quinta-feira, maio 18, 2006
A Pátria são os homens?
A propósito de debates em curso (Sexo dos Anjos e Nova Frente), recordo um velho artigo do Professor Doutor António José de Brito publicado há muitos anos no semanário "A Rua", uma vez que num discurso do Presidente da República General Ramalho Eanes aflorou essa afirmação -"A Pátria são os homens".
"A tese mais curiosa defendida, hoje em dia, é que a pátria não são os territórios, antes e exclusivamente os homens. Trata-se de uma peregrina concepção congeminada acaso como álibi (de resto infeliz, consoante mostraremos), mas cuja consistência lógica é extremamente frágil. Porque os homens são diferentes entre si e passam, enquanto aquilo que se chama pátria é uno e permanente. Se Portugal fosse homens, Portugal não seria senão uma sucessão infinita de nacionalidades, tantas quantos os homens que se foram sucedendo. E já, para que essas nacionalidades sucessivas não fossem soma dos individuos tomados um por um, seria indispensável recorrer à noção de território. Como se distinguiria um grupo de indivíduos perante o estrangeiro (a não se admitir a raça qual critério válido) senão pela sua fixação num certo "habitat" geográfico?
Portugal seria hoje o conjunto dos portugueses actuais, porque seria a série dos indivíduos que vivem no rectângulo impropriamente chamado Portugal; doutra forma, o que separaria tais indivíduos dos chineses, dos persas, que também são indivíduos?
E repare-se, até, que, se acharmos que a pátria são os homens que habitam uma certa região do globo e pretendermos evitar o desfile fílmico das pátrias, tantas quantas as gerações que nas referidas regiões vão vivendo, o que resta de duradoiro são, apenas, essas regiões do território, em suma. A doutrina em discussão está, portanto, sempre a um milímetro de se converter na sua contrária.
Deixemos isso, no entanto.
Se as pátrias são os homens, transplantados estes para outros locais, a pátria persistiria ainda. A nossa população no Polo Norte seria Portugal.
Algumas perguntas surgem, contudo: teria de se manter, exactamente, o mesmo número de pessoas? Ou poderia haver uma discreta tolerância aritmética? E, neste último caso, até quantos homens teríamos a pátria? Bastaria uma simples maioria absoluta? E porque há-de ser homogéneo o local para onde se transplantem as populações? Se o território não é muito relevante, para que Portugal subsista, porque não distribuir os homens que o constituem "hic et nunc" por todo esse vasto mundo: dez nas Seichelles, quinze nas Fidji, cinco em Tristão da Cunha e assim sucessivamente?
Não vemos, nesta altura, o que os ligaria entre si. De qualquer forma, segundo a nova teoria, a pátria continuaria a existir. No instante, porém, em que as pessoas desaparecessem por morte, é que seríamos forçados a admitir que a pátria nada mais era. A nova teoria aqui esgotou os seus fantasiosos recursos. Abandonemos, todavia, o absurdo desta estranha concepção de pátria, que foi inventada, provavelmente, para justificar o abandono dos territórios por parte daqueles que tinham jurado bater-se pelas fronteiras até à morte. Esse o núcleo crucial da nova ideia de pátria: a tentativa de legitimar a destruição da pátria autêntica. Que não é unicamente nem o território nem os homens, mas um vínculo comum e perene que une estes através dos tempos permanecendo o mesmo, enquanto eles desaparecem uns atrás dos outros. Vínculo que representava um dever e se projecta numa soberania exercida num território e numa obra cultural que nele se desenrola. O território é, assim, o espaço da pátria, o testemunho visível da sua autonomia e perpetuidade, se, por detrás, estiver uma vontade firme de conservação e defesa. Eis o motivo pelo qual jamais se pode renunciar a ele, senão pela força, que não cria direito. A entrega voluntária, sem luta ou praticamente sem luta, de territórios nacionais, é um atentado contra a pátria, é, por isso mesmo, uma vergonha ou um crime sem par. Sacrificaram-se os habitantes neles radicados, imolaram-se os homens, atirando-os, como gado, para as mãos selvagens, cruéis, primárias dos novos amos. Centenas de milhar pereceram nas convulsões da "descolonização exemplar", mais de um milhão viu-se despojado de tudo, expulso dos lares sob saraivadas de injúrias e insultos, passando a vegetar ao Deus dará, neste recanto da Europa à beira mar plantado. Depois de terem prometido solenemente aos "homens" que seriam ouvidos no tocante ao destino a dar às províncias ultramarinas, estas foram distribuidas por sobas às ordens de Moscovo sem ninguém ter sido consultado ou escutado, excepto, claro, os dignos desgovernantes que dispuseram, a bel-prazer, daquilo que lhes não pertencia.
Não há dúvida que, a considerar-se que a pátria são os homens, estes foram magnificamente tratados.
António José de Brito
"A tese mais curiosa defendida, hoje em dia, é que a pátria não são os territórios, antes e exclusivamente os homens. Trata-se de uma peregrina concepção congeminada acaso como álibi (de resto infeliz, consoante mostraremos), mas cuja consistência lógica é extremamente frágil. Porque os homens são diferentes entre si e passam, enquanto aquilo que se chama pátria é uno e permanente. Se Portugal fosse homens, Portugal não seria senão uma sucessão infinita de nacionalidades, tantas quantos os homens que se foram sucedendo. E já, para que essas nacionalidades sucessivas não fossem soma dos individuos tomados um por um, seria indispensável recorrer à noção de território. Como se distinguiria um grupo de indivíduos perante o estrangeiro (a não se admitir a raça qual critério válido) senão pela sua fixação num certo "habitat" geográfico?
Portugal seria hoje o conjunto dos portugueses actuais, porque seria a série dos indivíduos que vivem no rectângulo impropriamente chamado Portugal; doutra forma, o que separaria tais indivíduos dos chineses, dos persas, que também são indivíduos?
E repare-se, até, que, se acharmos que a pátria são os homens que habitam uma certa região do globo e pretendermos evitar o desfile fílmico das pátrias, tantas quantas as gerações que nas referidas regiões vão vivendo, o que resta de duradoiro são, apenas, essas regiões do território, em suma. A doutrina em discussão está, portanto, sempre a um milímetro de se converter na sua contrária.
Deixemos isso, no entanto.
Se as pátrias são os homens, transplantados estes para outros locais, a pátria persistiria ainda. A nossa população no Polo Norte seria Portugal.
Algumas perguntas surgem, contudo: teria de se manter, exactamente, o mesmo número de pessoas? Ou poderia haver uma discreta tolerância aritmética? E, neste último caso, até quantos homens teríamos a pátria? Bastaria uma simples maioria absoluta? E porque há-de ser homogéneo o local para onde se transplantem as populações? Se o território não é muito relevante, para que Portugal subsista, porque não distribuir os homens que o constituem "hic et nunc" por todo esse vasto mundo: dez nas Seichelles, quinze nas Fidji, cinco em Tristão da Cunha e assim sucessivamente?
Não vemos, nesta altura, o que os ligaria entre si. De qualquer forma, segundo a nova teoria, a pátria continuaria a existir. No instante, porém, em que as pessoas desaparecessem por morte, é que seríamos forçados a admitir que a pátria nada mais era. A nova teoria aqui esgotou os seus fantasiosos recursos. Abandonemos, todavia, o absurdo desta estranha concepção de pátria, que foi inventada, provavelmente, para justificar o abandono dos territórios por parte daqueles que tinham jurado bater-se pelas fronteiras até à morte. Esse o núcleo crucial da nova ideia de pátria: a tentativa de legitimar a destruição da pátria autêntica. Que não é unicamente nem o território nem os homens, mas um vínculo comum e perene que une estes através dos tempos permanecendo o mesmo, enquanto eles desaparecem uns atrás dos outros. Vínculo que representava um dever e se projecta numa soberania exercida num território e numa obra cultural que nele se desenrola. O território é, assim, o espaço da pátria, o testemunho visível da sua autonomia e perpetuidade, se, por detrás, estiver uma vontade firme de conservação e defesa. Eis o motivo pelo qual jamais se pode renunciar a ele, senão pela força, que não cria direito. A entrega voluntária, sem luta ou praticamente sem luta, de territórios nacionais, é um atentado contra a pátria, é, por isso mesmo, uma vergonha ou um crime sem par. Sacrificaram-se os habitantes neles radicados, imolaram-se os homens, atirando-os, como gado, para as mãos selvagens, cruéis, primárias dos novos amos. Centenas de milhar pereceram nas convulsões da "descolonização exemplar", mais de um milhão viu-se despojado de tudo, expulso dos lares sob saraivadas de injúrias e insultos, passando a vegetar ao Deus dará, neste recanto da Europa à beira mar plantado. Depois de terem prometido solenemente aos "homens" que seriam ouvidos no tocante ao destino a dar às províncias ultramarinas, estas foram distribuidas por sobas às ordens de Moscovo sem ninguém ter sido consultado ou escutado, excepto, claro, os dignos desgovernantes que dispuseram, a bel-prazer, daquilo que lhes não pertencia.
Não há dúvida que, a considerar-se que a pátria são os homens, estes foram magnificamente tratados.
António José de Brito
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