quarta-feira, novembro 23, 2005
CAMÕES E EMINESCU
Segue-se o artigo publicado por Mircea Eliade no semanário «Acção» de 3-IX-1942, quando da sua permanência em Portugal.
Quero começar por determinar a finalidade deste artigo, que não é trabalho de história literária comparada e em que não vou rebuscar as eventuais influências literárias que se poderiam encontrar na obra do grande escritor romeno Mihai Eminescu. Aproximando os nomes de dois dos maiores poetas da Latinidade, penso sobretudo na contribuição que cada um deles trouxe ao enriquecimento do génio latino.
É por vezes embaraçoso falar do «génio latino». Com efeito, como todas as expressões análogas, esta é apenas aproximativa, dada a amplidão das realidades que tenta condensar numa fórmula sintética. (…)
Pensou-se que esta designação «génio latino» era excessivamente vaga, porque se refere a realidades bastante heterogéneas: Vergílio e Rabelais, o direito romano e a poesia medieval, Racine e Leopardi, S. João da Cruz e Voltaire, etc.
Creio pelo contrário que a expressão «génio latino» – pelo menos no sentido que cada um de nós está habituado a dar-lhe – é demasiado rígida, porque não se refere suficientemente às realidades. Quando se diz «génio latino» ou espiritualidade latina pensa-se imediatamente em Vergílio, Petrarca ou Racine. Imaginamo-lo, esse «génio latino», como um reservatório inesgotável de valores espirituais límpidos, equilibrados, lógicos, eurítmicos.
Reduziu-se a multiplicidade dos recursos criadores latinos a um pequeno número de qualificativos: clareza, proporção, graça, simplicidade, espontaneidade, etc.
Limitou-se, por consequência, o conceito de «latinidade», em vez de o alargar o suficiente para que ele pudesse consubstanciar todas as criações latinas. (...)
As coisas não são tão simples. (...)
Existe na substância de cada cultura uma contradição originária, um conflito, ou, se quiserem, uma ambivalência que não encontra o seu equilíbrio senão em sínteses extremamente raras. (…) Não é exacto portanto pensar que o «génio latino» exclui sempre as criações que não se enquadram no esquema rígido: clareza, equilíbrio, etc.
Este génio continua «latino» mesmo quando se exprime no patético e na auto-ironia de Cervantes, no pessimismo de Leopardi, no fervor de Chateaubriand, ou na riqueza confusa de Vítor Hugo. (…)
Comparada às outras estruturas espirituais europeia – germânica, anglo-saxónica, eslava – a latinidade manifesta-se como a mais rica, a mais complexa, e possuindo uma possibilidade inesgotável de se renovar, de se ultrapassar e de renascer das próprias cinzas. Camões e Eminescu são ilustrações magníficas desta força criadora.
Agora algumas observações preliminares: Há povos aos quais incumbe uma missão histórica e outros cujo papel é principalmente passivo; são estes últimos os povos que se submetem à «história».
A Missão histórica de uma nação julga-se segundo as suas criações espirituais. Só os valores culturais justificam a existência e a missão de um povo.
A história não leva em conta os povos espiritualmente estéreis.
Evidentemente, há nações ricas em criações colectivas – como os tesouros folclóricos; outros há cuja aptidão se desenvolve no sentido das criações individuais – como as modernas culturas europeias. Mas fundamentalmente trata-se sempre do mesmo «Gesto» espiritual: a criação. (…)
O que Camões trouxe de novo à cultura universal foi justamente a transformação em valores espirituais das «geografias» e das experiências até então consideradas «bárbaras» e sem nenhuma significação superior.
Rémy de Gourmont escreveu uma vez que o mar é uma descoberta dos românticos e isto talvez seja verdadeiro para o mar nórdico, coberto de brumas, povoado de fantasmas. Mas o glorioso Atlântico e os mares orientais são uma descoberta estética de Camões. (…)
Camões inaugurou assim (…) o exotismo na literatura europeia.
Chateaubriand criou a «moda» exótica, mas Camões justificou com o seu génio uma corrente exótica muito complexa, que começou com a apologia do «bom selvagem» do século XVIII e acaba com Gauguin, as canções negras e a moda da «pele bronzeada» dos nossos dias. (…)
A revolução camoneana consistiu em ter outorgado direitos de cidade não só à beleza das morenas, como também às belezas bárbaras e exóticas – pretas como aquela cativa, ou chinesas, como Dinamene. (…)
Mas queremos sublinhar desde já a missão latina deste grande escritor português, que incorporou no universo estético europeu inúmeras «Terras incógnitas», que transformou em «bens espirituais» uma infinidade de tesouros ignorados, que enriqueceu a substância da latinidade de experiências, de paisagens e de «gestos» considerados até ele sem nenhuma possibilidade de serem transmudados em objectos de contemplação, em valores espirituais em circulação.
A intervenção de Camões no universo mental europeu permite-nos compreender melhor a latinidade.
É evidente que o contributo de Camões destrói a fórmula de um génio latino reduzido a alguns atributos, como sejam: a elegância, o equilíbrio, a clareza…
Encontramos um fenómeno similar no outro extremo da latinidade europeia, na Roménia.
É o caso do poeta romeno Mihai Eminescu (1850-1889), um dos maiores génios líricos a latinidade, que também poderosamente contribuiu para o alargamento do universo mental europeu. (…)
Exactamente como Camões, Eminescu incorporou uma vasta e selvagem «terra incógnita» e transformou em valores espirituais experiências até a ele consideradas desprovidas de significação.
Camões enriqueceu o mundo latino com paisagens marítimas, flores exóticas, belezas excêntricas.
Eminescu enriqueceu o mesmo «mundo» com uma novidade geográfica – a Dácia – e com novos mitos. Evidentemente, antes dele a poesia popular romena – uma das mais ricas do mundo – tinha criado já, com os mesmos materiais, algumas obras-primas; mas Eminescu é, além de um continuador desta inspiração popular romena, um génio autónomo, criador de mitos.
A Dácia era, para os primeiros romanos, um país de bárbaros, povoado de Citas e de Getas, sacudido pelas tempestades de neve vindas da planície russa.
Lembremo-nos das lamentações de Ovídio, no seu exílio de Tomis (a Constança de hoje), nas margens do Mar Negro: «São intoleráveis estes céus e estas águas. Não sei porquê, a própria terra me desagrada» (Tristia – III, 3). (…)
Em resumo, uma terra «bárbara» fora da civilização.
Bárbaros designa, em grego, o que «gagueja», isto é: o que não pode exprimir-se correctamente. (…)
E a língua latina criando uma nova língua, o romeno, ajudou os habitantes da Dácia a exprimirem-se correctamente, isto é, a perderem o seu «gaguejar» de bárbaros. (…)
Através de um poema de Mihai Eminescu, «A súplica dum Dácio» [Rugãciunea unui Dac], a sensibilidade latina é enriquecida com uma visão trágica da vida que se não parece com a de nenhum dos poetas pessimistas europeus.
A sua obra-prima, «Luceafãrul» (A Estrela da Manhã), pode ser considerada como um dos mais belos poemas da literatura mundial e a sua metafísica, a amplitude cósmica em que se desenrola o drama de Hyperion, a beleza estranha, pode dizer-se litúrgica, dos seus versos, são outras tantas adições ao universo mental da latinidade. (…)
Uma doce resignação perante o dever universal, um melancólico desejo de reintegração no Cosmos, de refazer a unidade primordial (quando o indivíduo estava ainda incorporado no Todo), um sentimento de isolamento metafísico e, especialmente, o inefável «dor» romeno – a «saudade» do outro extremo da latinidade – são outros tantos acréscimos ao repertório espiritual latino.
O pessimismo de Eminescu tem a sua origem numa visão trágica da existência, mas essa visão é sóbria, digna, viril, e nela se encontra a resignação calma dos Dácios e o seu desprezo pela morte e pelos sofrimentos físicos.
O génio latino enriqueceu-se através da criação poética de Eminescu, exactamente como se enriqueceu com as criações de Campes.
Bastam, pois, estes dois exemplos para nos convencermos de que o «génio latino», longe de se repetir indefinidamente em criações estereotipadas, ou pelo menos pertencentes à mesma família espiritual, conserva ainda uma prodigiosa capacidade de renovação, transformando constantemente matérias brutas em valores espirituais, absorvendo infatigavelmente «novas geografias» e novos universos mentais. (…).
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Quero começar por determinar a finalidade deste artigo, que não é trabalho de história literária comparada e em que não vou rebuscar as eventuais influências literárias que se poderiam encontrar na obra do grande escritor romeno Mihai Eminescu. Aproximando os nomes de dois dos maiores poetas da Latinidade, penso sobretudo na contribuição que cada um deles trouxe ao enriquecimento do génio latino.
É por vezes embaraçoso falar do «génio latino». Com efeito, como todas as expressões análogas, esta é apenas aproximativa, dada a amplidão das realidades que tenta condensar numa fórmula sintética. (…)
Pensou-se que esta designação «génio latino» era excessivamente vaga, porque se refere a realidades bastante heterogéneas: Vergílio e Rabelais, o direito romano e a poesia medieval, Racine e Leopardi, S. João da Cruz e Voltaire, etc.
Creio pelo contrário que a expressão «génio latino» – pelo menos no sentido que cada um de nós está habituado a dar-lhe – é demasiado rígida, porque não se refere suficientemente às realidades. Quando se diz «génio latino» ou espiritualidade latina pensa-se imediatamente em Vergílio, Petrarca ou Racine. Imaginamo-lo, esse «génio latino», como um reservatório inesgotável de valores espirituais límpidos, equilibrados, lógicos, eurítmicos.
Reduziu-se a multiplicidade dos recursos criadores latinos a um pequeno número de qualificativos: clareza, proporção, graça, simplicidade, espontaneidade, etc.
Limitou-se, por consequência, o conceito de «latinidade», em vez de o alargar o suficiente para que ele pudesse consubstanciar todas as criações latinas. (...)
As coisas não são tão simples. (...)
Existe na substância de cada cultura uma contradição originária, um conflito, ou, se quiserem, uma ambivalência que não encontra o seu equilíbrio senão em sínteses extremamente raras. (…) Não é exacto portanto pensar que o «génio latino» exclui sempre as criações que não se enquadram no esquema rígido: clareza, equilíbrio, etc.
Este génio continua «latino» mesmo quando se exprime no patético e na auto-ironia de Cervantes, no pessimismo de Leopardi, no fervor de Chateaubriand, ou na riqueza confusa de Vítor Hugo. (…)
Comparada às outras estruturas espirituais europeia – germânica, anglo-saxónica, eslava – a latinidade manifesta-se como a mais rica, a mais complexa, e possuindo uma possibilidade inesgotável de se renovar, de se ultrapassar e de renascer das próprias cinzas. Camões e Eminescu são ilustrações magníficas desta força criadora.
Agora algumas observações preliminares: Há povos aos quais incumbe uma missão histórica e outros cujo papel é principalmente passivo; são estes últimos os povos que se submetem à «história».
A Missão histórica de uma nação julga-se segundo as suas criações espirituais. Só os valores culturais justificam a existência e a missão de um povo.
A história não leva em conta os povos espiritualmente estéreis.
Evidentemente, há nações ricas em criações colectivas – como os tesouros folclóricos; outros há cuja aptidão se desenvolve no sentido das criações individuais – como as modernas culturas europeias. Mas fundamentalmente trata-se sempre do mesmo «Gesto» espiritual: a criação. (…)
O que Camões trouxe de novo à cultura universal foi justamente a transformação em valores espirituais das «geografias» e das experiências até então consideradas «bárbaras» e sem nenhuma significação superior.
Rémy de Gourmont escreveu uma vez que o mar é uma descoberta dos românticos e isto talvez seja verdadeiro para o mar nórdico, coberto de brumas, povoado de fantasmas. Mas o glorioso Atlântico e os mares orientais são uma descoberta estética de Camões. (…)
Camões inaugurou assim (…) o exotismo na literatura europeia.
Chateaubriand criou a «moda» exótica, mas Camões justificou com o seu génio uma corrente exótica muito complexa, que começou com a apologia do «bom selvagem» do século XVIII e acaba com Gauguin, as canções negras e a moda da «pele bronzeada» dos nossos dias. (…)
A revolução camoneana consistiu em ter outorgado direitos de cidade não só à beleza das morenas, como também às belezas bárbaras e exóticas – pretas como aquela cativa, ou chinesas, como Dinamene. (…)
Mas queremos sublinhar desde já a missão latina deste grande escritor português, que incorporou no universo estético europeu inúmeras «Terras incógnitas», que transformou em «bens espirituais» uma infinidade de tesouros ignorados, que enriqueceu a substância da latinidade de experiências, de paisagens e de «gestos» considerados até ele sem nenhuma possibilidade de serem transmudados em objectos de contemplação, em valores espirituais em circulação.
A intervenção de Camões no universo mental europeu permite-nos compreender melhor a latinidade.
É evidente que o contributo de Camões destrói a fórmula de um génio latino reduzido a alguns atributos, como sejam: a elegância, o equilíbrio, a clareza…
Encontramos um fenómeno similar no outro extremo da latinidade europeia, na Roménia.
É o caso do poeta romeno Mihai Eminescu (1850-1889), um dos maiores génios líricos a latinidade, que também poderosamente contribuiu para o alargamento do universo mental europeu. (…)
Exactamente como Camões, Eminescu incorporou uma vasta e selvagem «terra incógnita» e transformou em valores espirituais experiências até a ele consideradas desprovidas de significação.
Camões enriqueceu o mundo latino com paisagens marítimas, flores exóticas, belezas excêntricas.
Eminescu enriqueceu o mesmo «mundo» com uma novidade geográfica – a Dácia – e com novos mitos. Evidentemente, antes dele a poesia popular romena – uma das mais ricas do mundo – tinha criado já, com os mesmos materiais, algumas obras-primas; mas Eminescu é, além de um continuador desta inspiração popular romena, um génio autónomo, criador de mitos.
A Dácia era, para os primeiros romanos, um país de bárbaros, povoado de Citas e de Getas, sacudido pelas tempestades de neve vindas da planície russa.
Lembremo-nos das lamentações de Ovídio, no seu exílio de Tomis (a Constança de hoje), nas margens do Mar Negro: «São intoleráveis estes céus e estas águas. Não sei porquê, a própria terra me desagrada» (Tristia – III, 3). (…)
Em resumo, uma terra «bárbara» fora da civilização.
Bárbaros designa, em grego, o que «gagueja», isto é: o que não pode exprimir-se correctamente. (…)
E a língua latina criando uma nova língua, o romeno, ajudou os habitantes da Dácia a exprimirem-se correctamente, isto é, a perderem o seu «gaguejar» de bárbaros. (…)
Através de um poema de Mihai Eminescu, «A súplica dum Dácio» [Rugãciunea unui Dac], a sensibilidade latina é enriquecida com uma visão trágica da vida que se não parece com a de nenhum dos poetas pessimistas europeus.
A sua obra-prima, «Luceafãrul» (A Estrela da Manhã), pode ser considerada como um dos mais belos poemas da literatura mundial e a sua metafísica, a amplitude cósmica em que se desenrola o drama de Hyperion, a beleza estranha, pode dizer-se litúrgica, dos seus versos, são outras tantas adições ao universo mental da latinidade. (…)
Uma doce resignação perante o dever universal, um melancólico desejo de reintegração no Cosmos, de refazer a unidade primordial (quando o indivíduo estava ainda incorporado no Todo), um sentimento de isolamento metafísico e, especialmente, o inefável «dor» romeno – a «saudade» do outro extremo da latinidade – são outros tantos acréscimos ao repertório espiritual latino.
O pessimismo de Eminescu tem a sua origem numa visão trágica da existência, mas essa visão é sóbria, digna, viril, e nela se encontra a resignação calma dos Dácios e o seu desprezo pela morte e pelos sofrimentos físicos.
O génio latino enriqueceu-se através da criação poética de Eminescu, exactamente como se enriqueceu com as criações de Campes.
Bastam, pois, estes dois exemplos para nos convencermos de que o «génio latino», longe de se repetir indefinidamente em criações estereotipadas, ou pelo menos pertencentes à mesma família espiritual, conserva ainda uma prodigiosa capacidade de renovação, transformando constantemente matérias brutas em valores espirituais, absorvendo infatigavelmente «novas geografias» e novos universos mentais. (…).
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