quarta-feira, novembro 23, 2005
Mircea Eliade em Portugal
Publica-se a seguir um interessante estudo de Albert von Brunn — Mircea Eliade em Portugal (1940-1944), originalmente dado a público na Revista ICALP, vol. 20 e 21, de Julho - Outubro de 1990, 37-50.
Mircea Eliade em Portugal (1940-1944)
«…E, de repente, surgiram na minha memória as imagens dos parques na província portuguesa. Lembro-me da sua melancolia terrível. Mundos há muito mortos que só aguardam o punho vigoroso do bárbaro para se descomporem» (1). Este apontamento de Mircea Eliade no seu diário (7-II-1965) evoca uma época até agora pouco conhecida na vida do grande sábio romeno – os seus anos em Lisboa.
Em 1941 Mircea Eliade foi nomeado secretário de imprensa na capital portuguesa. Esta impressionou-o muito favoravelmente:
«Lisboa conquistou-me desde o primeiro dia (…). No último ano da minha estadia em Calcutta tinha começado a aprender o português com método e paixão (2)». Mircea Eliade entrou em contacto com jornalistas portugueses e com o director do então Ministério de Informação e Propaganda António Ferro (1895- 1956). Ao mesmo tempo iniciou o estudo da obra de Camões.
Camões e Eminescu
Durante a sua estada na Índia (1928-1931) Mircea Eliade tinha-se apaixonado por "Os Lusíadas": «O meu desejo secreto era o de me concentrar no estudo da vida e da obra de Camões. Pouco a pouco comprei todas as edições anotadas dos Sonetos e de Os Lusíadas e, numa tarde de primavera, tive a sorte de encontrar na loja dum alfarrabista a famosa monografia de Carolina Michaëlis de Vasconcellos, há muito esgotada. A minha paixão por Camões tinha ainda um outro motivo: a sua biografia e a sua poesia estão ligadas a uma região da Índia que eu não conhecera – Goa e a Costa de Malabar. Tinha o propósito de escrever um livro sobre Camões e a Índia portuguesa. Achava interessante (e dalguma maneira simbólico) o facto de que um romeno que vivera e estudara no Bengala apresentasse o mais grande poeta lusitano que tinha vivido – há três séculos – na outra costa, a costa ocidental da Índia. Este livro, porém, como muitos outros, não passou dum projecto inacabado (3).»
O primeiro resultado dos esforços de Mircea Eliade foi um artigo intitulado «Camões e Eminescu» no jornal "Acção" (3-IX-1942). «Quero começar por delimitar a finalidade deste artigo»,escreve Eliade, que não é um trabalho de história literária e em que não vou rebuscar as eventuais influências camoneanas (3) que se poderiam encontrar na obra do grande escritor romeno Mihai Eminescu. Aproximando os nomes de dois dos maiores poetas da latinidade, penso sobretudo na contribuição positiva que cada um deles trouxe ao enriquecimento do génio latino.» A literatura deve a Camões a descoberta estética do oceano, até à data uma «terra incógnita», ao passo que Eminescu, o poeta nacional romeno, descobrira uma província considerada até então como bárbara pelos romanos: a Dácia. Uma terra privada de cultura, como a definiu Ovídio, foi assim descoberta pelo génio de Eminescu, que deu um valor universal aos seus mitos.
Eliade estudou durante toda a sua vida a poesia de Mihai Eminescu que era para ele – o emigrante – a via de acesso mais directa às próprias raízes, à sua identidade e criatividade. Em 1939 Eliade tinha publicado um estudo, Insula luiEuthanasius, onde abordara a novela Cezara, e chamara a atenção para o facto de esta «ínsula de Eutanásio», um episódio da novela de Eminescu, constituir a visão mais acabada do paraíso em toda a literatura romena, um paraíso muito particular: para Eminescu, o éden significa reunificação com a natureza, diluição do «eu» no bosque, na luz, na atmosfera. Eliade retomou estas ideias no artigo português que publicou no jornal Acção (1-X-1942) sob o título: «Eminescu – poeta da raça romena», ensaio que depois serviu de prefácio à primeira antologia portuguesa dos versos de Mihai Eminescu (4).
Além dos seus trabalhos sobre Camões e Eminescu, Eliade apresentou ao público leitor português uma série de personalidades romenas: o hispanista Alexandru Popescu-Telega (*1889, em: A Voz, 6-II-1943), o historiador Nicolae Iorga (1871-(1885-1944, em: Acção, 26-VIII-1943).
Os Romenos, Latinos do Oriente
Além da sua actividade diplomática e periodística, Eliade elaborou, em 1942-1943, uma introdução à história da cultura romena, que saiu em 1943, sob o título "Os Romenos, Latinos do Oriente". No seu livro, Eliade parte de uma ideia básica: A missão do povo romeno consiste em manter aberta a foz do Danúbio para a Europa. Os romenos – povo pioneiro à margem da Europa – cumpriram esta missão durante séculos, primeiro na luta contra os turcos e mais tarde contra a Rússia bolchevista. Esta situação precária de povo de fronteira manifestar-se-ia – segundo Eliade – em dois mitos centrais: a lenda de Mestre Manolé e a balada Miorita (O Cordeirinho). Ambas as lendas têm uma coisa em comum: o sacrifício é o centro da acção.
No seu artigo «A Lenda de Mestre Manolé» (5), Mircea Eliade apresenta esta balada aos leitores da Acção (29-IV-1943): «A Lenda de Mestre Manolé (…) localiza-se em torno da construção da Catedral de Curtea de Argesh, que se efectuou nos princípios do século XVI, mas a sua origem é muito mais remota (…). A balada começa pela procura dum lugar para a criação do mosteiro.
O Príncipe lendário, Negru Voda, com Mestre Manolé e mais nove mestres construtores, desce à ribeira do Argesh, em demanda de «um muro abandonado e por acabar» (…). Encontrado, por fim, o lugar, Mestre Manolé com os seus nove companheiros deitaram-se ao trabalho. Mas tudo o que levantavam de dia vinha abaixo, misteriosamente, de noite. O Príncipe ameaçou-os de os murar vivos, nos caboucos, se a construção não progredisse(…). Enquanto os seus companheiros recolhiam, vinda a noite, às
suas casas, Manolé ficava sozinho (…). Uma noite sonhou que o trabalho de todos seria vão (…) enquanto não fosse murada, em vida, nos alicerces, uma jovem casada. De manhã, Manolé reuniu todos os mestres pedreiros e (…) juraram, em comum, sacrificar a primeira mulher casada que viesse». Quando chegara mulher do mestre pedreiro, ele mesmo tem que murá-la viva no mosteiro. Uma vez terminadas as obras, Manolé suicida-se.
Na balada Miorita o cordeirinho-protagonista anuncia ao seu pastor que os seus parceiros querem matá-lo. Em vez de fugir, o pastor aceita sereno e resignado o seu destino. Pede à sua ovelha favorita que o sepulte junto ao aprisco, sem nunca revelar a sua sorte à mãe, dizendo-lhe que ele teria casado com uma princesa dum país distante. Nos dois mitos, morte e núpcias misturam-se, o sacrifício é interpretado como a reintegração com a Natureza, a própria morte é transfigurada. Estes mitos são, para Eliade, a glorificação da história romena.
Embora os romenos tenham realizado obras primas como os mosteiros da Moldávia, na época de Estêvão o Grande (1457-1504), ou o grande acervo de lírica popular, a Roménia, nunca pôde salvaguardar-se dos golpes da história, dum nova investida de bárbaros. A fusão das grandes corrente culturais que provinham de Bizâncio, Roma, da Montanha de Atos e da civilização francesa criaram uma síntese original na história da cultura europeia.
Em 1941-1942 Eliade trabalhava numa biografia de Salazar. Com a ajuda dos historiadores e jornalistas Manuel Múrias (1900-1960), João Ameal (*1902), Alfredo Pimenta (1882-1950) e Pedro Correia Marques (*1890), Eliade escreveu uma hagiografia do ditador português, hoje em dia francamente obsoleta. O mesmo Eliade mudou depois de perspectiva e revelou-se em 1946 muito mais crítico com respeito a Salazar (6).
Salazar e a Revolução em Portugal saiu em 1942 em Bucareste. O capítulo XIV foi publicado em versão portuguesa no jornal Acção (30-IX-1943). Nas suas Memórias (7) Eliade descreve com luxo de detalhes a génese deste livro, que lhe valeu uma entrevista com o próprio Salazar: «Na tarde de 6 de Julho telefonou-me António Ferro para me anunciar que no dia seguinte ia ser recebido por Salazar às cinco da tarde: Como não encontrei um táxi, cheguei lá quase correndo. O porteiro do Palácio de São Bento perguntou-me para onde ia. “O Senhor Presidente”, respondi. Ele mostrou-me a escada do fundo e disse: “Segundo andar, à direita”. Assim se entra no gabinete do ditador português… Durante aqueles cinco minutos de espera engoli sem fôlego um copo de água: A minha garganta ficara tão seca que receei não poder falar.»
A noite escura da alma
Os últimos dois anos em Lisboa (1943-1944) foram para Eliade um calvário. O que mais o abalou foi a morte de sua mulher, Nina Mares. Para não incomodar o marido, Nina Mares queria ser operada em Bucareste. Quando voltou a Portugal, em Junho de 1943, Eliade verificou que ela estava muito mal.
O médico português aconselhou o internamento num sanatório, a Casa de Saúde e Repouso da Lousã, onde Nina passou dois meses com escassos resultados.
A impressão de tristeza dos parques portugueses de província, que Eliade evocará em 1965, provém com certeza deste período na Lousã. Nina Mares morreu no dia 20 de Novembro de 1944, e Eliade partiu para Paris, rumo ao exílio definitivo. Nos últimos anos da sua vida relembrou a imagem da casa em Cascais: «A casa em que morávamos desde há seis semanas ia ser derrubada até o dia 1.º de Outubro. Vivíamos rodeados de escombros, com um lenço na mão para tapar a boca quando o vento levantava o pó da rua. Esta imagem parecia-me o símbolo duma Europa no fim da Segunda Guerra Mundial(8).»
Noite de São João em Portugal
Na literatura romena, Portugal é uma espécie de planeta desconhecido, uma «terra incógnita» que fica longe de mais para caber dentro de um horizonte real e palpável. A «Ocidental praia lusitana» torna-se, por isso, um pretexto ideal para evocar um
Finisterrae, um liminar entre a realidade e o sonho, entre terra e água. Mircea Eliade, ao lado de Nicolae lorga (1871-1940) e Lucian Blaga (1895-1961) foi um dos poucos romenos que tiveram no nosso século um conhecimento directo do país. Ainda assim, revelou-se incapaz de se subtrair a esta visão mítica. Ao escrever nos anos cinquenta o seu romance "Bosque proibido" (Noite de São João), Eliade escolheu Portugal para criar aí o único ninho de felicidade do romance: A Estufa Fria, no Parque Eduardo VII, Cascais e o Buçaco. O protagonista, Stefan Viziru, chega duas vezes a Portugal no meio de uma Europa em guerra. Numa ilha de felicidade junta-se com o seu amor de juventude, Ileana. Não sabe, porém, reter este momento, decifrar o enigma, perde Ileana para sempre e volta à pátria (9). No prefácio à edição portuguesa do seu romance, Eliade explica a razão da sua escolha, o porquê do ninho de felicidade em Portugal: «Creio que, mais do que qualquer outro trabalho literário meu, este romance poderá interessar o leitor português. Passei cerca de cinco anos em Portugal, e uma parte da acção do romance decorre em Lisboa, Cascais e Coimbra (…) Se os compreendi bem, os Portugueses têm uma determinada concepção do Tempo, da Morte e da História, que lhes permite pressentir o tema central e «secreto») do romance(…). Parece-me que para os Portugueses (como aliás para os Romenos), o Tempo, a História, a Morte e o Amor conservam o carácter de mistérios» (10).
* * *
Do ponto de vista da ciência das religiões, os anos portugueses de Mircea Eliade aportaram relativamente pouco, já que o sábio romeno não teve tempo para elaborar o grande projecto daquela época: a aplicação do seu ensaio sobre o simbolismo aquático à epopeia de Camões. Por outro lado, Eliade ofereceu aos portugueses uma original síntese da história romena: "Os Romenos, Latinos do Oriente" pode considerar-se, sem lugar a dúvidas, um primeiro esboço do que seria, anos mais tarde, a obra "De Zalmoxis a Genghis-Khan" (Paris, 1970), onde ele aborda os temas fundamentais da mitologia popular romena.
Portugal significou para Eliade uma vivência crucial: um adeus à pátria, à própria cultura, à primeira mulher. Só nos últimos anos da vida ele reconstruiu este episódio nas suas "Memórias".
Albert Von Brunn (Zurique)
Anotações
1 Mircea Eliade, Fragments d’un Journal I, 1945-1969. traduit par Luc Badesco. Paris, 1973, p. 482. A tradução portuguesa foi feita directamente do manuscrito original romeno que devo à gentileza do Prof. Mircea Handoca, Bucareste.
2 Mircea Eliade, Mémoire II, 1937-1960. Les moissons du solstice, traduit du roumain par Alain Paruit. Paris, 1988, p. 69. Tradução directa do original romeno.
3 ibidem, p. 70.
4 Mircea Eliade, «Eminescu – poeta da raça romena» em: Acção, 1-X-1942. 2.ª ed. em: Mihai Eminescu, Poezii = Poesias. Lisboa, 1950, pp. 21-32.
5 Mircea Eliade, «A lenda do Mestre Manolé» em: Acção, 29-IV-1943.
6 Mircea Eliade, Salazarsi revolutia în Portugalia. Bucareste, 1942.
Numa página inédita do seu Journal Eliade observa que Salazar mantinha à sua volta «uma roda oportunista, serviçal e medíocre».
(Mircea Handoca, Din nou despre «Memoriile» lui Mircea Eliade em: Revista de istorie si teorie literarã 25 (1987), p. 213).
7 ibidem, [tradução do autor].
8 ibidem, p. 218. [tradução do autor].
9 Mircea Eliade, Bosque proibido. Tradução Maria Leonor Buescu. Lisboa, 1963.
10 ibidem, p. 5. Agradeço a revisão do texto ao Sr. Zeferino Coelho (Editorial Caminho, Lisboa)
A. Bibliografia activa
1. Latina giuta [gintã e reginã…» em: Acção, 5-II-1942.
2. «Camões e Eminescu» em: Acção, 3-IX-1942.
3. «Eminescu – poeta da raça romena» em: Acção, 1-X-1942 (2-ed. em: Mihai Eminescu, Poezii = Poesias. Lisboa, 1950, pp. 21-32).
4. «Canções romenas do Natal» em: A Voz, 25-XII-1942.
5. «Dor, a saudade romena» em: Acção, 31-XII-1942.
6. «Cultura latina: alguns lusófi los romenos» em: A Voz, 6-II-1943.
7. «A lenda de Mestre Manolé» em: Acção, 29-IV-1943.
8. «Liviu Rebreanu» em: Acção, 26-VIII-1943.
9. «Panorama intelectual da Roménia» em: Diário de Lisboa, 2-IX-1943.
10. «Estado salazarista» em: Acção, 30-IX-1943.
11. «Nicolae Iorga» Acção, 24-II-1944.
12. «A literatura romena contemporânea» em: Bazar das Letras, das Ciências e das Artes. Suplemento literário de A Voz, 15-IV-1944.
13. «A sociologia, instrumento de reforma social?» em: Vida Mundial Ilustrada, 22-VI-1944.
14. «Um mito romeno da morte» em: Acção, 29-IX-1944.
15. Mircea Eliade, Salazar si revolutia în Portugalia. Bucareste, 1942.
[tradução portuguesa parcial: No. 10].
16. Mircea Eliade, Os Romenos, Latinos do Oriente. Lisboa, 1943.
B. Bibliografia passiva
1. Eugénio Navarro, «Um encontro com Mircea Eliade» em: A Voz, 27-XII-1942.
2. [resenha] «Os Romenos, Latinos do Oriente» em: Diário da Manhã, 12-IV-1943.
3. [resenha] «Os Romenos, Latinos do Oriente» em: Novidades, 25-IV-1943.
4. João Ameal, «Rumos do Espírito: as ideias e os autores» em: Diário da Manhã, 18-V-1943.
5. Alfredo Pimenta, «Roménia erudita» em: A Voz, 17-VI-1943.
6. Eugénio Navarro, «Os Romenos, Latinos do Oriente» em: A Voz, 14-VII-1943.
[Devo estas referências ao Professor Mircea Handoca, Bucareste]
C. Obras de ficção traduzidas após 1944
1. Mircea Eliade, Noite bengali [Maitreyi] tradução, Maria Leonor Buescu. Lisboa, 1961.
2. Mircea Eliade, Bosque proibido [Noaptea de Sânziene] tradução, Maria Leonor Buescu. Lisboa, 1963.
3. Mircea Eliade, Rua Mântuleasa [Pestrada Mântuleasa] tradução, Ricardo Alberti. Lisboa, 1978.
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Mircea Eliade em Portugal (1940-1944)
«…E, de repente, surgiram na minha memória as imagens dos parques na província portuguesa. Lembro-me da sua melancolia terrível. Mundos há muito mortos que só aguardam o punho vigoroso do bárbaro para se descomporem» (1). Este apontamento de Mircea Eliade no seu diário (7-II-1965) evoca uma época até agora pouco conhecida na vida do grande sábio romeno – os seus anos em Lisboa.
Em 1941 Mircea Eliade foi nomeado secretário de imprensa na capital portuguesa. Esta impressionou-o muito favoravelmente:
«Lisboa conquistou-me desde o primeiro dia (…). No último ano da minha estadia em Calcutta tinha começado a aprender o português com método e paixão (2)». Mircea Eliade entrou em contacto com jornalistas portugueses e com o director do então Ministério de Informação e Propaganda António Ferro (1895- 1956). Ao mesmo tempo iniciou o estudo da obra de Camões.
Camões e Eminescu
Durante a sua estada na Índia (1928-1931) Mircea Eliade tinha-se apaixonado por "Os Lusíadas": «O meu desejo secreto era o de me concentrar no estudo da vida e da obra de Camões. Pouco a pouco comprei todas as edições anotadas dos Sonetos e de Os Lusíadas e, numa tarde de primavera, tive a sorte de encontrar na loja dum alfarrabista a famosa monografia de Carolina Michaëlis de Vasconcellos, há muito esgotada. A minha paixão por Camões tinha ainda um outro motivo: a sua biografia e a sua poesia estão ligadas a uma região da Índia que eu não conhecera – Goa e a Costa de Malabar. Tinha o propósito de escrever um livro sobre Camões e a Índia portuguesa. Achava interessante (e dalguma maneira simbólico) o facto de que um romeno que vivera e estudara no Bengala apresentasse o mais grande poeta lusitano que tinha vivido – há três séculos – na outra costa, a costa ocidental da Índia. Este livro, porém, como muitos outros, não passou dum projecto inacabado (3).»
O primeiro resultado dos esforços de Mircea Eliade foi um artigo intitulado «Camões e Eminescu» no jornal "Acção" (3-IX-1942). «Quero começar por delimitar a finalidade deste artigo»,escreve Eliade, que não é um trabalho de história literária e em que não vou rebuscar as eventuais influências camoneanas (3) que se poderiam encontrar na obra do grande escritor romeno Mihai Eminescu. Aproximando os nomes de dois dos maiores poetas da latinidade, penso sobretudo na contribuição positiva que cada um deles trouxe ao enriquecimento do génio latino.» A literatura deve a Camões a descoberta estética do oceano, até à data uma «terra incógnita», ao passo que Eminescu, o poeta nacional romeno, descobrira uma província considerada até então como bárbara pelos romanos: a Dácia. Uma terra privada de cultura, como a definiu Ovídio, foi assim descoberta pelo génio de Eminescu, que deu um valor universal aos seus mitos.
Eliade estudou durante toda a sua vida a poesia de Mihai Eminescu que era para ele – o emigrante – a via de acesso mais directa às próprias raízes, à sua identidade e criatividade. Em 1939 Eliade tinha publicado um estudo, Insula luiEuthanasius, onde abordara a novela Cezara, e chamara a atenção para o facto de esta «ínsula de Eutanásio», um episódio da novela de Eminescu, constituir a visão mais acabada do paraíso em toda a literatura romena, um paraíso muito particular: para Eminescu, o éden significa reunificação com a natureza, diluição do «eu» no bosque, na luz, na atmosfera. Eliade retomou estas ideias no artigo português que publicou no jornal Acção (1-X-1942) sob o título: «Eminescu – poeta da raça romena», ensaio que depois serviu de prefácio à primeira antologia portuguesa dos versos de Mihai Eminescu (4).
Além dos seus trabalhos sobre Camões e Eminescu, Eliade apresentou ao público leitor português uma série de personalidades romenas: o hispanista Alexandru Popescu-Telega (*1889, em: A Voz, 6-II-1943), o historiador Nicolae Iorga (1871-(1885-1944, em: Acção, 26-VIII-1943).
Os Romenos, Latinos do Oriente
Além da sua actividade diplomática e periodística, Eliade elaborou, em 1942-1943, uma introdução à história da cultura romena, que saiu em 1943, sob o título "Os Romenos, Latinos do Oriente". No seu livro, Eliade parte de uma ideia básica: A missão do povo romeno consiste em manter aberta a foz do Danúbio para a Europa. Os romenos – povo pioneiro à margem da Europa – cumpriram esta missão durante séculos, primeiro na luta contra os turcos e mais tarde contra a Rússia bolchevista. Esta situação precária de povo de fronteira manifestar-se-ia – segundo Eliade – em dois mitos centrais: a lenda de Mestre Manolé e a balada Miorita (O Cordeirinho). Ambas as lendas têm uma coisa em comum: o sacrifício é o centro da acção.
No seu artigo «A Lenda de Mestre Manolé» (5), Mircea Eliade apresenta esta balada aos leitores da Acção (29-IV-1943): «A Lenda de Mestre Manolé (…) localiza-se em torno da construção da Catedral de Curtea de Argesh, que se efectuou nos princípios do século XVI, mas a sua origem é muito mais remota (…). A balada começa pela procura dum lugar para a criação do mosteiro.
O Príncipe lendário, Negru Voda, com Mestre Manolé e mais nove mestres construtores, desce à ribeira do Argesh, em demanda de «um muro abandonado e por acabar» (…). Encontrado, por fim, o lugar, Mestre Manolé com os seus nove companheiros deitaram-se ao trabalho. Mas tudo o que levantavam de dia vinha abaixo, misteriosamente, de noite. O Príncipe ameaçou-os de os murar vivos, nos caboucos, se a construção não progredisse(…). Enquanto os seus companheiros recolhiam, vinda a noite, às
suas casas, Manolé ficava sozinho (…). Uma noite sonhou que o trabalho de todos seria vão (…) enquanto não fosse murada, em vida, nos alicerces, uma jovem casada. De manhã, Manolé reuniu todos os mestres pedreiros e (…) juraram, em comum, sacrificar a primeira mulher casada que viesse». Quando chegara mulher do mestre pedreiro, ele mesmo tem que murá-la viva no mosteiro. Uma vez terminadas as obras, Manolé suicida-se.
Na balada Miorita o cordeirinho-protagonista anuncia ao seu pastor que os seus parceiros querem matá-lo. Em vez de fugir, o pastor aceita sereno e resignado o seu destino. Pede à sua ovelha favorita que o sepulte junto ao aprisco, sem nunca revelar a sua sorte à mãe, dizendo-lhe que ele teria casado com uma princesa dum país distante. Nos dois mitos, morte e núpcias misturam-se, o sacrifício é interpretado como a reintegração com a Natureza, a própria morte é transfigurada. Estes mitos são, para Eliade, a glorificação da história romena.
Embora os romenos tenham realizado obras primas como os mosteiros da Moldávia, na época de Estêvão o Grande (1457-1504), ou o grande acervo de lírica popular, a Roménia, nunca pôde salvaguardar-se dos golpes da história, dum nova investida de bárbaros. A fusão das grandes corrente culturais que provinham de Bizâncio, Roma, da Montanha de Atos e da civilização francesa criaram uma síntese original na história da cultura europeia.
Em 1941-1942 Eliade trabalhava numa biografia de Salazar. Com a ajuda dos historiadores e jornalistas Manuel Múrias (1900-1960), João Ameal (*1902), Alfredo Pimenta (1882-1950) e Pedro Correia Marques (*1890), Eliade escreveu uma hagiografia do ditador português, hoje em dia francamente obsoleta. O mesmo Eliade mudou depois de perspectiva e revelou-se em 1946 muito mais crítico com respeito a Salazar (6).
Salazar e a Revolução em Portugal saiu em 1942 em Bucareste. O capítulo XIV foi publicado em versão portuguesa no jornal Acção (30-IX-1943). Nas suas Memórias (7) Eliade descreve com luxo de detalhes a génese deste livro, que lhe valeu uma entrevista com o próprio Salazar: «Na tarde de 6 de Julho telefonou-me António Ferro para me anunciar que no dia seguinte ia ser recebido por Salazar às cinco da tarde: Como não encontrei um táxi, cheguei lá quase correndo. O porteiro do Palácio de São Bento perguntou-me para onde ia. “O Senhor Presidente”, respondi. Ele mostrou-me a escada do fundo e disse: “Segundo andar, à direita”. Assim se entra no gabinete do ditador português… Durante aqueles cinco minutos de espera engoli sem fôlego um copo de água: A minha garganta ficara tão seca que receei não poder falar.»
A noite escura da alma
Os últimos dois anos em Lisboa (1943-1944) foram para Eliade um calvário. O que mais o abalou foi a morte de sua mulher, Nina Mares. Para não incomodar o marido, Nina Mares queria ser operada em Bucareste. Quando voltou a Portugal, em Junho de 1943, Eliade verificou que ela estava muito mal.
O médico português aconselhou o internamento num sanatório, a Casa de Saúde e Repouso da Lousã, onde Nina passou dois meses com escassos resultados.
A impressão de tristeza dos parques portugueses de província, que Eliade evocará em 1965, provém com certeza deste período na Lousã. Nina Mares morreu no dia 20 de Novembro de 1944, e Eliade partiu para Paris, rumo ao exílio definitivo. Nos últimos anos da sua vida relembrou a imagem da casa em Cascais: «A casa em que morávamos desde há seis semanas ia ser derrubada até o dia 1.º de Outubro. Vivíamos rodeados de escombros, com um lenço na mão para tapar a boca quando o vento levantava o pó da rua. Esta imagem parecia-me o símbolo duma Europa no fim da Segunda Guerra Mundial(8).»
Noite de São João em Portugal
Na literatura romena, Portugal é uma espécie de planeta desconhecido, uma «terra incógnita» que fica longe de mais para caber dentro de um horizonte real e palpável. A «Ocidental praia lusitana» torna-se, por isso, um pretexto ideal para evocar um
Finisterrae, um liminar entre a realidade e o sonho, entre terra e água. Mircea Eliade, ao lado de Nicolae lorga (1871-1940) e Lucian Blaga (1895-1961) foi um dos poucos romenos que tiveram no nosso século um conhecimento directo do país. Ainda assim, revelou-se incapaz de se subtrair a esta visão mítica. Ao escrever nos anos cinquenta o seu romance "Bosque proibido" (Noite de São João), Eliade escolheu Portugal para criar aí o único ninho de felicidade do romance: A Estufa Fria, no Parque Eduardo VII, Cascais e o Buçaco. O protagonista, Stefan Viziru, chega duas vezes a Portugal no meio de uma Europa em guerra. Numa ilha de felicidade junta-se com o seu amor de juventude, Ileana. Não sabe, porém, reter este momento, decifrar o enigma, perde Ileana para sempre e volta à pátria (9). No prefácio à edição portuguesa do seu romance, Eliade explica a razão da sua escolha, o porquê do ninho de felicidade em Portugal: «Creio que, mais do que qualquer outro trabalho literário meu, este romance poderá interessar o leitor português. Passei cerca de cinco anos em Portugal, e uma parte da acção do romance decorre em Lisboa, Cascais e Coimbra (…) Se os compreendi bem, os Portugueses têm uma determinada concepção do Tempo, da Morte e da História, que lhes permite pressentir o tema central e «secreto») do romance(…). Parece-me que para os Portugueses (como aliás para os Romenos), o Tempo, a História, a Morte e o Amor conservam o carácter de mistérios» (10).
* * *
Do ponto de vista da ciência das religiões, os anos portugueses de Mircea Eliade aportaram relativamente pouco, já que o sábio romeno não teve tempo para elaborar o grande projecto daquela época: a aplicação do seu ensaio sobre o simbolismo aquático à epopeia de Camões. Por outro lado, Eliade ofereceu aos portugueses uma original síntese da história romena: "Os Romenos, Latinos do Oriente" pode considerar-se, sem lugar a dúvidas, um primeiro esboço do que seria, anos mais tarde, a obra "De Zalmoxis a Genghis-Khan" (Paris, 1970), onde ele aborda os temas fundamentais da mitologia popular romena.
Portugal significou para Eliade uma vivência crucial: um adeus à pátria, à própria cultura, à primeira mulher. Só nos últimos anos da vida ele reconstruiu este episódio nas suas "Memórias".
Albert Von Brunn (Zurique)
Anotações
1 Mircea Eliade, Fragments d’un Journal I, 1945-1969. traduit par Luc Badesco. Paris, 1973, p. 482. A tradução portuguesa foi feita directamente do manuscrito original romeno que devo à gentileza do Prof. Mircea Handoca, Bucareste.
2 Mircea Eliade, Mémoire II, 1937-1960. Les moissons du solstice, traduit du roumain par Alain Paruit. Paris, 1988, p. 69. Tradução directa do original romeno.
3 ibidem, p. 70.
4 Mircea Eliade, «Eminescu – poeta da raça romena» em: Acção, 1-X-1942. 2.ª ed. em: Mihai Eminescu, Poezii = Poesias. Lisboa, 1950, pp. 21-32.
5 Mircea Eliade, «A lenda do Mestre Manolé» em: Acção, 29-IV-1943.
6 Mircea Eliade, Salazarsi revolutia în Portugalia. Bucareste, 1942.
Numa página inédita do seu Journal Eliade observa que Salazar mantinha à sua volta «uma roda oportunista, serviçal e medíocre».
(Mircea Handoca, Din nou despre «Memoriile» lui Mircea Eliade em: Revista de istorie si teorie literarã 25 (1987), p. 213).
7 ibidem, [tradução do autor].
8 ibidem, p. 218. [tradução do autor].
9 Mircea Eliade, Bosque proibido. Tradução Maria Leonor Buescu. Lisboa, 1963.
10 ibidem, p. 5. Agradeço a revisão do texto ao Sr. Zeferino Coelho (Editorial Caminho, Lisboa)
A. Bibliografia activa
1. Latina giuta [gintã e reginã…» em: Acção, 5-II-1942.
2. «Camões e Eminescu» em: Acção, 3-IX-1942.
3. «Eminescu – poeta da raça romena» em: Acção, 1-X-1942 (2-ed. em: Mihai Eminescu, Poezii = Poesias. Lisboa, 1950, pp. 21-32).
4. «Canções romenas do Natal» em: A Voz, 25-XII-1942.
5. «Dor, a saudade romena» em: Acção, 31-XII-1942.
6. «Cultura latina: alguns lusófi los romenos» em: A Voz, 6-II-1943.
7. «A lenda de Mestre Manolé» em: Acção, 29-IV-1943.
8. «Liviu Rebreanu» em: Acção, 26-VIII-1943.
9. «Panorama intelectual da Roménia» em: Diário de Lisboa, 2-IX-1943.
10. «Estado salazarista» em: Acção, 30-IX-1943.
11. «Nicolae Iorga» Acção, 24-II-1944.
12. «A literatura romena contemporânea» em: Bazar das Letras, das Ciências e das Artes. Suplemento literário de A Voz, 15-IV-1944.
13. «A sociologia, instrumento de reforma social?» em: Vida Mundial Ilustrada, 22-VI-1944.
14. «Um mito romeno da morte» em: Acção, 29-IX-1944.
15. Mircea Eliade, Salazar si revolutia în Portugalia. Bucareste, 1942.
[tradução portuguesa parcial: No. 10].
16. Mircea Eliade, Os Romenos, Latinos do Oriente. Lisboa, 1943.
B. Bibliografia passiva
1. Eugénio Navarro, «Um encontro com Mircea Eliade» em: A Voz, 27-XII-1942.
2. [resenha] «Os Romenos, Latinos do Oriente» em: Diário da Manhã, 12-IV-1943.
3. [resenha] «Os Romenos, Latinos do Oriente» em: Novidades, 25-IV-1943.
4. João Ameal, «Rumos do Espírito: as ideias e os autores» em: Diário da Manhã, 18-V-1943.
5. Alfredo Pimenta, «Roménia erudita» em: A Voz, 17-VI-1943.
6. Eugénio Navarro, «Os Romenos, Latinos do Oriente» em: A Voz, 14-VII-1943.
[Devo estas referências ao Professor Mircea Handoca, Bucareste]
C. Obras de ficção traduzidas após 1944
1. Mircea Eliade, Noite bengali [Maitreyi] tradução, Maria Leonor Buescu. Lisboa, 1961.
2. Mircea Eliade, Bosque proibido [Noaptea de Sânziene] tradução, Maria Leonor Buescu. Lisboa, 1963.
3. Mircea Eliade, Rua Mântuleasa [Pestrada Mântuleasa] tradução, Ricardo Alberti. Lisboa, 1978.
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