sábado, novembro 26, 2005
«O HARA-KIRI DO SILÊNCIO»
Não, senhor Mishima! O senhor não nos interessa; o senhor pertence a um universo desconhecido, a uma longínqua galáxia onde os homens ainda se recusam a aprender a grande lição da sociedade de consumo: mete-te na tua carapaça, ocupa-te do teu estômago, refocila em tudo o que se possa comprar e vender, em tudo quanto possas apetecer graças ao crédito e às vantagens de que dispões. E aprende... e aprende tu, que és escritor, com esse Curzio Malaparte, torna-te cínico como ele e faz sorrir as gentes com o relato de como as mulheres do teu povo foram desfloradas pelo invasor ao ponto de uma donzela virgem se ter convertido num espectáculo digno de larachas.
É este o paradigma das redacções do jornais que, em todo o mundo, falam o patuá de Moloch: esta, a razão pelo qual o gesto do escritor japonês, duas vezes candidato ao Nobel de Literatura, personalidade tida como fulgurante nos géneros da narrativa, do conto e da novela, mereceu tão escassa atenção dos chamados meios de comunicação social que, a ritmo crescente, e de acordo com os avanços da técnica, se converteu, cada vez mais, em meios de opressão entre os homens e de incomunicabilidade entre as comunidades.
A história do escritor que aureolado pela fama internacional, best-seller no seu país e nos Estados Unidos, um belo dia decidiu praticar o hara-kiri em presença de um general que esqueceu deveres, poderá parecer um acto de fanatismo se não for esclarecido desde a origem. É o que vamos tratar de fazer, a fim de não termos de passar pela vergonha colectiva de ignorar uma vida consagrada toda ela ao amor da Pátria e do povo. Esta, como se vai ver, é também a história que se opõe à materialização dos espíritos, de um rebelde com causa, que não precisou de deixar crescer as guedelhas, não se deixou devorar pelo esterco, nem tão pouco agitou bandeiras demagógicas para chamar a atenção sobre a sua doutrina e a sua filosofia, de resto bem simples: acima do povo, a Pátria; acima da Pátria só a sombra de Deus.
«Há uma coisa que não entendo - que os nossos militares confundam a ideia do Japão com a do Imperador e que nunca tenham considerado a eventualidade de não haver Pátria possível desde que a ela se subtraiam os seus filhos. É isto, justamente, o que ocorre no Japão actual: existe uma grande insensibilidade, uma extraordinária incapacidade nacional para ver que deixámos de ser um povo soberano, com uma cultura várias vezes milenária, e nos convertemos em mais uma colónia do imperialismo norte-americano, da sua pastilha elástica e das grandes marcas das suas indústrias internacionais. A chuva de dólares que, por outro lado, cai do lombo do povo trabalhador, alienou a tradição da honra nacional.»
Isto se transcreve de um artigo de Mishima. O escritor iniciou a sua actividade de jornalista imediatamente depois da guerra. Para o povo japonês, esta terminou, como se sabe, com os holocaustos de Hiroshima e Nagasaki ao deus da civilização democrática.
Vinte anos antes, Yukio nascia num dos bairros elegantes de Tóquio. Seu pai, vinculado ao partido de Tojo, veio a ser subsecretário-geral do Ministério da Agricultura e sua mãe, pertencente à aristocracia, era uma das damas de companhia da Imperatriz. Completavam a família dois irmãos: o mais velho viria a ser membro destacado da diplomacia nipónica; a irmã morre aos dezassete anos.
A infância de Mishima foi bastante triste. Ele mesmo o confessa: «Meu pai era quase um desconhecido que eu via apenas nas festas tradicionais, quando o clã familiar se reunia. Sendo a minha família constituída por umas quatrocentas pessoas, mal me dedicava a sua atenção. Quanto a minha mãe, o seu carinho era exagerado, ao ponto de ficar em cuidado quando eu saía com amigos, tanto em criança como mais tarde, já mocetão».
O facto de Yukio não mostrar apego de maior pelo estudo levou o pai a colocá-lo em lugar subalterno do Ministério da Agricultura. Queria que ele fosse engenheiro, embora a vocação de Mishima tendesse mais para as Belas Artes e para a Literatura.
Quando aluno do Instituto Sakhumiu, aí por volta dos treze anos, Yukio, que se refugiava nas letras para furtar-se à pressão paterna e à asfixia que lhe causava o ambiente do lar destruído à míngua de amor, escreve a sua primeira novela, uma novela que nunca teve título e que narrava a bela história de um condenado, evadido da prisão, que na fuga encontrou um garoto que lhe oferece flores. O condenado, apesar da pressa que levava, uma vez que era perseguido pela polícia, esquece-se de tudo e vai de passeio com o seu amiguinho. Este acaba por convidá-lo a ir comer a sua casa, onde chegam depois de várias peripécias. O pai do garotito, inteirado de que o homem é um trânsfuga da justiça nega-lhe hospitalidade. O evadido então retira-se, mas, à guisa de recordação daquele dia, leva com ele o ramo de flores. Dois anos mais tarde, em 1940, escreve a sua segunda obra. Desta vez, com título: O Bosque Florido. No entanto, a sua vasta produção inicia-se, de facto, imediatamente após a guerra. Trabalha então num vespertino, o que lhe permite escrever durante a noite. Com paixão de artista, deveras sensível à situação política e social do país, que sofre na altura a presença ultrajante das tropas norte-americanas e os abusos de toda a ordem cometidos por elas, entrega-se devotadamente à criação literária, erguendo verdadeiros tipos populares, arrancados ao meio ambiente nipónico de então. Idealiza uma espécie de episódios nacionais (à maneira de Benito Pérez Galdós) série encetada com A Pequena de Ouro — seu primeiro best-seller — e prosseguida com Sabor de Glória nas livrarias, forçando os editores a sucessivas edições. Este livro atinge a consciência do povo japonês e, com o tempo, converter-se-á num dos breviários mais caros aos militantes do movimento nacionalista, que com ele argumentam, reivindicando a retirada das tropas dos Estados Uniddos.
A popularidade de Mishima cresce continuamente. No Japão lê-se muito e o ramo editorial é um grande negócio. Existe uma autêntica literatura de massas: os diários, revistas e outras publicações abundam nos quiosques e livrarias, a um preço acessível, encontrando sempre um público ávido de consumi-los. Os escritores são muitos, embora só dois deles sobressaíam com nitidez. Um, é o velho deus Kawabata, alcandorado a sumo sacerdote da literatura; os seus livros possuem larga audiência popular, alimentam espiritualmente o povo ao mesmo tempo que dele inspiradamente se nutrem, e o reflectem, em fresco prodigioso, multitudinário, do qual o novelista extrai como heróis e heroínas exemplares, os delicados personagens da sua pena.
Pouco antes da sua morte, cerca de uma semana antes, em entrevista dada ao italiano Giuseppe Grazzini, que quis saber qual a obra que Mishima estava preparando, responderá assim: «Creio que estou a ultimar a minha obra definitiva, aquela que maior trabalho me tem dado, mas a que realizei também com mais ilusões. Há cinco anos que lhe dei início e estou prestes a concluí-la. Compõe-se de cinco volumes e neles faço a narração de uma epopeia: a do meu povo e da minha Pátria através dos séculos. A história gira ao redor de uma família: os membros que a constituem morrem, mas as tradições continuam a ser incessantemente cultivadas através das gerações que sintetizam, no seu conjunto, o espírito permanecente da nação.»
Politicamente, Yukio Mishima reclamava o direito que assistia ao povo japonês de recuperar a sua soberania e de desfrutar da justiça social: era partidário da conservação das tradições, desde que estas não entorpecessem a adaptação do país à técnica industrial contemporânea, sem, contudo, jamais se sacrificar o homem a imperativos que não fossem os do humanismo social que defendia.
«A morte» — disse ele, em certa ocasião — «é uma espécie de castigo eterno, infligido à materializada sociedade ocidental que vive afastada da Natureza. Para nós não o é, de modo absoluto, uma vez que nos consideramos parte integrante da Natureza. Devido a isto, a morte, aos olhos do meu povo, é um prémio, algo assim como a transformação, a libertação da matéria. Morrer é partir, não desaparecer. Outrora, o mundo cristão, creio, tinha igual ou semelhante filosofia. E foi então que logrou consolidar-se. Pois bem: nós queremos recuperar plenamente esse estilo de vida e aplicá-lo a uma grande política nacional e popular. O contrário seria o mesmo que aceitar a hibernação indefinidamente da alma japonesa.»
No decurso de 1964, em consonância com esses altos ideais de vida, fundara ele a Associação do Escudo, movimento militarizado inspirado no ideário básico do escritor, e cujas linhas-de-força representavam um flagrante e vivo protesto contra a inoperância, a apatia do amorfo Exército Japonês, que, como se sabe, não é mais que uma polícia, mais destinada a reprimir o povo, do que uma milícia capaz de salvaguardar a Nação.
Símbolo da Associação , o Estado — Tate-no-kai, em japonês — é a espada do samurai, a arma daqueles guerreiros lendários cujo conceito de honra os obrigava aos maiores sacrifícios. Simplesmente, a espada do samurai — aquela que jamais podia embainhar-se sem glória —, não foi utilizada, através dos tempos, unicamente contra os inimigos do guerreiro. Muitas vezes, este a terá virado contra si próprio, apoiando-a contra o ventre. Cravando-a e revolvendo-a em si de alto a baixo, e rasgando, assim, diagonalmente a carne, o guerreiro consumava o hara-kiri, terrível ritual de suicídio que exige têmpera física e moral para ser executado. Foi isto mesmo o que sucedeu na manhã de 25 de Novembro de 1970, no Quartel-General da Guarda Japonesa, em Tóquio. Yukio Mishima, depois dos seus camaradas da Associação do Escudo terem tomado de assalto o Quartel e terem reduzido a refém o general Kanetoshi Mashita, falou aos soldado, reunidos por ordem sua no pátio central. Falou-lhes da dignidade do Povo, da necessidade de promover a justiça social e de recuperar a honra e a liberdade para a Pátria ocupada pelo vencedor.
Seguidamente, perante o chefe militar, com toda a serenidade, cravou a espada samurai em si próprio.
Acabava ali a vida de um intelectual de grande envergadura, de um artista que se serviu do seu nobre ofício de escritor para defender a Pátria; e que, podendo ter escolhido o caminho da comodidade e da riqueza, soube renunciar ao sensualismo da fama, pondo termo à sua exigência tal como a havia pregado: sacrificando-se pessoalmente, sem arriscar a vida de terceiros, com o único objectivo de chamar a atenção do mundo — e, em primeiro lugar, de todo o seu povo — para a situação do País em que nascera.
Só que o mundo não teve olhos nem ouvidos para Yukio Mishima, contra-figura, por excelência, desse Régis-Debray tão exaltado pela imprensa internacional.
Como ficou dito mais acima, a causa do escritor está muito desprestigiada neste nosso tempo. Morrer pela Pátria parece ter perdido todo o sentido na sociedade de consumo.
Conforta a esperança de que nem sempre seja assim...
Yukio Mishima: eis um homem cuja imolação não mereceu os costumados espaços que a grande imprensa internacional, e a outra, a internacionalista, tão generosamente consagram à exaltação do crime, da pornografia e do sexo. Yukio Mishima teve um grande gesto, um gesto por antonomásia, que chega para defini-lo como um homem íntegro, um homem da cabeça aos pés. Simplesmente, numa época em que se toleram tantas afrontas ao espírito da dignidade, da liberdade, da paz e da justiça: em tempos tão perversos e materialistas em que o homem se deixa converter em mercadoria, mais uma, no armazém dos demiurgos capazes de transformar o heroísmo em cobardia e o belo em fealdade — que importância tem, afinal, que um Homem se sacrifique por uma ideia tão antiquada como é a ideia da Pátria?
(In «Política», n.º 26, pág. 12, 31.01.1971)
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É este o paradigma das redacções do jornais que, em todo o mundo, falam o patuá de Moloch: esta, a razão pelo qual o gesto do escritor japonês, duas vezes candidato ao Nobel de Literatura, personalidade tida como fulgurante nos géneros da narrativa, do conto e da novela, mereceu tão escassa atenção dos chamados meios de comunicação social que, a ritmo crescente, e de acordo com os avanços da técnica, se converteu, cada vez mais, em meios de opressão entre os homens e de incomunicabilidade entre as comunidades.
A história do escritor que aureolado pela fama internacional, best-seller no seu país e nos Estados Unidos, um belo dia decidiu praticar o hara-kiri em presença de um general que esqueceu deveres, poderá parecer um acto de fanatismo se não for esclarecido desde a origem. É o que vamos tratar de fazer, a fim de não termos de passar pela vergonha colectiva de ignorar uma vida consagrada toda ela ao amor da Pátria e do povo. Esta, como se vai ver, é também a história que se opõe à materialização dos espíritos, de um rebelde com causa, que não precisou de deixar crescer as guedelhas, não se deixou devorar pelo esterco, nem tão pouco agitou bandeiras demagógicas para chamar a atenção sobre a sua doutrina e a sua filosofia, de resto bem simples: acima do povo, a Pátria; acima da Pátria só a sombra de Deus.
«Há uma coisa que não entendo - que os nossos militares confundam a ideia do Japão com a do Imperador e que nunca tenham considerado a eventualidade de não haver Pátria possível desde que a ela se subtraiam os seus filhos. É isto, justamente, o que ocorre no Japão actual: existe uma grande insensibilidade, uma extraordinária incapacidade nacional para ver que deixámos de ser um povo soberano, com uma cultura várias vezes milenária, e nos convertemos em mais uma colónia do imperialismo norte-americano, da sua pastilha elástica e das grandes marcas das suas indústrias internacionais. A chuva de dólares que, por outro lado, cai do lombo do povo trabalhador, alienou a tradição da honra nacional.»
Isto se transcreve de um artigo de Mishima. O escritor iniciou a sua actividade de jornalista imediatamente depois da guerra. Para o povo japonês, esta terminou, como se sabe, com os holocaustos de Hiroshima e Nagasaki ao deus da civilização democrática.
Vinte anos antes, Yukio nascia num dos bairros elegantes de Tóquio. Seu pai, vinculado ao partido de Tojo, veio a ser subsecretário-geral do Ministério da Agricultura e sua mãe, pertencente à aristocracia, era uma das damas de companhia da Imperatriz. Completavam a família dois irmãos: o mais velho viria a ser membro destacado da diplomacia nipónica; a irmã morre aos dezassete anos.
A infância de Mishima foi bastante triste. Ele mesmo o confessa: «Meu pai era quase um desconhecido que eu via apenas nas festas tradicionais, quando o clã familiar se reunia. Sendo a minha família constituída por umas quatrocentas pessoas, mal me dedicava a sua atenção. Quanto a minha mãe, o seu carinho era exagerado, ao ponto de ficar em cuidado quando eu saía com amigos, tanto em criança como mais tarde, já mocetão».
O facto de Yukio não mostrar apego de maior pelo estudo levou o pai a colocá-lo em lugar subalterno do Ministério da Agricultura. Queria que ele fosse engenheiro, embora a vocação de Mishima tendesse mais para as Belas Artes e para a Literatura.
Quando aluno do Instituto Sakhumiu, aí por volta dos treze anos, Yukio, que se refugiava nas letras para furtar-se à pressão paterna e à asfixia que lhe causava o ambiente do lar destruído à míngua de amor, escreve a sua primeira novela, uma novela que nunca teve título e que narrava a bela história de um condenado, evadido da prisão, que na fuga encontrou um garoto que lhe oferece flores. O condenado, apesar da pressa que levava, uma vez que era perseguido pela polícia, esquece-se de tudo e vai de passeio com o seu amiguinho. Este acaba por convidá-lo a ir comer a sua casa, onde chegam depois de várias peripécias. O pai do garotito, inteirado de que o homem é um trânsfuga da justiça nega-lhe hospitalidade. O evadido então retira-se, mas, à guisa de recordação daquele dia, leva com ele o ramo de flores. Dois anos mais tarde, em 1940, escreve a sua segunda obra. Desta vez, com título: O Bosque Florido. No entanto, a sua vasta produção inicia-se, de facto, imediatamente após a guerra. Trabalha então num vespertino, o que lhe permite escrever durante a noite. Com paixão de artista, deveras sensível à situação política e social do país, que sofre na altura a presença ultrajante das tropas norte-americanas e os abusos de toda a ordem cometidos por elas, entrega-se devotadamente à criação literária, erguendo verdadeiros tipos populares, arrancados ao meio ambiente nipónico de então. Idealiza uma espécie de episódios nacionais (à maneira de Benito Pérez Galdós) série encetada com A Pequena de Ouro — seu primeiro best-seller — e prosseguida com Sabor de Glória nas livrarias, forçando os editores a sucessivas edições. Este livro atinge a consciência do povo japonês e, com o tempo, converter-se-á num dos breviários mais caros aos militantes do movimento nacionalista, que com ele argumentam, reivindicando a retirada das tropas dos Estados Uniddos.
A popularidade de Mishima cresce continuamente. No Japão lê-se muito e o ramo editorial é um grande negócio. Existe uma autêntica literatura de massas: os diários, revistas e outras publicações abundam nos quiosques e livrarias, a um preço acessível, encontrando sempre um público ávido de consumi-los. Os escritores são muitos, embora só dois deles sobressaíam com nitidez. Um, é o velho deus Kawabata, alcandorado a sumo sacerdote da literatura; os seus livros possuem larga audiência popular, alimentam espiritualmente o povo ao mesmo tempo que dele inspiradamente se nutrem, e o reflectem, em fresco prodigioso, multitudinário, do qual o novelista extrai como heróis e heroínas exemplares, os delicados personagens da sua pena.
Pouco antes da sua morte, cerca de uma semana antes, em entrevista dada ao italiano Giuseppe Grazzini, que quis saber qual a obra que Mishima estava preparando, responderá assim: «Creio que estou a ultimar a minha obra definitiva, aquela que maior trabalho me tem dado, mas a que realizei também com mais ilusões. Há cinco anos que lhe dei início e estou prestes a concluí-la. Compõe-se de cinco volumes e neles faço a narração de uma epopeia: a do meu povo e da minha Pátria através dos séculos. A história gira ao redor de uma família: os membros que a constituem morrem, mas as tradições continuam a ser incessantemente cultivadas através das gerações que sintetizam, no seu conjunto, o espírito permanecente da nação.»
Politicamente, Yukio Mishima reclamava o direito que assistia ao povo japonês de recuperar a sua soberania e de desfrutar da justiça social: era partidário da conservação das tradições, desde que estas não entorpecessem a adaptação do país à técnica industrial contemporânea, sem, contudo, jamais se sacrificar o homem a imperativos que não fossem os do humanismo social que defendia.
«A morte» — disse ele, em certa ocasião — «é uma espécie de castigo eterno, infligido à materializada sociedade ocidental que vive afastada da Natureza. Para nós não o é, de modo absoluto, uma vez que nos consideramos parte integrante da Natureza. Devido a isto, a morte, aos olhos do meu povo, é um prémio, algo assim como a transformação, a libertação da matéria. Morrer é partir, não desaparecer. Outrora, o mundo cristão, creio, tinha igual ou semelhante filosofia. E foi então que logrou consolidar-se. Pois bem: nós queremos recuperar plenamente esse estilo de vida e aplicá-lo a uma grande política nacional e popular. O contrário seria o mesmo que aceitar a hibernação indefinidamente da alma japonesa.»
No decurso de 1964, em consonância com esses altos ideais de vida, fundara ele a Associação do Escudo, movimento militarizado inspirado no ideário básico do escritor, e cujas linhas-de-força representavam um flagrante e vivo protesto contra a inoperância, a apatia do amorfo Exército Japonês, que, como se sabe, não é mais que uma polícia, mais destinada a reprimir o povo, do que uma milícia capaz de salvaguardar a Nação.
Símbolo da Associação , o Estado — Tate-no-kai, em japonês — é a espada do samurai, a arma daqueles guerreiros lendários cujo conceito de honra os obrigava aos maiores sacrifícios. Simplesmente, a espada do samurai — aquela que jamais podia embainhar-se sem glória —, não foi utilizada, através dos tempos, unicamente contra os inimigos do guerreiro. Muitas vezes, este a terá virado contra si próprio, apoiando-a contra o ventre. Cravando-a e revolvendo-a em si de alto a baixo, e rasgando, assim, diagonalmente a carne, o guerreiro consumava o hara-kiri, terrível ritual de suicídio que exige têmpera física e moral para ser executado. Foi isto mesmo o que sucedeu na manhã de 25 de Novembro de 1970, no Quartel-General da Guarda Japonesa, em Tóquio. Yukio Mishima, depois dos seus camaradas da Associação do Escudo terem tomado de assalto o Quartel e terem reduzido a refém o general Kanetoshi Mashita, falou aos soldado, reunidos por ordem sua no pátio central. Falou-lhes da dignidade do Povo, da necessidade de promover a justiça social e de recuperar a honra e a liberdade para a Pátria ocupada pelo vencedor.
Seguidamente, perante o chefe militar, com toda a serenidade, cravou a espada samurai em si próprio.
Acabava ali a vida de um intelectual de grande envergadura, de um artista que se serviu do seu nobre ofício de escritor para defender a Pátria; e que, podendo ter escolhido o caminho da comodidade e da riqueza, soube renunciar ao sensualismo da fama, pondo termo à sua exigência tal como a havia pregado: sacrificando-se pessoalmente, sem arriscar a vida de terceiros, com o único objectivo de chamar a atenção do mundo — e, em primeiro lugar, de todo o seu povo — para a situação do País em que nascera.
Só que o mundo não teve olhos nem ouvidos para Yukio Mishima, contra-figura, por excelência, desse Régis-Debray tão exaltado pela imprensa internacional.
Como ficou dito mais acima, a causa do escritor está muito desprestigiada neste nosso tempo. Morrer pela Pátria parece ter perdido todo o sentido na sociedade de consumo.
Conforta a esperança de que nem sempre seja assim...
Yukio Mishima: eis um homem cuja imolação não mereceu os costumados espaços que a grande imprensa internacional, e a outra, a internacionalista, tão generosamente consagram à exaltação do crime, da pornografia e do sexo. Yukio Mishima teve um grande gesto, um gesto por antonomásia, que chega para defini-lo como um homem íntegro, um homem da cabeça aos pés. Simplesmente, numa época em que se toleram tantas afrontas ao espírito da dignidade, da liberdade, da paz e da justiça: em tempos tão perversos e materialistas em que o homem se deixa converter em mercadoria, mais uma, no armazém dos demiurgos capazes de transformar o heroísmo em cobardia e o belo em fealdade — que importância tem, afinal, que um Homem se sacrifique por uma ideia tão antiquada como é a ideia da Pátria?
(In «Política», n.º 26, pág. 12, 31.01.1971)
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