segunda-feira, março 13, 2006
Um optimismo descabido
Acabo de ler um artigo de meu bom amigo Gladstone Chaves de Melo, que andou a correr terras de Europa em missão diplomática e agora se acha em Lisboa como adido cultural. O autor do artigo intitulado “Depois de procelosa tempestade” conta o que viu e ouviu nas missas e nos meios católicos que visitou, e concluiu com palavras de Camões que
Depois de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o sol a negra escuridade
Removendo o temor ao pensamento.
Gladstone Chaves de Melo conclui que as tolices já se desgastaram e que já se vê por toda a parte o que Guerra Junqueiro chamaria “um rosicler d’aurora”. Ora, a mim me parece, tranqüila e objetivamente, que nosso colaborador se engana, talvez pelo fato de ter corrido muitos lugares e por dar excessivo valor ao que viu por onde passou, como viajante, como estranho, para não dizer como turista. Nós outros que ficamos imóveis pudemos apreciar melhor o agigantado volume de estupidez que invade a América Latina vindo de Roma e de toda a cristandade, e a mim me parece que, para tais ponderações, vale mais a leitura repousada do que as locomoções.
Há certa semelhança entre o que diz Gladstone e o que diz Maritain em Le Paysan de la Garonne (p. 79), onde afirma que este erro de hoje é menos perigoso que o primeiro (o maniqueísmo larvado (?)) e que “terá duração menos longa... porque, quando a tolice se excede no meio cristão, é preciso que ela se dissolva depressa, ou que se destaque decididamente da Igreja”.
Parece-me mais sensato pensar que quanto maior for a onda de sottise maior será a devastação, e mais difícil será a recuperação. Descambando na ladeira dos reformismos acelerados, os eclesiásticos se entregam à lei da matéria, e à famosa lei da entropia crescente a que tantas vezes já aludi e que se exprime pela improbabilidade extrema de passar a matéria do estado menos diferenciado para o mais diferenciado e organizado.
É claro que se desgastam com certa rapidez os erros e as fantasias feitos com o sangue de nosso Salvador; mas é claríssimo que logo terá substituta a asneira encalhada por falta de freguesia; porque a calamidade básica permanece. E qual é essa calamidade básica? Salta aos olhos que é a ausência de autoridade, e até a complacência que em seus diversos escalões a hierarquia manifesta pelos heréticos, pelos atrevidos, pelos propagandistas de uma nova religião. Aqui no Brasil um Boff é festejado por bispos e cardeais. Na América Latina ensinam-se descaradamente o marxismo e o socialismo, e são bispos e arcebispos que promovem tal revolução. Em Saragoza, os padres que tiveram a ingênua idéia de se unirem para um integral apoio à tradição e ao Papa não receberam do Papa o menor sinal de agrado, e só encontraram nas amaldiçoadas conferências episcopais a mais agressiva oposição. Na Igreja e na Civilização alastram-se os erros mais funestos. As casas religiosas se desagregam, as vocações desaparecem, e nos seminários ainda existentes o que se ensina já não é o cristianismo, é outra religião que usa o nome de Jesus Cristo que ainda tem mercado. Onde estão os sinais de “serena claridade”, onde a brisa amena, onde o “rosicler d’aurora”?
Além disso ponderemos uma coisa que escapou aos dois otimistas, Gladstone e Maritain, esperançosos ambos na passagem rápida da tempestade de asneiras e na volta à normalidade. Ponderemos a irreversibilidades das demolições, das degradações, dos desmoronamentos individuais e coletivos. Como se processará, por exemplo, a recuperação do Colégio Sacré Coeur destruído e vendido? Como se recuperarão as religiosas que rolaram até a prostituição? E como se deterão os efeitos dos erros entregues à lei da matéria e da inércia?
Por mim, e diante de Deus o digo com a maior convicção, não me parece acertada nem generosa essa pregação em que o pregador tão evidentemente se engana a si mesmo para depois poder enganar os outros. Não creio que nossa santa religião se nutra da mentira vital de Ibsen, ou da filosofia da autotapeação.
A verdade incontornável é a do processo de alargamento da conspiração mundial contra a Igreja de Cristo, promovida com o apoio de seus levitas que não abandonam oportunidade tão propícia para os profissionais do sensacionalismo e do escândalo.
Que figuras quereriam os otimistas que a Igreja imitasse? Que itinerário esperariam que ela copiasse? O dos negociantes prósperos? O dos generais vitoriosos?
A história da Igreja será necessariamente uma imitação da história de Cristo. Teve sua infância obscura, teve o massacre dos inocentes, teve um período de construção e consolidação da doutrina da Salvação. Teve durante mil anos o domingo de Ramos. Entrou depois em quatro séculos de Gethsemani. E agora terá não sei quantos milênios de flagelação.
Estamos no começo do segundo mistério doloroso. O Corpo Místico de Cristo é insultado, chicoteado, cuspido. E a mais bela das casas expõe aos viandantes um deplorável aspecto de desolação e ruína. Virão depois os milênios da coroa de espinhos, os milênios do caminho da cruz e os milênios da crucificação. O que não é admissível – mas foi longamente admitido por equívoco – é a confortável e rotineira instalação da Igreja no Mundo. E o que também não é admissível é que a promessa de que não prevalecerão as portas do Inferno se aplique aos Suíços do Vaticano, aos paramentos e à cor das meias dos prelados. Entre as notas essenciais da Igreja sabemos que sua santa visibilidade foi desde o início concebida por Deus, mas também sabemos que a Igreja não é visível em todas as suas partes, nem é sempre visível em todos os momentos naquelas partes em que se concentra o fulgor de sua visibilidade.
Preparemo-nos, sem ilusões, sem apegos, e sem medo, ao dia do grande eclipse. Não nos enganemos, não nos iludamos, não nos esquivemos: a idéia de uma restauração a breve prazo nos compele à fantasmagoria grotesca que certamente Gladstone e Maritain não subscreveriam. Eu vejo uma procissão de arrependidos, de frades descasados, de filhos de padres involuídos ao útero e ao nada, vejo milhões de lúmens se restaurarem, e vejo, num paroxismo de esperanças drogadas, uma abadessa a criticar severamente os ensaios da “grande reverence” que as noviças deveriam fazer no claustro cada vez que cruzassem com a abadessa. Não estou com nenhuma vontade de rir. Por vários motivos tudo hoje me inclina mais depressa à lágrima, mas não posso deixar de achar engraçado esse otimismo que tanto subestima a energia nuclear da burrice humana hoje aplicada com zelo às coisas santas.
Amigos, unamo-nos, agarremo-nos à cruz de Nosso Senhor, à Igreja essencial, ao cerne, ao Corpo Místico, e às cinco chagas de Cristo. Com toda a força de nossa Esperança repilamos as esperanças enganosas e esperemos no cerne da Igreja, in medio Ecclesiae, o verdadeiro despontar da aurora de um Novo Mundo.
E resistamos fortes na fé, como tantas vezes nos disse o mesmo amigo distante Gladstone Chaves de Melo.
Depois de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o sol a negra escuridade
Removendo o temor ao pensamento.
Gladstone Chaves de Melo conclui que as tolices já se desgastaram e que já se vê por toda a parte o que Guerra Junqueiro chamaria “um rosicler d’aurora”. Ora, a mim me parece, tranqüila e objetivamente, que nosso colaborador se engana, talvez pelo fato de ter corrido muitos lugares e por dar excessivo valor ao que viu por onde passou, como viajante, como estranho, para não dizer como turista. Nós outros que ficamos imóveis pudemos apreciar melhor o agigantado volume de estupidez que invade a América Latina vindo de Roma e de toda a cristandade, e a mim me parece que, para tais ponderações, vale mais a leitura repousada do que as locomoções.
Há certa semelhança entre o que diz Gladstone e o que diz Maritain em Le Paysan de la Garonne (p. 79), onde afirma que este erro de hoje é menos perigoso que o primeiro (o maniqueísmo larvado (?)) e que “terá duração menos longa... porque, quando a tolice se excede no meio cristão, é preciso que ela se dissolva depressa, ou que se destaque decididamente da Igreja”.
Parece-me mais sensato pensar que quanto maior for a onda de sottise maior será a devastação, e mais difícil será a recuperação. Descambando na ladeira dos reformismos acelerados, os eclesiásticos se entregam à lei da matéria, e à famosa lei da entropia crescente a que tantas vezes já aludi e que se exprime pela improbabilidade extrema de passar a matéria do estado menos diferenciado para o mais diferenciado e organizado.
É claro que se desgastam com certa rapidez os erros e as fantasias feitos com o sangue de nosso Salvador; mas é claríssimo que logo terá substituta a asneira encalhada por falta de freguesia; porque a calamidade básica permanece. E qual é essa calamidade básica? Salta aos olhos que é a ausência de autoridade, e até a complacência que em seus diversos escalões a hierarquia manifesta pelos heréticos, pelos atrevidos, pelos propagandistas de uma nova religião. Aqui no Brasil um Boff é festejado por bispos e cardeais. Na América Latina ensinam-se descaradamente o marxismo e o socialismo, e são bispos e arcebispos que promovem tal revolução. Em Saragoza, os padres que tiveram a ingênua idéia de se unirem para um integral apoio à tradição e ao Papa não receberam do Papa o menor sinal de agrado, e só encontraram nas amaldiçoadas conferências episcopais a mais agressiva oposição. Na Igreja e na Civilização alastram-se os erros mais funestos. As casas religiosas se desagregam, as vocações desaparecem, e nos seminários ainda existentes o que se ensina já não é o cristianismo, é outra religião que usa o nome de Jesus Cristo que ainda tem mercado. Onde estão os sinais de “serena claridade”, onde a brisa amena, onde o “rosicler d’aurora”?
Além disso ponderemos uma coisa que escapou aos dois otimistas, Gladstone e Maritain, esperançosos ambos na passagem rápida da tempestade de asneiras e na volta à normalidade. Ponderemos a irreversibilidades das demolições, das degradações, dos desmoronamentos individuais e coletivos. Como se processará, por exemplo, a recuperação do Colégio Sacré Coeur destruído e vendido? Como se recuperarão as religiosas que rolaram até a prostituição? E como se deterão os efeitos dos erros entregues à lei da matéria e da inércia?
Por mim, e diante de Deus o digo com a maior convicção, não me parece acertada nem generosa essa pregação em que o pregador tão evidentemente se engana a si mesmo para depois poder enganar os outros. Não creio que nossa santa religião se nutra da mentira vital de Ibsen, ou da filosofia da autotapeação.
A verdade incontornável é a do processo de alargamento da conspiração mundial contra a Igreja de Cristo, promovida com o apoio de seus levitas que não abandonam oportunidade tão propícia para os profissionais do sensacionalismo e do escândalo.
Que figuras quereriam os otimistas que a Igreja imitasse? Que itinerário esperariam que ela copiasse? O dos negociantes prósperos? O dos generais vitoriosos?
A história da Igreja será necessariamente uma imitação da história de Cristo. Teve sua infância obscura, teve o massacre dos inocentes, teve um período de construção e consolidação da doutrina da Salvação. Teve durante mil anos o domingo de Ramos. Entrou depois em quatro séculos de Gethsemani. E agora terá não sei quantos milênios de flagelação.
Estamos no começo do segundo mistério doloroso. O Corpo Místico de Cristo é insultado, chicoteado, cuspido. E a mais bela das casas expõe aos viandantes um deplorável aspecto de desolação e ruína. Virão depois os milênios da coroa de espinhos, os milênios do caminho da cruz e os milênios da crucificação. O que não é admissível – mas foi longamente admitido por equívoco – é a confortável e rotineira instalação da Igreja no Mundo. E o que também não é admissível é que a promessa de que não prevalecerão as portas do Inferno se aplique aos Suíços do Vaticano, aos paramentos e à cor das meias dos prelados. Entre as notas essenciais da Igreja sabemos que sua santa visibilidade foi desde o início concebida por Deus, mas também sabemos que a Igreja não é visível em todas as suas partes, nem é sempre visível em todos os momentos naquelas partes em que se concentra o fulgor de sua visibilidade.
Preparemo-nos, sem ilusões, sem apegos, e sem medo, ao dia do grande eclipse. Não nos enganemos, não nos iludamos, não nos esquivemos: a idéia de uma restauração a breve prazo nos compele à fantasmagoria grotesca que certamente Gladstone e Maritain não subscreveriam. Eu vejo uma procissão de arrependidos, de frades descasados, de filhos de padres involuídos ao útero e ao nada, vejo milhões de lúmens se restaurarem, e vejo, num paroxismo de esperanças drogadas, uma abadessa a criticar severamente os ensaios da “grande reverence” que as noviças deveriam fazer no claustro cada vez que cruzassem com a abadessa. Não estou com nenhuma vontade de rir. Por vários motivos tudo hoje me inclina mais depressa à lágrima, mas não posso deixar de achar engraçado esse otimismo que tanto subestima a energia nuclear da burrice humana hoje aplicada com zelo às coisas santas.
Amigos, unamo-nos, agarremo-nos à cruz de Nosso Senhor, à Igreja essencial, ao cerne, ao Corpo Místico, e às cinco chagas de Cristo. Com toda a força de nossa Esperança repilamos as esperanças enganosas e esperemos no cerne da Igreja, in medio Ecclesiae, o verdadeiro despontar da aurora de um Novo Mundo.
E resistamos fortes na fé, como tantas vezes nos disse o mesmo amigo distante Gladstone Chaves de Melo.
GUSTAVO CORÇÃO
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