, uma obra tão rica, que se impõem ao espírito e à inteligência dos que sabem ler, e aí são acolhidos, respeitados, discutidos. Mas os que sabem ler são muito poucos. E vem depois a hoste enorme dos que fingem que sabem ler. Estes não se dão, sequer, ao trabalho de consultar os seus livros. Mas têm opiniões: as que escutaram nalguma conversa de café; as que leram em qualquer almanaque ou borda-d`água; as que viram escritas em qualquer história resumida da arte ou da literatura; mas, enfim, opiniões!
Assim nascem os lugares comuns, as ideias generalizadas, que muita gente aceita e de que faz dogmas, certezas, a maior parte das vezes sem qualquer fundamento real, sem nenhuma razão de ser.
Muito disto se passa com Alfredo Pimenta. Quase toda a gente, neste País, se acha no direito de ter opiniões acerca da sua obra e da sua pessoa. E no entanto, quase toda essa gente fala de cor.
Uns conhecem dele alguns artigos de jornal — pouco mais. E isso lhes basta... Outros vêem nele o polemista contundente, o caceteiro que esmagava o adversário com o poder de uma argumentação inabalável. E isso lhes basta. Outros, ainda, porque o escutaram nalguma conferência, sentem-se intimamente satisfeitos e dizem para consigo próprios que estão à altura de poderem discutir a personalidade de Alfredo Pimenta.
Poucos, porém, conhecem, ou tentaram conhecer, a sua vastíssima obra de esclarecimento político; muito poucos leram os seus trabalhos de historiografia; e quase nenhuns sentiram o admirável poeta de "O Livro da Minha Saudade" e de "O Livro das Quimeras".
É por isso que, numa sessão, como esta, de homenagem póstuma a Alfredo Pimenta, eu me sinto no dever de dizer aqui, diante de todos e antes de mais, que a melhor homenagem a prestar à sua memória, a que ele mais estimaria, a mais real e mais profícua, será precisamente a que, por um dever de consciência e por um imperativo da inteligência, cada um de nós fizer por si mesmo, — lendo a sua obra, meditando-a, compreendendo-a.
II
«Tu m`en demandes trop long. J`évolue, comme on dit. Par conséquent, je ne sais pas exactement ou j`en suis. Je sais très bien ce que je ne crois plus, je ne suis pas encore fixé sur ce que je dois croire.» Esta resposta de Jules Lemaître, quando lhe perguntaram o que era, afinal, em política, — se era realista ou se era bonapartista —, vem na "Enquête sur la Monarchie" de Charles Maurras. Um dia, um amigo, de visita a Alfredo Pimenta, abriu o exemplar da "Enquête" que estava sobre a secretária, e encontrou esta passagem sublinhada a lápis. Era em 1915. E, com a queda do Governo de Pimenta de Castro, frustraram-se as derradeiras esperanças dos que ainda poderiam acreditar na viabilidade da República.
Deu-se, durante o século passado e no começo deste, um equívoco de graves consequências. Tinha-se feito do Estado, na expressão de Oliveira Martins, uma agência de caminhos de ferro. Vivia-se de Saldanhadas e de Janeirinhas. Fazia-se política como quem faz ski, por uma encosta demasiado íngreme. Foi-se a moeda, foi-se a noção do respeito, foi-se o prestígio. E quando um hábil Ministro, que se chamou Barros Gomes, caiu, mas firme na defesa dos nossos direitos e dos nossos interesses de País colonial, cedendo apenas diante da força irresistível, em vez do respeito que lhe era devido, em vez das palavras de gratidão e apreço, a que tinha direito, que vemos nós? Vemos a populaça, debaixo das suas janelas, gritando vivas à Pátria, na intenção de, assim, o insultar, e vemos, ainda, preparar-se essa coisa incrível que dá pelo nome de 31 de Janeiro. Vemos a política degradada, perdida a noção das conveniências, e até da decência. Partidos que se degladiam, monárquicos que se insultam e difamam mutuamente. Nem o próprio Rei escapa. «Desde que me conheci» — escreve Alfredo Pimenta — «o menos que ouvi aos monárquicos chamarem-se uns aos outros, a começar no Rei e a terminar no mais sertanejo regedor, foi ladrões.» Isto é mais que sabido, mas é bom recordá-lo. De que servem estadistas de valor, se as instituições lhes tolhem os movimentos? Que poderia fazer um Rei extraordinário, como D. Carlos, se, por força do sistema, ele era apenas o quarto poder do Estado — um vago, teórico poder a que chamavam moderador? De que serviam, além do exemplo e demonstração de vitalidade, feitos gloriosos e heróicos, como os de Mouzinho e Paiva de Andrade, se a política os poderia desperdiçar em qualquer altura, e até por questiúnculas entre Braga e Guimarães — como quando, em Paris, discutíamos importantes problemas de limites e de esferas de influência na África?
Era assim o sistema que felizmente já não nos rege, de que Ramalho zombava, denunciando-lhe a nudez.
Tornara-se evidente que isto não servia. E diante deste espectáculo tristíssimo, temos de admitir que, a muitos espíritos, a República se apresentasse como uma solução desejável. A propaganda era intensa, servia-se de tudo — de discursos, de promessas, de calúnias. O regime caíra no descrédito. Muitos espíritos honestos — sobretudo entre os novos — aderiram ao movimento republicano, fundamentalmente por oposição à Monarquia e ao sistema que não tinha possibilidades de satisfazer aos mais instantes interesses do País. E eis o grande equívoco de que há pouco falei: é que se tomou por Monarquia uma coisa que o não era na realidade. É que se não soube olhar para trás, penetrar no espírito do passado, e tirar daí as lições necessárias. É que se tomou por Monarquia, a Monarquia liberal, embrião e prefácio de todas as repúblicas. Chega a ser paradoxal: eles eram anti-monárquicos — e é o caso de Alfredo Pimenta — porque eram anti-democráticos; eles eram anti-monárquicos, — muitos homens sérios desse tempo —, porque eram anti-liberais; eram contra a Monarquia, porque eram contra o parlamentarismo.
Onde estava o equívoco? No nome de Monarquia, dado a um regime que o não merecia verdadeiramente. Porque uma Monarquia de partidos e discursos da Coroa, uma Monarquia liberal, democrática e parlamentar, pode ser tudo o que quiserem, menos Monarquia. Eis o grave equívoco de que falei. Eles eram contra aquela Monarquia. Não viram, nesse momento, que a solução estava no Passado e no espírito das suas instituições. Não viram — muitos deles — que a satisfação dos seus anseios e dos seus ideais estava precisamente na Monarquia, mas na Monarquia verdadeira, na Monarquia Tradicional, — anti-democrática, porque o Poder vem de Deus; anti-liberal, porque orgânica; anti-parlamentar, porque anti-democrática. Não viram. E sinceramente, convictos, com o idealismo e o entusiasmo dos vinte anos, foram atrás da República, e serviram-na com lealdade, sempre de cara descoberta.
Em breve viria a desilusão. Se a Monarquia liberal era a desordem, a República era a anarquia. Se aquela era um equívoco, esta era uma mentira. E um espírito sério, honesto, não pode servir uma mentira. Foi este o caso de Alfredo Pimenta.
Je sais très bien ce que je ne crois plus. É a desilusão de um honrado lutador que, ao fim de batalhas e batalhas, ingratas e cruéis, vê a inutilidade de tanto esforço dispendido. É mais. É a amargura do soldado que, depois de inúmeros combates, vê tudo de repente iluminado por uma luz mais forte e verdadeira, e conclui, em plena luta, desesperadamente, que a causa porque tanto se bateu, com heroísmo e com fervor, não merecia o seu fervor, nem merecia o seu heroísmo.
Je sais très bien ce que je ne crois plus. Esta confissão é de um extraordinário dramatismo. É o desmoronar de ilusões e de ideais. É ter de concluir que era mentira aquilo que, durante muito tempo, tomamos por verdade e, por isso mesmo, amamos e servimos. É verificar, desoladamente, que era de barro cru o Deus que defendíamos. É o desespero de ver que servimos o mal e julgávamos servir o bem.
Mas é também o começo de um profundo exame de consciência e um sinal de redenção - je ne suis pas encore fixé sur ce que je dois croire. Em Alfredo Pimenta, foram alguns meses de meditação, a sós com os seus livros e com as suas ideias, com os sonhos do passado e os desgostos do presente.
Je ne suis pas encore fixé sur ce que je dois croire. Foram alguns meses de meditação. As suas ideias nunca poderiam concretizar-se em regime republicano. Eram verdadeiramente incompatíveis — umas e outro. Afinal, aquela quimérica República, com as funções do Presidente elevadas ao mais alto grau e as atribuições parlamentares reduzidas à matéria de imposto e pouco mais; afinal, aquela espécie de ditadura presidencialista, que não era parlamentar, que não era democrática, nem era liberal, com um Presidente vitalício, estava próxima da Monarquia tradicional.
Foram alguns meses de reflexão sincera. E, como não podia deixar de acontecer, pôs no vértice da sua doutrina aquilo que lhe faltava para que fosse coerente, lógica e viável: o Rei.
III
Alfredo Pimenta pertencia a uma espécie de espíritos que ele próprio definiu, chamando-lhes expansivos e dizendo que são «tipicamente transformadores», isto é, «caracterizam-se pela actividade; sofrem e reagem; absorvem e exportam». Toda a gente pode acompanhar a evolução das suas ideias, pois ele, precisamente porque era um expansivo, intelectualmente honesto e corajoso, punha-as sempre em letra de forma e proclamava-as onde quer que fosse. Não era homem de arcas encoiradas nem homem que se calasse facilmente, nem homem que dissesse preto onde era branco, verdade onde era mentira, se a sua consciência lhe ensinasse que, de facto, era branco ou era mentira.
Foi monárquico, quando a sua inteligência, iluminada pela cultura e esclarecida pela lição dos factos, verificou a superioridade do princípio monárquico na aplicação ao caso português. E, a partir daí, foi-o com inteireza, com superioridade, e lutou desassombradamente pelas suas ideias.
Foi católico, quando a sua consciência, tocada pela divina claridade da Fé, encontrou e recebeu a Verdade Suprema. E desde então, foi um crente sincero e convicto.
O 14 de Maio tinha posto fim à derradeira esperança de um Governo honrado. Era em 1915. Homens como Alfredo Pimenta, não se afastam, quando isso seria mais cómodo, nem se calam, quando isso fosse, porventura, mais proveitoso. Após meio ano de bem madura reflexão, chegou à Monarquia. Surgiu, assim, "A Solução Monárquica" — opúsculo que não é apenas o depoimento de uma inteligência esclarecida, mas ainda o documento onde se reflecte toda a grandeza moral de uma alma. É com esse depoimento que Alfredo Pimenta inicia a sua notável carreira de doutrinador e apóstolo das ideias monárquicas.
«Na plena posse da minha serenidade, — escrevia ele precisamente nessa altura —, livre de qualquer sugestão, tão profundamente concentrado como se estivesse confiando, na hora última da minha existência, à inteligência de Deus ou ao juízo da História, os meus mais íntimos pensamentos; evocando tudo quanto de belo tive nos sacrifícios do Passado e pensando no destino sagrado dos meus filhos; não esquecendo o que devo ao meu nome que é puro de mácula, e o que devo ao respeito dos homens que em mim confiam — neste estado de espírito e de alma, a minha mão, serena e firme, escreve que a única solução nacional da crise portuguesa, compatível com o orgulho próprio de quem tem uma existência de sete séculos e levou, através os mares e regiões desconhecidas, a Civilização e a Beleza — é a solução monárquica, a restauração da monarquia.» Homens como Alfredo Pimenta não se calam, nem se acomodam. Ele procurava a Verdade, ansiosamente, desesperadamente. Mas uma vez que a encontrou, não a guardava para uso pessoal e recreio egoísta do seu espírito. Procurava-a, para a servir. E um dos meios de servir a Verdade, é dá-la a conhecer aos outros. Eis a razão de ser de toda a sua actividade de escritor — de crítico, de polemista, de historiador, de doutrinador — servir a Verdade!
De doutrinador... De facto, o que é doutrinar, no sentido de missão, que o termo encerra, senão ensinar aos outros a Verdade que se alcançou pela experiência, pela inteligência, pela cultura, ou pela Fé? O que foi a acção doutrinária de Alfredo Pimenta, senão um admirável apostolado, — junto da juventude, para a ensinar e lhe evitar os enganos por que ele passou, o calvário que tanta amargura lhe custou; junto dos mais velhos, a levar-lhes os esclarecimentos de uma sólida erudição, conseguida através de uma vida inteira dedicada ao estudo.
Mas há, ainda, uma faceta curiosa, na sua actividade de doutrinador, que não é inútil referir. Ele foi sempre anti-democrático e, talvez por isso mesmo, nunca falou ou escreveu para as massas, para a multidão, para o grande público. Nem isso compete a um doutrinador. As suas palavras eram dirigidas a um número limitado de pessoas e, muitas vezes, falava ou escrevia para uma pessoa, apenas, uma pessoa, em particular, pouco lhe interessando que os outros o lessem ou o escutassem. Essa pessoa, a quem, na sua finalidade oculta, se dirigiam as suas palavras, sem, muitas vezes, o dar a entender a ninguém, nem mesmo ao próprio, essa pessoa tanto pode ter sido António José de Almeida, como o foi, depois, o Senhor D. Manuel II, como o foi, por último, Salazar.
António José de Almeida era director do jornal "República". O regime republicano entrou a dar imediatamente os seus frutos lastimosos e funestos. Alfredo Pimenta era, como se sabe, um republicano sui generis, pois, entre as constantes do seu pensamento, está o desprezo absoluto pelo mito democrático, pela mistificação da Urna.
Era colaborador do jornal "República". E então, começou aí a desenvolver uma campanha, no sentido de travar o inevitável afundamento na anarquia, para que tudo indicava se iria caminhar. Mas essa campanha, no fundo, era dirigida apenas a António José de Almeida, que foi Chefe do Governo e era um homem com altas responsabilidades na política republicana. O próprio Alfredo Pimenta conta. António José de Almeida, que, como director do jornal, lia os artigos, antecipadamente, dizia-lhe muitas vezes, a propósito de qualquer deles, que não poderia ser publicado — ou porque era muito conservador ou porque criticava asperamente o parlamentarismo. E Pimenta não dizia nada, mas retirava-se intimamente satisfeito. Não lhe interessava a publicação do artigo. O que lhe interessava é que António José de Almeida o tivesse lido. O resto era o menos.
Depois que entrou para o campo monárquico, vemo-lo a exercer a sua acção doutrinária a favor da Monarquia tradicional. E, por outro lado, com o sentido exacto de que mais vale um dos bons do que um milhão dos maus, também, então, a sua acção se exerce, silenciosamente, junto do Senhor D. Manuel II, com quem manteve correspondência, no sentido de provar a El-Rei que tinha caducado o seu juramento aos princípios constitucionais e que era necessário levar a efeito a unidade doutrinaria da Causa Monárquica.
Vem Salazar. Alfredo Pimenta continua a ensinar a doutrina monárquica. Mas quem não vê, em muitas das suas páginas, que elas são especialmente dirigidas ao Sr. Presidente do Conselho? Quem não vê que, quando isso vinha a propósito, Alfredo Pimenta lembrava a Salazar a fragilidade de tudo isto a que já se chamou Estado Novo? Quem não tem ideia de que Alfredo Pimenta lembrava constantemente ao Sr. Presidente do Conselho, o desastrado fim a que estaria condenada toda a sua obra admirável, de mais de duas décadas, se não lhe assegurasse o futuro — preparando o regresso do Rei?
«Pretender que o regime salazariano sobreviva a Salazar — dizia ele — é uma ilusão que pode sair caríssima ao Povo português — em dinheiro, em vidas, em sangue e em honra.» Dizia mais: que o Povo português «não vê em Salazar o primeiro ministro de uma República mas sim o Chefe de uma Nação, o precursor do Rei».
Ele escreveu isto — e muito mais — em artigos de jornal ou em livros que muita gente leu. Mas é flagrante que, na sua intenção profunda, estas palavras foram escritas para serem meditadas por um Homem. O resto era o menos.
IV
Qual era a doutrina ?
A doutrina foram os séculos que a fizeram, moldando as instituições ao carácter do Povo, fazendo a Nação e dando-lhe possibilidade de vida. A doutrina não é o produto da imaginação de um homem — como a que a Revolução Francesa consagrou e exportou. Assenta nas bases firmes de uma História de muitos séculos, acompanhou um Povo inteiro no seu longo evoluir, em horas de grandeza como em momentos de luto e desespero. Deu à Nação consciência da sua unidade, fez dela um corpo inteiro, obedecendo a um pensamento superior e cumprindo admiravelmente o seu destino. A sua lógica é a experiência, o seu fundamento a Tradição e a sua razão de ser é a razão de ser da própria História do Povo que serviu.
Ao doutrinador, em matéria como esta, cumpre ir à História e tirar dela os princípios que informaram a organização social do País. Cumpre-lhe analisar as instituições, acompanhá-las na sua evolução histórica — expondo os resultados dessa análise. Mas doutrinar não é expor friamente, secamente, as ideias e os princípios. É alguma coisa mais. É mostrar as vantagens e virtudes das instituições e as suas possibilidades de adaptação. É fazer a defesa dessas ideias e desses princípios. É dar à exposição um sopro de vida e de alma! E aqui, já o homem que doutrina é, em certa medida, um criador.
Qual o fim de toda a acção doutrinária, entendida como apostolado e missão? É chamar os outros para a nossa verdade. É mostrar-lhes o erro em que se encontram e procurar desviá-los dele. É dizer-lhes as nossas razões e a superioridade dos nossos princípios.
Este é um dos aspectos.
Porque não se doutrina apenas para os que estão no erro. É preciso, também, ensinar os que estão na verdade — mas ignoram porquê. É preciso fazer, de elementos amorfos, elementos conscientes. E então, a actividade consiste, neste caso, em explicar-lhes que a verdade é aquela, aquele o caminho verdadeiro, por tais e tais razões, por estes e estes fundamentos. E aqui, entra, ainda, uma parte de criação. Porque o doutrinador político e social, ao justificar as suas ideias, mesmo que sejam obra da História e de um Povo inteiro, desenvolvidas através dos séculos e da experiência, ao explicar os seus fundamentos, como ao fazer a sua exposição apaixonada, deixa sempre inevitavelmente, nessas operações, qualquer coisa de seu, da sua própria alma, da sua própria inteligência. E nessa medida, ele é um criador.
Alfredo Pimenta foi um doutrinador de Portugalidade, conceito que abrange tudo o que é típica e especificamente nosso, isto é, as instituições e as ideias que são fruto do génio português, a civilização que nós criamos e espalhamos pelo mundo. Portugalidade, em oposição à Latinidade, à Hispanidade, e até, à Lusitanidade. Em oposição às duas primeiras porque, dentro delas, ou nada significamos ou somos confundidos. E em oposição à Lusitanidade, porque Portugal não é precisamente o mesmo que Lusitânia, visto esta não ser toda nossa.
Em matéria político-social, a Portugalidade compõe-se de vários elementos: uns que a criaram e estão, portanto, na sua origem e lhe são, até, anteriores, como a Monarquia; outros que a integraram, completaram e desenvolveram, como o Nacionalismo e a Tradição.
Antes de sermos uma nacionalidade, já éramos um Estado, já éramos uma Monarquia. A Nação, isto é, a consciência de um passado comum, de interesses e de aspirações comuns, surgiu mais tarde e foi obra dos seus Reis e da Igreja Católica. Eis porque um doutrinador de Portugalidade, como o foi Alfredo Pimenta, tem de, fatalmente, defender a Igreja e defender a Realeza. Defender a Igreja, primeiro, porque esta representa Deus na terra, e as sociedades humanas nascem, desenvolvem-se e existem, para servir um fim espiritual, ou seja, para servir a Deus. Depois, porque é em Deus que reside a origem do Poder, para a Monarquia hereditária. E, finalmente, porque, como Alfredo Pimenta escreveu, se «foi a espada dum Rei que fez Portugal», fê-lo «por amor da Cruz e para servir a Cruz». E acrescentava: «Português que não seja fiel a esta dupla tradição religiosa e política, é português transviado por influências estrangeiras ao espírito, aos sentimentos e ao sangue de Portugal, seja qual for o seu valor particular».
Defender a Realeza, porque uma Nação não é o dia de hoje, é o que passou e é o que virá, os seus mortos e os seus heróis, a sua saudade e as suas esperanças. E se «o Rei é anterior à Nação», é, também, o representante visível de uma Dinastia, isto é, e ainda empregando uma expressão de Alfredo Pimenta, «o elo vivo e activo que liga o Passado ao Futuro».
Na actividade doutrinária de Alfredo Pimenta, se há, como não podia deixar de ser, um aspecto positivo, há também um aspecto negativo.
As ideias da Revolução penetraram profundamente nos espíritos, dementaram a Nação, foram consagradas nas constituições, o Estado aceitou-as e obedeceu-lhes. Era preciso, pois, antes de mais, destruir todas as suas influências perniciosas e funestas, pôr a nu os seus sofismas e as suas mentiras. Eis o aspecto negativo, importantíssimo como pressuposto de toda a acção positiva.
Era preciso combater o espírito democrático, provar que a Democracia não passa de uma mistificação — aspecto negativo — e opor-lhe a Monarquia Tradicional e o Nacionalismo Integral — aspecto positivo. Era preciso condenar o liberalismo político, estrangulador das nossas regalias municipais e das nossas liberdades profissionais e corporativas, denunciando a burla do Poder que emana da Urna e do Voto, para se lhe opor o Autoritarismo contra-revolucionário. «O homem, munido do papelinho branco, é omnipotente, é omnisciente»? Oiçam, ainda, Alfredo Pimenta: «Um milhão de homens de um lado, outro milhão de homens de outro lado. Empate. Quem vai desempatar? O Pistautira (oh!) que se esquecera de que era o grande dia do Povo Soberano. Vão chamar o Pistautira! E o Pistautira chega, e vota. E desempata... Quem foi omnipotente? Quem foi omnisciente? O Pistautira...»
Foi, assim, orientada nestes dois aspectos, a acção doutrinária de Alfredo Pimenta: desfazer os mitos e refazer as realidades, combater os desvios nefastos e apontar o caminho verdadeiro. Numa época desorientada e quase demente, a sua palavra firme, de razão e coerência, foi como fio de água límpida onde irão sempre refrescar-se os que estejam fartos de malabarismos e tenham sede de verdade e de raciocínios claros.
E, para terminar, duas palavras mais. Apenas duas.
Há homens de quem se pode dizer, em verdade, que valeu bem a pena terem passado neste mundo, quanto mais não fosse, ou que mais não valessem, pelo exemplo que deixaram. Alfredo Pimenta pertence incontestavelmente, a esta categoria.
Está, ainda, fresca a terra da sua sepultura. Ainda não cessaram, à volta do seu nome, os ódios e os despeitos. Rugem, ainda, as vozes de rancor. Mas nem os ódios, por mais ferozes, nem os despeitos, por mais ignóbeis, nem o rancor, por mais repugnante, conseguirão, de forma alguma, diminuir a memória do homem, cuja vida foi magnífica lição de carácter, de coragem e desassombro; cuja vida foi exemplo verdadeiro de trabalho exaustivo, de estudo sério e consciente.
Uma vida inteira dedicada ao serviço da Verdade, à Cultura do seu País, ao combate leal pelas suas ideias, à ternura e ao carinho do seu lar. Há ideal mais belo? Há exemplo melhor, agora, que o carácter é feito de transigências, de falsificações e de renúncias? Há exemplo melhor, agora, que a coragem e o desassombro dependem da maior ou menor capacidade do cordão umbilical? Há exemplo melhor, nestes tempos, em que a Verdade anda arrastada pelas ruas da amargura, mutilada e esquecida ?
Júlio Evangelista
(1 — Discurso proferido na homenagem ao Dr. Alfredo Pimenta, promovido pela Junta Escolar Monárquica do Porto, em 28 de Abril de 1951)
(Publicado in «Gil Vicente», vol. II — 2.ª série, págs. 185/195, nº 11/12, Novembro/Dezembro de 1951)
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