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segunda-feira, novembro 14, 2005

UMA POLÉMICA CÉLEBRE 

Este petisco, que não é para qualquer dente, fica dedicado aos companheiros do Caminhos Errantes e do Pasquim da Reacção.

António Sérgio versus Cabral de Moncada
O Prof. Doutor Luís Cabral de Moncada, no dia 1 de Dezembro de 1927, proferiu, na sede da associação académica de Coimbra, uma conferência intitulada «1640 – Restauração do pensamento político português», que terminava por uma exortação aos estudantes.
Vitorino Nemésio, escolar da Faculdade de Letras, em 24 de Maio de 1928, replicou ao professor Cabral de Moncada com uma «Resposta retardada de um exortado ao exortador» (Seara Nova, n.º 120). Moncada rispostou, imediatamente na revista «Nação Portuguesa», de Agosto do mesmo ano (série V, tomo I, n.º 2) com uma «Resposta pronta - explicando uma exortação mal compreendida» à qual treplicou Nemésio com uma «Segunda resposta retardada» de 27 de Dezembro de 1928, (Seara Nova, n.º 143) que originou uma «Segunda resposta pronta (explicando uma exortação mal compreendida)» de Cabral de Moncada, também na «Nação Portuguesa», de 7 de Janeiro de 1929 (série V, tomo I, fasc. 7).
António Sérgio, então exilado em Paris, baseando-se só nas citações de Vitorino Nemésio (como lealmente explicou), escreveu, a 30 de Novembro de 1928, o artigo intitulado «Ideal e Facto sensível, Política e Ciência, Meios e fins», (Seara Nova, 31 de Janeiro de 1929, n.º 144), em que criticava agudamente Cabral de Moncada. Nascia, assim, uma polémica de grande repercussão e significado para a cultura portuguesa.
Sérgio, sem esperar a defesa de Moncada, continuou as suas críticas, apoiando-se já no texto da «Resposta pronta» deste professor, em novo artigo, dividido em três partes, cujo título era: «Método científico, história, política e tradição» (Seara Nova, n.os 151, 153, 154 de Março de 1929).
Ainda no mês de Março de 1929, em «A Nação Portuguesa», (série V, tomo II, fasc. 9) Cabral de Moncada ocupa-se do «Ideal e Facto sensível», a que Sérgio, rapidamente, opõe «Idealismo e Realismo, Morale d`abord e Politique d`abord» (Seara Nova, n.º 163, 30 de Março de 1928).
Moncada trata, seguidamente, em dois textos da «Nação Portuguesa», de «Método científico, história, política e tradição», respectivamente de Abril e Maio de 1929 (série V, tomo II, fasc. 10 e 11). Ao primeiro respondeu Sérgio com «Ora até que enfim», onde sustenta que Moncada «abandonou todas as suas posições» (Seara Nova, n.º 170 de 18 de Julho de 1929) e ao segundo com «Despedida» (Seara Nova, n.º 174 de 15 de Agosto de 1929).
Cabral de Moncada dedica, no fascículo inicial de nova série – VI – da Nação Portuguesa (tomo I, fascículo 1, s/d), as suas considerações ao «Idealismo e Realismo», dando-lhe o subtítulo de «fim de uma polémica inútil». Sérgio nos números 183 e seguintes da Seara Nova consagrou-lhe azeda análise - «Para Matar saudades» - (de 1 de Outubro de 1929) de que nos brinda duas continuações (n.º 186 de 7 de Novembro e 190 de 5 de Dezembro de 1929).
A polémica propriamente ficou por aqui. No rescaldo desta Moncada fez aparecer, em dois números da «Nação Portuguesa» um «Breve Esclarecimento de algumas teses de filosofia política, moral e de história» (série VI, tomo I, fascículo I e IV-V, s/d).
É-nos, evidentemente, impossível seguir em todos os seus pormenores o debate entre os dois notáveis pensadores. Vamos procurar cingir-nos aos pontos essenciais.
A acusação básica que Sérgio formula contra Moncada é a de ter caído na falácia naturalista, para usarmos a terminologia de Moore nos seus «Principia ethica». Diz António Sérgio, logo de começo: «Não há talvez nas nossas ideias tanta estupidez como supôs, nem acaso, nas do senhor Moncada, tanta ciência como sua ex.ª declarou... Afigura-se-nos a nós que as doutrinas política exprimem ideais, desejos, fins, que nos dão ditados pela consciência; e que a ciência nada tem a ver com fins, com desejos, com ideais; e que, além disso, os ideais se não podem basear nos factos (a não ser no facto da consciência que é aquela afirmação de um ideal), pois têm precisamente, por objecto — os ideais — modificar os factos» (Ideal e facto sensível).
Que reflexões faz Moncada a propósito da tese de Sérgio?
Ele começa por traçar o esquema de duas concepções da política, uma a metafísica e outra a científica, a qual, com nuances, acaba por fazer assentar a política no facto sensível. Em todo o caso, «a ”Política”, uma vez instalada nos domínios da experiência não carece, com efeito, de alargar muito o campo desta para encontrar já aí incluída na categoria do “facto sensível” a categoria do “Ideal”». E continua: «ainda que eu, político, não tivesse uma consciência igual à dos outros homens, todavia bastaria observar a vida destes e das sociedades para logo aí poder colher na experiência das coisas o Ideal e a noção do seu valor como facto e como lei humana e social. E bastaria, assim, verificar pela observação que sempre o homem em sociedade foi determinado num certo sentido moral... para que ao político cientista, mesmo sem a necessidade de se tornar idealista se lhe impusesse desde logo continuar a curva da parábola traçada já por essas determinantes».
Sérgio em «Idealismo e Realismo», imediatamente anota que não há propriamente uma parábola mas parábolas porque variadas e opostas são as tendências humanas na sociedade. E oferece numerosos exemplos, de muito humor, alguns.
Diga-se de passagem que o trecho de Moncada que Sérgio trata, com inteira razoabilidade, de demolir, merece a aprovação de Raul Proença, que o comenta deste modo: «isto é assim mesmo, embora seja lamentável poder haver homens que adiram à justiça — só porque os outros a querem» (Páginas de Política, 1.ª série, p. 260).
Pela nossa parte, achamos que, mesmo que a parábola fosse única, lá por ser um facto isso não impediria que ela fosse condenável e lastimável. O ideal presente e dominante na sociedade pode muito bem ser um falso ideal.
Por certo, Moncada alude à sociedade civilizada, mas, como muito bem observa Sérgio, isso é cair num círculo vicioso. A sociedade é civilizada porque segue a parábola, e seguir a parábola reclama a civilização (excluindo-se o critério a priori para caracterizar civilização).
E reparemos no seguinte. No final da sua exposição dos «dois sistemas de ideias» — o metafísico que é racionalista, anti-tradicionalista e anti-histórico, ultra-espiritualista e místico e o científico que é, ainda, positivo e realista, relativista, tradicionalista e histórico — Moncada ensina: «estas duas escolas e estas duas mentalidades... nenhuma delas refuta ou vence definitivamente a outra fora do seu ponto de vista ou do campo restrito em que se move o seu raciocínio. Por isso dizemos que elas se deixam apenas definir e classificar». Trata-se isto de uma manifestação de claro relativismo. E portanto em nome do critério de uma das escolas que é relativista se sustenta que nenhuma delas vence definitivamente. Ora não é como já dar a vitória a uma delas?
Interessante é que Moncada aluda à crítica (não vitoriosa definitivamente) que tem sido feita «milhares de vezes» à concepção que denomina de metafísica, dizendo que tal crítica é a de de «Carlyle, Burke, Taine, até Le Bon, Le Roy-Beaulieu e Pierre Gaxotte».
Eis o que patenteia de certo modo a área em que o pensamento moncadiano se movia naquela época.
Consoante dissemos, Moncada, depois do «Ideal e facto sensível», principiou a tratar de «Método científico, história, política e tradição». Aí o autor de «Ensaios» por certo com ironia, pretendia, conforme referimos, que o professor coimbrão de começo «abandonou todas as suas posições». E aponta as seguintes linhas «assim, também, se não é a Política que diz ao político: considere todos os homens iguais em direitos, decrete a liberdade e a igualdade — também não o é o seu arbítrio (dele político) que lho pode dizer, só porque ele é um democrata: dir-lho-ão ou poderão dizê-lo certas considerações e razões de outra ordem social que transcendem o facto político propriamente dito, mas que não transcendem certos outros factos ou indicações de outros factos, em que se exprime uma natureza íntima das coisas, e são igualmente susceptíveis de observação e estudo científico».
Sérgio comenta: «a ser assim todas as coisas são científicas». Não me parece pertinente o comentário pois para o professor Moncada facto encarado cientificamente é sempre facto sensível, consoante o prova o que adiante é dito; «abrangendo quanto possível a vida toda no conceito amplo de facto sensível».
Já, porém, «a natureza íntima das coisas» é uma alusão metafísica que se compreende Sérgio não deixe fugir à agudeza do seu bisturi. Ele pergunta «que coisas são essas? Que factos são?» Se se trata da natureza íntima da consciência claro que o experimentalismo de Moncada desaparece. Mas o que são não o diz este — (jocosamente escreve Sérgio «a menina está muda») — e por isso não há propriamente uma revolução mental em Moncada, antes e apenas o uso de uma expressão infeliz.
Mas Sérgio tem razão quando acusa Moncada também de um regresso ao infinito, a que chama com graça «o recurso indefinido aos senhores vizinhos». Este reconheceu que uma ciência, por exemplo, a engenharia, pode prosseguir fins que não são por ela postos e cuja apreciação deve pertencer a outras ciências? E os fins destas últimas? É posto por novas ciências e jamais terminaremos.
Ao debruçar-se sobre a continuação do artigo de Moncada «Método científico...», Sérgio reitera as suas posições, além de, no intróito, traçar página e meia de dispensáveis apreciações pessoais.
Ele aponta onde na sua opinião Cabral de Moncada «roçou pela boa doutrina» e que, para preferir certas tendências a outras, teria de recorrer a critérios a priori e extra-científicos, sublinhando igualmente que a sua teorizada preferência pelas tendências socialmente dominantes o levaria logicamente a ser liberal, racionalista, maçon, etc, enfim o contrário do que é, pois que liberalismo, maçonismo, racionalismo eram — e ainda são hoje em dia — tendências dominantes.
Estamos mais perante argumentos ad hominem do que face a um uso puro da razão, embora esses argumentos tenham indiscutível interesse.
Podemos sustentar o mesmo do escrito final de Sérgio «Para matar saudades» que se arrasta por três números da Seara Nova.
Não esqueçamos que ele, desde que a ciência entra na discussão, não se dispensa da exposição do que entende por método científico, fazendo-o de uma forma brilhante, embora não traga novidades. Moncada fala da observação dos factos sem ideias preconcebidas e logo Sérgio brada que, em ciência, toda a observação assenta na ideia preconcebida que tudo tem uma explicação, uma razão de ser, ou seja, assenta no princípio da razão suficiente. Certíssimo, embora nos pareça que as ideias pre-concebidas a que o professor Moncada aludia eram de uma outra e mais comezinha índole.
Se um dos pontos principais da polémica Sérgio/Moncada era a possibilidade ou impossibilidade de fazer derivar o Sollen, o ideal, da experiência, dos factos, tese essa grosso modo defendida por Moncada e atacada por Sérgio, o outro ponto era, uma vez afastada a experiência como fonte do dever, onde teria este o seu alicerce. A posição de Sérgio sobre o problema é clara: «Um ideal político» diz ele «é uma afirmação da consciência — sempre individual na sua forma» (Ideal e facto sensível) e insiste várias vezes: um ideal social que a consciência nos dita, um dever ser» (Método científico, etc) «O ideal se o não desse a consciência individual de cada um de nós coisa alguma o poderia dar» («Idealismo e realismo»); «Os fins da vontade humana... é na consciência,... é na reflexão sobre a “natureza psicológica” que os traremos enfim à luz do sol» («Despedida»).
«Tudo isso só é normativo porque o encontramos como sendo norma... da actividade da consciência», «encontro essa lei natural como lei natural da consciência, encontro a finalidade como lei intrínseca da consciência» («Para matar saudades»).
Ora perante o ideal que a consciência nos dita, que a consciência nos dá, tratando-se de algo que é sempre individual, Moncada, sem entrar numa negação frontal, hesita, põe dúvidas. Assim ele pergunta: «o valor absoluto dos seus...» (de Sérgio) «ideais... como o demonstrará ele pois? Por uma fé racional, por uma crença viva na consciência humana!... diz-se — o que equivale a dizer por meio de um absurdo, visto que a consciência reflexa ou a auto-consciência ou ainda a kantiana razão prática estão sujeitas à relatividade dos seus juízos». Simplesmente, por outro lado, Moncada dá «carradas de razão» a Sérgio quando este afirma (p. 114) que um ideal político pertence à ordem daquelas coisas que a consciência afirma que devem ser» («Ideal e facto sensível»).
Em «Método científico» Moncada alude ao «capricho do político doutrinário... julgando-se sempre inspirado pela revelação divina dos fins que a sua consciência acusa e formula». No entanto, não deixa de reconhecer que uma moral da consciência «nos dará... três ou quatro princípios universais» mas nada «mais do que isso», mantendo-se então no formalismo e num certo vazio. E, ainda, aí, se refere à «afirmação de um certo ideal não extraído da minha razão individual e do meu sentimento pessoal». Em «Idealismo e Idealismo, fim de uma polémica inútil» esclarece: «O que eu disse foi que para apreciar o valor e colher o sentido desses ideais (não o seu valor e sentido psicológicos, mas o seu valor e sentido morais, sociais, filosoficamente universalmente) não podíamos ficar confinados nos limites estreitos da nossa consciência».
Não são precisas mais citações.
*****
Tentemos agora proceder a um balanço da polémica incidindo consoante é óbvio nos pontos principais de que nos ocupamos.
Parece-nos óbvio que Moncada cometeu efectivamente a falácia naturalista e que António Sérgio está certo quando sustenta que o dever-ser não pode resultar dos factos e que a ciência expõe o que é, e nada tem a ver com o que deve ser.
Os paliativos, que Moncada busca recorrendo às tendências dominantes, ao que constitui uma civilização, são muito bem desmontados por Sérgio. Supomos que Hume não se engana ao considerar uma transição indevida passar do «is» para o «ought».
O simples estar aí nunca poderá consistir numa autêntica justificação. Existir é uma coisa, merecer ou dever existir é outra.
Se tudo quanto existe merecesse existir estaríamos num pleno absurdo. Isso equivaleria a sustentar que tudo é igualmente valioso. E, nessa altura, teria pleno valor a tese que nem tudo é valioso, pelo menos possuiria tanto valor como a tese sua contraditória.
Além disso se tudo fosse valioso equivaleria isso a dizer que o mal não existe. E não seria mal, por exemplo, exterminar os partidários da doutrina segundo a qual tudo é valioso.
Não ignoramos que se contesta a universalidade do princípio enunciado por Hume, e que se denomina, muitas vezes, por lei de Hume. Searle, por exemplo, procura dar um exemplo inequívoco de que, em certos casos, é lícito passar do é para o dever-ser. Ele afirma, em substância, que, se X declarar a Y «prometo pagar-lhe quinhentas libras», essa declaração, que é um facto, faz nascer a obrigação, o dever, de X pagar quinhentas libras a Y. Trata-se, porém, de uma argumentação enganosa. X apenas fica obrigado se houver o dever geral de cumprir todas as declarações promissórias. Sem isso, a mera declaração de X não passaria de uma frase sem ulteriores consequências éticas algo semelhante a «o céu está azul».
Também Von Kutchera procura pôr restrições à lei de Hume, formulando-a de modo diferente. Para ele, só são dedutiveis de proposições não normativas as proposições que são puramente deônticas e se provam sem as primeiras. Como as proposições deônticas, no seu entender, são passíveis de muitas interpretações e em regra aparecem misturadas com elementos não deônticos, a lei de Hume verifica-se na maioria dos casos. No entanto há que admitir excepções. Von Kutchera proclama, logo, uma. De A segue-se «A ou deve-ser B.» Essa é, realmente, uma regra da implicação material. Só que tal implicação não corresponde ao que rigorosamente referimos com «segue-se» e desaparece se não se tratar de uma lógica que apenas admite o verdadeiro e o falso. E é bem discutível se pode aplicar-se ao plano do dever-ser a lógica proposicional extensiva.
Examinemos, outra das excepções que Von Kutchera exibe. Ele acha que se a asserção «A é obrigatório» equivaler a «Posto A, de A se segue que A é obrigatório». Pois é! Só que isso é o mesmo que dizer «se A é normativo» então conclui-se que A é normativo». Simples tautologia em que de resto não se parte do que é mas já do dever-ser, visto A ser obrigatório.
Também Von Kutchera acha que se «é provável que A seja zero» e «A menor que B», isso implica que «A ou B é igual a B», declarando a proposição «provável que A seja zero» uma proposição não avaliativa donde deriva o resto da expressão de avaliação (valuative). Sinceramente o contrário é que nos parece exacto.
Mas deixando estas complicações, Von Kutchera exibe um argumento que se assemelha válido. Só se manda a uma pessoa fazer isto ou aquilo, se isto e aquilo fôr possível. Logo o dever é função do ser possível, ou seja, do ser. Simplesmente, não se extrai aqui dever nenhum do ser, porque o dever, no caso, é impossível. Extrair, fazer derivar o impossível de algo é coisa extraordinária, é como fazer aparecer o nada.
As investidas que mencionamos contra a lei de Hume falham e falham porque tem de falhar. O estar aí, por si só, não contém valor. Se afirmarmos que é valor, já o qualificamos e lhe atribuímos algo que se acrescenta ao mero estar aí.
Não há dúvida, pois, que António Sérgio, neste ponto triunfava face a Cabral de Moncada cujas razões foram com relativa facilidade desmontadas por Sérgio, o que não admira, uma vez que derivavam de uma tese inicial por inteiro indefensável.
Mas no tocante ao segundo tópico já não estamos assim tão seguros, antes numerosas hesitações nos possuem.
Será realmente a consciência, na sua forma individual, que nos ditará, de forma inquestionável, o que deve-ser, o que é indesmentivelmente válido?
A consciência individual parece representar a mais incerta das coisas. O que para a consciência da A é imperativo, para a consciência da B é erro vitando. A minha consciência tanto pode indicar que devo seguir o totalitarismo, como a consciência de outrem apontar como caminho a democracia.
Talvez se diga que a consciência do totalitário não está esclarecida. Mas, então, já vamos para além do que a consciência nos dá, do que a consciência individual nos dita. É preciso que esta esteja esclarecida, logo que se examine os seus ditames procurando destrinçar neles o que tem valor ou o que não o tem.
Com certeza se dermos à consciência o sentido de conhecimento essa é insuperável, mas não nos oferece mandato algum. Ela tanto dará o critério de se lhe obedecer como o de obedecer aos factos que também são conhecimentos da consciência.
Observar-nos-ão, que o pressuposto que a consciência individual está separada das restantes consciências representa uma visão espacial da consciência. Consultar a consciência é consultar uma unidade que é comum a todos os homens.
Começaremos por dizer que, se tudo o que é diferente e diverso é espacial, então Deus, diferente dos anjos, uma equação, diferente de outra, estarão igualmente no espaço e, ao fim e ao cabo, tudo estará no espaço. O espaço será sinónimo do próprio ser, quando, ao invés, é o espaço que pressupõe o ser de que é uma modalidade. E se a consciência fosse, por definição, uma unidade, que sentido teria falar da consciência individual? Haverá uma só consciência e parece que seria melhor falar de consciência tout court, de consciência em geral do que de consciência individual.
Além disso, que significado assumiria bradar, como faz António Sérgio, «procura em ti mesmo», dirigindo-se a Moncada e considerando esse lema sinónimo de apelar para a sua consciência?
Contudo se há várias consciências, elas são limitadas umas pelas outras e como é que um ente limitado nos informa, de modo directo e imediato, de uma regra de conduta suposta insuperável?
Dir-nos-ão que a regra de conduta geral pode estar imanente à consciência particular. Anotando que estamos a esquecer que a consciência dita imperativos e que, agora, fazemo-la um simples órgão de transmissão, responderemos que se está, no caso, a separar a regra geral da consciência individual e que, então, nada nos garante que as suas revelações não sejam muitas vezes equivocadas, dando por geral o que é simplesmente singular.
Tornar-se-á necessário descer ao fundo da consciência para depararmos com o autêntico e genuíno dever-ser? Nessa altura, o dever-ser não será estrictamente dado pela consciência mas pelo fundo da consciência. E, afinal, o dever não é da consciência mas do seu fundo. E atribuí-lo à consciência pura e simplesmente será confundir a parte com o todo.
De resto é-nos possível apelar para um melhor Sérgio — o dos «Ensaios». Não pretendemos sustentar que aí não surja ele a arvorar a consciência individual em critério máximo, mas que outras afirmações aparecem, a nosso ver bem mais correctas. Assim, por exemplo, lemos: «a ordem moral é uma ordem nas consciências», «um ambiente social inspirado pela Justiça... isto significa trazermos à consciência clara a legalidade da Razão a qual... dá ao intelecto o norte constante da marcha do nosso espírito à procura da unidade»; «o saber não pode fundar nem contrariar o sentimento moral, não só porque, limitando-se a indicar aquilo que é lhe não cabe indicar o que deve ser, mas por esta razão mais primitiva, ser a ciência produto da mesma tendência unificante, ordenadora, dessubjectivadora que produz a moralidade». «O esforço de racionalização da vida social, a que demos o nome de acção ética, vem a traduzir-se nesta fórmula... conseguir uma superior harmonia interna a mais constante e completa possível entre a ideia do eu e a dos outros».
Afirmações deste tipo, tão claramente formuladas, não as deparamos, na polémica com Moncada, da parte de António Sérgio. Talvez aflorem — e apenas isso — no final em «Para matar saudades».
Deixemos de lado algumas extravagâncias deste último como considerar Cristo «aquele homem de “influência perturbadora e anti-nacional”» aquele «inimigo de todo o espírito histórico” aquele varão de “odioso espírito judaico, inimigo nato de todas as pátrias”» (curiosamente Moncada parece concordar com isto), ou, quando ensina que «A “doutrina integralista”... é simples devaneio de literatos... mas nenhuma pessoa de verdadeira cultura a poderá jamais tomar a sério», frase escrita pouco tempo depois de Raul Proença ter feito, na «Seara Nova», uma crítica, a sério, da doutrina integralista, ou finalmente quando atribui às ideias políticas de Vitorino Nemésio carácter científico.
Repitamos, que Sérgio, na polémica com Moncada está inteiramente certo nas suas críticas ao factualismo e revela uma agilidade mental, um sentido de humor, uma subtileza, uma habilidade argumentativa que são de salientar pelo seu carácter excepcional e raro, pelo menos entre nós.
Em todo o caso, este episódio da sua vida mental não veio trazer nada de importante a Sérgio. As concepções sergianas já estavam elaboradas e não foi a discussão com Cabral de Moncada que influiu na sua lógica evolução.
Já o mesmo não se pode afirmar a respeito do futuro autor de «Epistemologia Jurídica».
Tempos após o termo da discussão com António Sérgio já — como foi dito — Moncada publicou um «Breve Esclarecimento» sobre as suas teses. Aí se nota um grande esforço de logificação e até uma certa alteração de pontos de vista. Ampliando a sua desconfiança perante uma ética baseada puramente na consciência, Moncada adverte que «não devemos esquecemos que a consciência individual entregue à sua simples intuição está sempre sujeita a aberrações e perigosos desvios». Como se vê reitera com mais decisão o que nos artigos anteriores dissera. Em contrapartida já reconhece, sem hesitação, que «as noções mais elevadas do bem e do dever-ser... não podendo deduzir-se da observação e da experiência sensível, há que tomá-las da própria razão (razão prática) como sua forma a priori».
Simplesmente Moncada atribuindo à razão prática apenas uma tarefa formal e buscando na experiência a posteriori, embora alargada, a matéria da eticidade, de certo modo recai na insustentável posição anterior ao tentar que a forma a priori seja, na sua própria expressão, «controlada pela experiência». O esforço de se ultrapassar e de abandonar os vestígios do positivismo (que no «Breve Esclarecimento» critica fortemente ao passo que na sua primeira resposta a Sérgio enquadra Comte entre os expoentes da sua doutrina «científica») não tem ainda êxito. Tal esforço só se completou na altura em que deparou com uma ética a um tempo material e a priori, ética da consciência, sim, mas de consciência sujeita a rigoroso método, no caso o método fenomenológico. O encontro com Max Scheler patente na primeiro grande trabalho filosófico de Moncada — «Do valor e sentido da democracia» — é o testemunho de um processo de renovação interior cujo ponto de partida foi a polémica a que nos referimos, processo que veio a fazer emergir a obra subsequente de um dos nossos maiores jusfilósofos.
A discussão com Sérgio, em que Moncada, de modo imediato, não saiu vitorioso, foi uma «felix culpa», a que o pensamento luso-brasileiro deve um indiscutível enriquecimento.

António José de Brito

2 Comentários
Comments:
Cautela com as associações entre Liberalismo e Maçonaria.
(muito pelo contrário, em certos casos)

O que é que o 'cú' tem a ver com as 'calças'?

(antes o prof.AJB que a 'dupla do monóculo')
 
www.jogosocial.blogspot.com
 
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