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domingo, outubro 23, 2005

PÁGINAS MINHOTAS 

Quando saí de Lisboa, a manhã estava clara e fria — promessa de viagem agradável, em temperatura de gente. Vinha-me o coração envolvido em melancolias, destas que por muito que a gente as afaste sempre se prendem, em farrapos de névoa, ou rastos de perfume.
Pela primeira vez, ao passar em Coimbra, voltei a cara para a não ver, porque pela primeira vez me senti algemado a fortes saudades dos meus vinte e cinco anos — quando dali parti, cheio de saúde, de energia, de audácia para enfrentar a vida que se me abria cheia de lutas, de perigos, traições e calvários...
E hoje, vejo, no horizonte, os mesmos calvários, as mesmas traições, os mesmos perigos, as mesmas lutas, mas eu não sou mais do que o velho gladiador de músculos lassos, olhar quebrado, e fé abalada...
Por alturas de Espinho, começa a chover. Recordo certos versos tristes de Verlaine, e à medida que o rápido avança, mais densa é a chuva.
E ao entrarmos em Campanhã, caía a potes. O trasbordo na Trofa é difícil — debaixo de água. Não sei porque é que ainda não ocorreu a quem tem de olhar por estas coisas, mandar fazer um alpendre no cais que fica entre a linha do Minho e Douro e a linha da Companhia do Norte.
O Manuel do Conde foi-me buscar à Trofa. Tomamos pela estrada de Famalicão.
Os vinhedos estão florescentes. Os milhos estão famosos. Ano de vinho e ano de pão. Ano dos pobres, e é quanto faz minga. Por alturas de Ronfe, vejo a Penha fechada em nuvens. Chove.
Porquê tanta chuva neste dia, santo Deus?
O coração distante, o pensamento distante, todo eu distante, entro, pela primeira vez, no sanatório da minha alma, sem alegria, sem prazer e sem interesse. Oiço as velhas oliveiras que, a agitar-se as suas folhas esguias, me perguntam que tal venho; sinto os choupos amigos que fazem barreira carinhosa para que o Sol me não invada o jardinzinho, saudar-me; noto as boas vindas da hera que me cobre as paredes da casa: faz-me estremecer o gorgolejar da fonte cheia de água a cair no tanque largo cheio de água.
Os livros da Livraria da Mumadona, como os meus amigos chamam à minha livrariazinha da Madre de Deus; as flores que poisam nas mesas; as coisas da casa — tudo me dá boas-vindas afáveis e carinhosas.
Mas o coração está longe, o pensamento está longe, todo eu estou longe, numa distância imprecisa, mergulhada em neblinas — ante-câmara dum destino que não sei definir, feito de pontos de interrogação que não sei decifrar.
Tudo isto está pouco mais ou menos na mesma. A ramada mais coberta promete. O limoeiro novo que há quatro anos foi enxertado tem seis limões, grandes, magníficos, — os primeiros limões que dá, decidido pelo visto a substituir, com vantagem o velho limoeiro de cem anos que junto da casa do caseiro, é o nosso enlevo, como foi o enlevo dos antepassados.
Na parte mais alta da terra, onde a água da rega não chega, o milho está atrevido. Ano molhado — cantam as águas das fontes, deliram as terras secas.
O frio queimou o centeio. Mas deve haver milho em abundância, mesmo com o desconto da acção da bicha que, nas terras fundas, sem possibilidades de escoamento, se fica a devorar as raízes do milho.
E já a Luísa do Carregal a queixar-se: «a bicha comeu muito, mas há-de ser o que o Senhor quiser...».
No pinheiral, os pinheiros novos estão bonitos; altos, a engrossar, as suas coroas de perfil gótico, que lindas estão! Como eu gostaria de trazer luz no pensamento, e sossego no coração, para os contemplar com mais vagar!
Verdadeiramente de novo aqui pelos sítios, a crise do trabalho. As fábricas estão a meia ração. De sorte que este mulherio e este rapazio que trocaram a lavoura e as indústrias domésticas pela fábrica, ou trabalham só meio dia, ou trabalham só meia semana.
Pergunto a um industrial: «que é isto?». Ele responde: «não há quem compre».
Não sei onde isto se dirige. O industrial, em vez de desenvolver a sua indústria, em vez de empregar o seu capital no desenvolvimento da indústria que o enriqueceu, vai procurar a propriedade, e é na propriedade que emprega o capital.
A terra está a passar do lavrador que empobreceu nela, para as mãos do industrial, habituado à vida de escritório e da oficina.
Hoje não são os lavradores quem compra terras: são os industriais.
A par do lavrador que empobreceu na terra, há o proprietário que a herdou e a não ama. Também esse a larga, por se não poder aguentar. Que a terra é arisca. Quer amor, canseira, sacrifício e desvelo.
E eu não sei para onde caminhamos, nesta progressiva industrialização — que rouba braços à Lavoura, continuidade e firmeza à Família, fé às almas, disciplina aos sentimentos, saúde aos corpos.
A máquina é o grande verme destruidor da sociedade tradicional. É incomparável, é incalculável, é assombroso o mal que a máquina trouxe ao mundo.
O seu activo comparado com o seu passivo é zero.
É mais rápida do que o homem; é mais intensiva do que o homem. Mas está muito longe a perfeição da sua obra comparada com a perfeição da obra humana. Não há perfeição mecânica que chegue aos pés da perfeição dos dedos do homem.
A máquina é cega e inconsciente; os dedos do homem vêem e são responsáveis.
Não sei onde vai parar o mundo com esta maquinização progressiva. Não haver travão decisivo que lhe barre o caminho, e nos faça regressar à utilização do homem!
A máquina é o grande verme destruidor da sociedade. Galga distâncias infinitas. Para quê? Ela não existia e nem por isso deixaram de se erguer no mundo as civilizações incomparáveis do Oriente e as do Ocidente, criando o que nunca a civilização da máquina será capaz de criar.
Antes da máquina, o homem era modesto e comedido nas suas aspirações; não ultrapassava o humano.
Hoje, vítima da máquina, quer invadir o divino, e descobrir o segredo do peixe, e descobrir o segredo da ave. E seria ridículo apenas, se não fosse quase sempre trágico.
Eu amo a Terra. Ela foi, através da nossa história, o grande recurso da nossa existência colectiva. Vejo-a sacrificada e abandonada, sangrada e escarnecida...
Guimarães, Casa da Madre de Deus.
Alfredo Pimenta
(In A Voz, n.º 4458, págs. 1/2, 26.07.1939)

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