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domingo, outubro 15, 2006

COMEÇAR PELO PRINCÍPIO 

Até onde se deu conta a actual classe política - constituída por arrependidos do marcelismo, tecnocratas mutantes e diversas famílias marxistas - de que uma situação instaurada em nome do bem estar e progresso materiais dos cidadãos não tem legitimidade para exigir-lhes sacrifícios desse mesmo bem estar, de pedir-lhes que se resignem a trabalhar mais e consumir menos, que arrepiem caminho na euforia de viver dos rendimentos permitida pelas reservas acumuladas pelo anterior Regime?
As chamadas "políticas de austeridade" implicam, como presupostos político-institucionais, ou modos autoritários de exercício do poder ou um consenso das forças sociais, justificado por um imperativo de salvação pública (guerra, ameaça externa, projecto nacional), isto é, por algo que a comunidade em dado momento histórico considera superior às expectativas e padrões de vida dos seus membros.
Pondo de parte, como hipótese de trabalho, a alternativa do estado de excepção, que apesar do mimetismo demonstrado por alguns dos seus próceres não parece caber nos desígnios das cúpulas do establishment, (embora surjam, aqui e ali, veleidades de democracia vigiada - na versão brasileira ou mexicana) haveria que encontrar, nos quadros ideológicos e institucionais vigentas, a tal razão ou projecto, doutrina ou objectivo que justificassem os sacrifícios que a Administração ou as circunstâncias vão exigir ao Povo.
Aí começam as dificuldades ou impossibilidades: não será com certeza a burocracia partidária do social-soarismo - mero quadro administrativo dum capitalismo moribundo ou em recuperação, nem o cocktail de opções centristas ou direitistas envergonhadas, que hão-de mobilizar os cidadãos para a reconstrução nacional; menos se vêem carismáticos líderes, que despertem o incondicionalismo e o fervor das multidões, conduzindo-as à vitória, mesmo que se trate de batalha pacífica. O panorama é dominado por uma sólida mediocridade, mais ou menos respeitável, mais ou menos escandalosa.
O Partido Comunista é, por seu turno, um caso à parte, pois em Lisboa ou na Patagónia tem sempre explicações definitivas para as causas e objectivos, como multinacional da política, constituída por profissionais meramente guiados por critérios de eficácia. Que podem ser particularmente adequados à função de catalizar ou recuperar o caos, manipulando descontentes ou desesperados que é o que cada vez mais há em Portugal. Ninguém ignora que o terreno perdido nas Forças Armadas e na opinião pública o vem compensando o PC, no campo da organização e preparação dos militantes. Por ora em quartéis de inverno, a filial portuguesa do PCUS prepara-se para o que der e vier e retomará a iniciativa logo que as circunstâncias externas da estratégia soviética na Europa lhe derem luz verde.
Assim, não se vendo no leque partidário situacionista qualquer resposta capaz à dicotomia caos progressivo-concentracionismo marxista, torna-se mais imperiosa uma alternativa nacional. Se esta não surgir, o confusionismo, a incompetência, a irresponsabilidade do poder irão uma vez mais ser aproveitados e recuperados pela máquina do PC, isto é, o vazio levará à política do pior.
Importantes sectores do país real - da juventude, dos Católicos, dos Trabalhadores, das Forças Armadas, dos Intelectuais, dos Quadros - apesar do profundo sentido de revolta e vontade de mudança, sentem-se paralisados às portas da Acção por falta dum projecto nacional que sirva de razão e guia à reconquista de Portugal pelos Portugueses.
Então buscam-se messias, caudilhos, homens providenciais, prestidigitadores, magos, alguém capaz de transformar, da noite para o dia, as ruínas em cidade, o caos em universo, a cólera em esperança, alguém que faça frutificar os campos secos, que vista os nus, que leve a andar os paralíticos, que alimente os famintos, que salve a República e ressuscite os mortos. Alguém que, tomando sobre os ombros a raiva, a fé, a esperança, a vontade de todos, a todos arranque do desespero e da derrota.
Este é o pior caminho. Há que começar pelo princípio, que reinventar e recriar Portugal. E tal não pode estar à mercê de césares conhecidos ou desconhecidos, da sorte ou mil sorte dos suas estratégias ou ambições, mesmo legítimas. Até porque são raros os génios ou ungidos de Deus e, como vimos na história próxima, os homens comuns que se sobreestimam acabam mal e deixam pior as empresas a que metem ombros sózinhos ou acompanhados. Ninguém se salva por procuração e hoje, perdidos muitos dos seus esteios materiais e políticos, a independência de Portugal depende muito mais da vontade dos Portugueses, escorada numa firme convicção das razões de Portugal.
Há que interrogar a História e o Futuro, a Razão e o Mito, a Tradição e a Revolução; há que recordar que os homens só lutam pelo que amam, só amam o que respeitam e só respeitam o que conhecem; e fazer uma Peregrinação humilde (mas não amarga) pelo que ficou: pedras de castelos raianos, virados à meseta, cordames e cruzes de Cristo, agora em terra face ao Ocidente; e a memória dos Heróis e o sentir da gente comum. Há sobretudo que viver a revolta dos que se bateram e foram traídos e a daqueles para quem o Império morreu, antes que saíssem de casa. Depois colher os ensinamentos da batalha que Portugal acaba de perder. Analisar e dissecar as utopias em nome de que actuaram os que traíram ou foram instrumento dócil da traição, demonstrar a sua mentira e efeitos e lembrar que da desordem, da mediocridade, da vergonha não podem nascer a ordem, a força, a dignidade.
Há que recordar e meditar tudo o que fez grande a Nação Portuguesa, colhendo as lições de Fidelidade, de Honra, de Sacrifício que guiaram o seu Povo quando foi grande e aventureiro, quando defendeu o rectângulo, rasgou o mar oceano, semeou padrões, ergueu fortalezas, uniu o mundo, salvou gentios. E com o mesmo espírito procurar, na humildade do horizonte que nos ficou, as linhas da reconstrução e alguma esperança.
Traduzir o espírito de Quinhentos em Portugal, rectângulo, 1977.
Temos que recomeçar, deste areal de sudoeste, onde encalharam e se morrem as caravelas, entre a nostalgia dos que foram à Índia e o murmurar dos velhos do Restelo, talvez arrependidos, mas que a mataram. A Índia é agora aqui, nesta Pátria pequena, ocupada, doente, mancha portucalense entre Castela e o mar. A Índia é sabermos porque perdemos, porque vamos passar fome, porque regressámos sem Fé nem especiarias, sem glória nem saque, sózinhos com o presente catastrófico e o futuro ainda pior. A Índia é vencer todos os dias o desgosto e a náusea dos que nos entregaram, destes adamastores pequeninos e grotescos que servem o ocupante, que se debatem entre o medo e a culpa, procurando a cobardia da irresponsabilidade. A Índia é a esperança de redimir a vergonha e desolação que matam e humilham este Povo que outrora foi grande e generoso e agora vegeta, estrangeiro, na Lisboa sem Descobertas.
A Índia é estar num barco triste, sem norte nem bússola, entre nevoeiro e escolhos sem fim, e querer partir outra vez. A Índia é sentir estes restos de memória de naus e império e este sentimento do irremediável histórico de alguma coisa muito grande que se perdeu à deriva, do facto de estarmos, outra vez, de volta da viagem que não faremos mais, encerrados na mãe Europa, com o mar pela frente, agora intransponível.
A Índia é acima de tudo e por tudo isto, a vontade de ainda navegar. A Índia é querer chegar lá.
JAIME NOGUEIRA PINTO
(n.º 63 do semanário "A Rua", de 17 de Junho de 1977)

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