quarta-feira, março 07, 2007
DADAÍSMO
Discute‑se a data, o lugar e o autor da invenção do Dadaísmo. Parece‑me, no entanto, que algumas observações feitas por alguns estudiosos são as mais exactas e podemos sintetizá‑las nestas frases do manifesto que, em 1920, anunciava o fim do movimento em Berlim: «Dadá era flagrante em todo o lado e ninguém o podia inventar. Um baptismo não é uma invenção» (1). Não iremos ao ponto de afirmar, como um dos corifeus do movimento, que «naquele tempo TUDO era DADÁ e DADÁ era TUDO» (2). Mas uma semelhante mentalidade, uma atitude muito parecida, um mesmo conjunto de circunstâncias, estavam espalhados por vários países e continentes e provocavam, naturalmente, o mesmo tipo de reacções. Assente isto, verificaremos que as características essenciais e definidoras do Dadaísmo existem em estados, regiões e género de pessoas muito diversos, em movimentos e personalidades anteriores e que, não só «Dadá é mais do que Dadá» (como afirma o Manifesto acima citado), mas também Dadá precede Dadá. Uma das qualidades dos movimentos surgidos por esta altura é a das suas implicações políticas. Realmente, eles ultrapassam, em regra, a simples consideração estética e, antes de tudo, são uma atitude perante o mundo e a acção, uma espécie de filosofia, uma interpretação e afirmação totais. Assim, nota‑se que o Futurismo, sem mentira nenhuma (3) se declara explicitamente também político e ao Fascismo se une, exceptuando o Futurismo russo que, com Maiakowsky, apoia o Comunismo. Os três chefes do Imagismo e do Vorticismo ligam‑se: ao mais antidemocrático autoritarismo, das direitas, como T. E. Hulme, ao Nazismo, como Wyndham Lewis, ao Fascismo, como Ezra Pound. Por sua vez, o Dadaísmo vai, na Alemanha, passar de atitudes anarquizantes, a comprometer‑se com o Comunismo, assim como o anarquismo futurista italiano desagua no Fascismo. Dadá teve diversos precedentes e ancestrais ‑ mais ou menos próximos. Entre eles, podemos citar, por exemplo, Alfred Jarry (4), Lautréamont, Henri Rousseau, Apollinaire, o Cubismo, o Futurismo e o Expressionismo. O Cubismo é menos uma doutrina do que um processo. Dadá herdou dos cubistas certas coisas, como o gosto pelo repartimento, pela decomposição e pelo simultaneísmo e, ainda, a inovação de materiais. Quanto ao Futurismo e ao Expressionismo, foram já uma atitude espiritual, uma teoria e uma doutrina que deram consequências no Dadá. O Futurismo tem, de certo modo, como início declarado o Manifesto Futurista que Marinetti publicou no Fígaro, em 20 de Fevereiro de 1909 (embora possa remontar a 1907 e até antes). O Expressionismo terá começado com o grupo Die Brücke, em Dresda, em 1902, segundo afirma Roh, mas Lionello Venturi aponta a data de 1903 (dissolução do grupo em 1913), Woermann diz 1906, e Barthélemy Ott escreve que o termo «expressionismo» foi empregue pela primeira vez por Otto zur Linde em 1911. Seja como for, ambos estes movimentos dão entrada ao Dadaísmo. Quanto ao Futurismo, atente‑se nestas declarações de seus Manifestos (5): «O artista deve ter uma originalidade natural. ...Nenhuma obra a que falte o carácter agressivo pode ser uma obra‑prima. ...Nós queremos glorificar... o gesto destrutor dos libertários». E Marinetti aponta fundamentais ideias futuristas: «Antimuseu. Anticultura Antiacademia. Antilógica. Antigracioso. Anti‑sentimental. ...Destruição da síntaxe. ...Palavras em liberdade rumorística. ...Síntese de forma‑cor. ...Dinamismo plástico. ...Pintura abstracta de sons, rumores, odores, pesos e forças misteriosas. Compenetração e simultaneidade de tempo‑espaço, longínquo‑próximo, exterior‑interior, visto‑sonhado. ...Dança palavra‑livre mecânica do corpo multiplicado. ...Declamação politímbrica». E «orquestram‑se as cores, os rumores e os sons, combinam‑se os materiais da língua e dos dialectos, as fórmulas aritméticas e geométricas, os sinais musicais, as palavras velhas, deformadas ou novas, os gritos dos animais, das feras e dos motores. ...Destrói‑se a síntaxe, abule‑se a pontuação, o adjectivo e o advérbio, usa‑se o verbo no infinito, adopta‑se um estilo analógico».
Quanto ao Expressionismo, reparemos nestas características apontadas por Geneviève Bianquis: «Reclama‑se uma poesia que diga a aspiração colectiva, o borborinho das multidões, a unanimidade dos corações. Que interessa notar os reflexos em nós do inundo exterior? É preciso mas é dizer violentamente o que se passa em nós, o que nos sobressalta e nos rasga: não a impressão, mas sim a expressão; não o exterior, mas o interior; não o efémero e o acidental, mas o eterno e o imutável, o sempre verdadeiro. Sente‑se que se vive num mundo artificial, inteiramente mecanizado e industrializado, dilacerado, por ódios de nações e de classes, onde o coração, o sonho, a paixão sofrem por serem oprimidos e torturados. Não há senão um passo desde aqui até às doutrinas revolucionárias e anarquistas que lançam o anátema sobre o mundo presente e anunciam o advento de um reino de fraternidade entusiástica, de espontaneidade desbordante. Os primeiros expressionistas são, na maioria, socialistas, democráticos, pacifistas, e mais raramente anarquistas. Em nome da poesia, eles atacam o militarismo e o capitalismo, a Igreja e o Estado moderno. Mas a crítica deles nada tem ele crítica racional: ela é de jeito religioso e profético, lírico e furibundo, expande‑se em anátemas, exalta‑se até ao êxtase, dissolve‑se em frenéticos balbuceios ou em soluços» (6).
O que passou destes dois movimentos para o Dadaísmo? Em primeiro lugar, uma declarada oposição à chamada Cultura, que ele identifica com uma coisa enquistada, bolorenta, anacrónica e formalista, vazia de vida, com algo que é pura erudição e rotina, anemizante repetição do passado; requer‑se uma iniciativa própria e criadora, uma descontingenciação e uma descontracção, um movimento, uma fúria destruidora, irreverente, implacável. Em segundo lugar, busca‑se o natural e o primitivo, aquilo que o Dadaísmo supõe ser a originária e fecunda natureza do homem e residir num certo interior, e na permanência e não no acidental imposto pelo exterior, pelo deformante; julga, assim, que a sociedade e a civilização distorceram ou abafaram o verdadeiro homem e o autêntico valor (embora os dadaístas neguem todos os valores, requeiram a arbitrariedade e imponham o Eu). Se os futuristas atacam uma sociedade, uma cultura e uma civilização atrasadas, ultrapassadas, estáticas, preguiçosas, vazias, os dadaístas enfileiram mais ao lado dos expressionistas e vêm atacar a própria Sociedade (e as suas sociedades: Igreja, Exército, Família, Nação, Estado), a Cultura e a Civilização e ainda os seus produtos, inclusivamente a Arte. Por isso. como diz Rafael Benet, «Dadá não tem estilo; não é nenhum estilo; é, apenas, um estado de espírito. ... Que triste destino o do artista contemporâneo cheio de inchada vaidade, sem princípios, pleno de asco por tudo o que o rodeia, impotente por causa da sua absurda ambição do nada! A invasão literária — da má literatura —, o mau humor contra tudo o que está estabelecido, um informulado desejo de infinito, um asco da vida, um estado de vesania, são as causas do nascimento de Dadá» (7). Tristan Tzara declara que «o movimento é só a materialização do seu asco: que para ele só contam a indiferença activa, a espontaneidade e a relatividade» (8). Ao Dadaísmo «falta‑lhe a esperança; confunde tudo num caos abominável: o bem e o mal misturam‑se...» (7). É uma constante destruição, até de si próprio, é continuamente subversão, negação.
O Dadaísmo só deseja e aceita a vida, mas, por temor ao enquistamento, ao formalismo e à cristalização, confunde a vida com desordem, destruição, ultrapassagem e negação de toda a forma. Deseja a permanência mas não na forma, sim no fluir, na corrente, no ímpeto aniquilador — interiores e anteriores a todas as formas de vida. Por isso, compreende‑se que ataque os géneros, as artes, as ciências, a filosofia, a estética, e seja contra o que está aceite, respeitado ou admirado, contra o que é costume, contra a regra e a ordem. E é esta a razão por que vai buscar — e este o espírito com que vai buscar —, continuando‑os e adaptando‑os, processos e invenções de outros movimentos (cubistas, expressionistas, futuristas). Em vez da civilização, da cultura e da arte, proclama a natureza, a vida, o primitivismo ou a banalidade que fere o artificialismo; em vez do regulamento, da etiqueta e da aprendizagem, requer o desregramento, a confusão, a fealdade e o acaso. Em vez do objecto artístico, o desprezo por ele, o insulto a ele, e o objecto vulgar, de uso comum e de fabrico comum. Trata‑se de corroer, dissolver, desarticular, estilhaçar, misturar, confundir, provocar o absurdo e o caos. A pontuação e as maiúsculas são abolidas ou utilizadas arbitrariamente. Procura‑se obter novidades, efeitos chocantes e recobrar um ingénuo, originário sentido criativo. Para isso, consorciam‑se figuras, materiais, formas e assuntos separados ou inconciliáveis, quer no campo visual (com a fotocolagem e a fotomontagem), quer no campo literário e dos géneros, e até se misturam vários processos (literários, gráficos, plásticos, de movimento, etc.) e também se conjugam pedaços ou totalidades de objectos naturais, de produções artísticas e de produtos de uso vulgar ou utilitário. Perceber‑se‑á, por conseguinte, a razão de ser de obras como estas: A Gioconda, de Leonardo da Vinci, com uns bigodes postos por Marcel Duchamp, (na grande Exposição dadá de Berlim); uma vulgar retrete de louça, com a assinatura de R. Mut, pseudónimo do mesmo Duchamp na 1.ª Exposição de Arte Moderna, em Nova lorque); os desenhos e as madeiras gravadas de Arp, simplificações e combinações essenciais das formas gastas e polidas de conchas e pedras de praia, ou dos ondeados dos troncos.
Se há um espírito comum aos movimentos Dadá em todos os países e localidades há, no entanto, algo que os diferencia. Hausmann diz o seguinte: «As relações entre os diferentes grupos dadás na Alemanha eram nulas e, fora das semelhanças criadas pela época, nós estávamos até 1920 separados uns dos outros por abismos» (9). Por exemplo, e mais vastamente: Os Franceses voltavam‑se para o maravilhoso dos românticos Alemães, para o subconsciente freudiano, para a Alemanha, enfim; os Alemães (embora o grupo de Colónia estivesse mais próximo da atitude francesa) atacavam a Alemanha que a si própria se exalta e pretendiam haver ultrapassado Freud: «Combatemos essa civilização teutónica, opondo‑lhe, não o Nada surrealista-existencialista, mas um mundo recriado por nós e pelos nossos conhecimentos» (10).
Talvez pertencessem ao grupo de Berlim as maiores tendências e autenticidade do Dadaísmo, algo anterior ao movimento declarado e ao nome, algo que continuou posterior a eles, algo que pretende não findar, algo que revela a proclamação (na linha de outra feita por Marinetti): «Ser antidadá é ser Dadá. ...Dadá é a sua própria contra‑revolução». Hausmann elucida: «As nossas intenções, justificadas pelas nossas experiências no domínio da mania e da catatonia, e pela participação dum grande desequilibrado, Johannes Baader, só se podiam manifestar sob a máscara de Dadá. ...Nós havíamo‑nos posto de acordo com Huelsenbeck à sua volta da Suíça, para nos servirmos dele e de Dadá como sapa e base de combate contra a sociedade e os intelectuais, considerando dissolvente a nossa atitude, realizada e vivida» (11).
Como surgiu, porém, o nome Dadá e como se declarou o movimento? A ironia, o ataque e o escândalo tomam, a partir de 1910, cada vez mais lugar nas obras de Duchamp e Picabia, para «edificar a conjura pré‑dadaísta à qual se deverá juntar Apollinaire e que terá por primeiro efeito a ruptura com o espírito de gravidade». Em 1913, eles, pela Suíça e Paris, estão já, de certo modo, elaborando o «complot dadá» em cuja origem está «uma reacção do espírito de infância contra a pressão cada vez mais nítida dos acontecimentos». Em 1913‑14, Duchamp apresenta os seus «ready-made» e com eles chega a Nova lorque em 1915, onde com Man Ray e Picabia desenvolve novas actividades pré‑dadaístas (12).
Hausmann refere‑se à «atmosfera e ambiente protodadá em Berlim: «Desde a declaração de guerra (1914) nós tentávamos revoltar o espírito de escravos do povo alemão». Em 1912, o escritor Franz Jung publicara O Livro do Imbecil (Trottelbuch), «o descaminho interior e a impotência em face dos fenómenos duma vida absurda». Um senhor Johannes Baader, que se evadira do manicómio pela primeira vez em 17 de Setembro de 1899 (aos 23 anos), tomava atitudes de «irrealidade» e toda a sua vida se considerou Jesus Cristo tornado a vir das nuvens do Céu. Numa revista, Die Aktion, que inseria colaboração política e de pintores e escritores vanguardistas, colaboravam também Raoul Hausmann e Franz Jung que se conheceram em 1916. Ambos os autores juntos publicaram vários cadernos e revistas como Die Freie Strasse (A estrada livre), «distribuída gratuitamente para divulgar uma nova psicanálise formulada por Otto Gross». Um comum amigo de ambos, o poeta Richard Huelsenbeck, militar reformado, foi para a Suíça, onde residia outro alemão, o refractário Hugo Ball. Este último e a sua amiga Emmy Hennings «organizavam nesse tempo, no «Cabaret Voltaire», em Zurique, «serões em que se diziam versos, em que pintores apresentavam quadros, desenhos, «papéis colados», e em que se punham em cena espectáculos de dança» (13). A Hugo Ball haviam‑se reunido Hans Arp, (outro alemão, nascido em Estrasburgo) e os romenos Tristan Tzara e Marcel Janco, e então juntou‑se‑lhes Huelsenbeck. O movimento existia já, portanto. E o nome? Marcel Jean conta assim o caso: «Ball e Huelsenbeck procuravam um nome artístico para uma cantora do cabaret e, para isso, abriram ao acaso um dicionário franco-alemão. O primeiro termo que lhes caiu debaixo dos olhos foi Dadá e, então Dadá tomou‑se, não um pseudónimo, e sim o nome do novo moviment0» (12). Era o dia 8 de Fevereiro de 1916. No entanto, quer Tristan Tzara quer Hans Arp reivindicam também para cada um deles a invenção da palavra (12). Ainda nesse ano, publica‑se «Cabaret Voltaire», um volume «artístico e literário, em cujo prefácio surge, pela primeira vez e pela pena de Ball, a palavra DADÁ» (13).
Em Zurique o movimento continua com várias actividades: espectáculos tumultuosos no cabaret; exposições escandalosas em salas de espectáculos; sessões desvairadas, abracadabrantes, de cómico e gravidade. Em Fevereiro de 1917, Huelsenbeck volta a Berlim, e liga‑se a Franz Jung e a Hausmann. Nesse mesmo ano, forma‑se naquela cidade o movimento Dadá. Em Abril de 1918, surge o primeiro Manifesto Dadá em Berlim, assinado por Tristan Tzara, Franz Jung, Georges Grosz, Marcel Janco, Richard Huelsenbeck, Gehrard Preisz, Raoul Hausmann. Entretanto, Max Ernst, que «morrera em 1 de Agosto de 1914», ressuscita em 11 de Novembro de 1918, «como um jovem aspirando a tomar‑se mágico e a descobrir o mito da sua época».
Ao ressuscitar, Max Ernst ligou‑se a Dadá, e, com o seu amigo Baargeld, tornou‑se o animador do movimento na cidade de Colónia (15) e por toda a Renânia. Em Berlim, Baader nomeava‑se Ober‑Dada (Supradadá). Começam a desenvolver‑se várias manifestações dadaístas, individuais ou colectivas, desde o folheto e a exposição até ao cabaret dadá. Na Suíça, Tzara e Arp criam uma dança de urso e, na Alemanha, Hausmann e seus companheiros inventam e apresentam danças como o sixty‑one‑step. Fazem‑se conferências, recitais, uma estranha mistura de arenga e espectáculo. Em Paris, Dadá afecta autores como Cendrars, Picasso, Breton. Atinge, depois Barcelona. Em Portugal, podem considerar‑se dadaístas várias atitudes e obras de Almada Negreiros e Santa‑Rita Pintor. A actividade dadá estende‑se, renova‑se, inova, inventa, ataca. Apresenta esculturas híbridas, poemas fonéticos, fotomontagens, cinema sintético da pintura. Intervém, por vezes, muito ligada ou aparentada com factos políticos. Na Alemanha esteve, desde início, bastante próximo dos comunistas. J. E. Baargeld era um dos corifeus do movimento dadá em Colónia e também do Partido Comunista. Naquela cidade, o periódico do grupo era o jornal comunista Der Ventilador. O dadá John Heartfield era mesmo filiado no partido. Em Novembro de 1918, deu‑se em Berlim a revolução soviética que durou uma semana e que nomeou Huelsenbeck para comissário das Belas‑Artes. Outros dadás, embora não pertencendo ao partido, desenvolviam actividades coincidentes, como certas conferências que, no dizer de Georges Hugnet, «se não eram oficialmente meetings comunistas, militavam acima de tudo a favor da revolução total que Lenine e o Marxismo haviam levado à velha Rússia» (16).
E assim Dadá alarga‑se, desdobra‑se, parte‑se, aniquila‑se, desfigura‑se. Vai influenciar outros movimentos, alguns que o negam, tal como ele negou e atacou os seus ancestrais Futurismo e Expressionismo. Vai tomar nova forma, clássica, moderada e ordenada, no Surrealismo (17). Vai tentar novo e efémero sobressalto no movimento Antidadá de Merck, de Hausmann e Schwitters. Vai ser «um protótipo do Existencialismo» e permitir que Sartre se chame o novo dadá (18). Conforme escreve Rafael Benet, «encontramos associados a Dadá, num período ou noutro, elementos tão heterogéneos como Picasso, Ecgeling, Segal, Janco, Marinetti, Apollinaire, Modigliani, Arp, Huelsenbeck, Kandinsky, Van Rees, Cendrars, Ball, Grosz, Max Ernst, Picabia, Marcel Duchamp, Man Ray, Aragon, Breton, R. Hausmann, Johannes Baader, Eluard, Carl Einstein, Franz Jung, Friedlaender, Heartfield, Kisling, Chirico, Lissitzky, Mondrian, Däubler, Citroën, Paul Dermée, Giacometti, Baumaister, etc.» (19). Produto da nossa época indisciplinada e dividida, sem fé nem hierarquias, produto duma vida angustiosa e dum materialismo que não satisfaz e duma ansiedade febricitante, Dadá é o desespero (menor, em todo o caso, do que o desespero para além do desespero que existe no vácuo anunciado em Samuel Beckett, por exemplo). Dadá é pretensa actividade humana e pseudo‑alegria: nada encontra, porque nada também pode dar.
Quanto ao Expressionismo, reparemos nestas características apontadas por Geneviève Bianquis: «Reclama‑se uma poesia que diga a aspiração colectiva, o borborinho das multidões, a unanimidade dos corações. Que interessa notar os reflexos em nós do inundo exterior? É preciso mas é dizer violentamente o que se passa em nós, o que nos sobressalta e nos rasga: não a impressão, mas sim a expressão; não o exterior, mas o interior; não o efémero e o acidental, mas o eterno e o imutável, o sempre verdadeiro. Sente‑se que se vive num mundo artificial, inteiramente mecanizado e industrializado, dilacerado, por ódios de nações e de classes, onde o coração, o sonho, a paixão sofrem por serem oprimidos e torturados. Não há senão um passo desde aqui até às doutrinas revolucionárias e anarquistas que lançam o anátema sobre o mundo presente e anunciam o advento de um reino de fraternidade entusiástica, de espontaneidade desbordante. Os primeiros expressionistas são, na maioria, socialistas, democráticos, pacifistas, e mais raramente anarquistas. Em nome da poesia, eles atacam o militarismo e o capitalismo, a Igreja e o Estado moderno. Mas a crítica deles nada tem ele crítica racional: ela é de jeito religioso e profético, lírico e furibundo, expande‑se em anátemas, exalta‑se até ao êxtase, dissolve‑se em frenéticos balbuceios ou em soluços» (6).
O que passou destes dois movimentos para o Dadaísmo? Em primeiro lugar, uma declarada oposição à chamada Cultura, que ele identifica com uma coisa enquistada, bolorenta, anacrónica e formalista, vazia de vida, com algo que é pura erudição e rotina, anemizante repetição do passado; requer‑se uma iniciativa própria e criadora, uma descontingenciação e uma descontracção, um movimento, uma fúria destruidora, irreverente, implacável. Em segundo lugar, busca‑se o natural e o primitivo, aquilo que o Dadaísmo supõe ser a originária e fecunda natureza do homem e residir num certo interior, e na permanência e não no acidental imposto pelo exterior, pelo deformante; julga, assim, que a sociedade e a civilização distorceram ou abafaram o verdadeiro homem e o autêntico valor (embora os dadaístas neguem todos os valores, requeiram a arbitrariedade e imponham o Eu). Se os futuristas atacam uma sociedade, uma cultura e uma civilização atrasadas, ultrapassadas, estáticas, preguiçosas, vazias, os dadaístas enfileiram mais ao lado dos expressionistas e vêm atacar a própria Sociedade (e as suas sociedades: Igreja, Exército, Família, Nação, Estado), a Cultura e a Civilização e ainda os seus produtos, inclusivamente a Arte. Por isso. como diz Rafael Benet, «Dadá não tem estilo; não é nenhum estilo; é, apenas, um estado de espírito. ... Que triste destino o do artista contemporâneo cheio de inchada vaidade, sem princípios, pleno de asco por tudo o que o rodeia, impotente por causa da sua absurda ambição do nada! A invasão literária — da má literatura —, o mau humor contra tudo o que está estabelecido, um informulado desejo de infinito, um asco da vida, um estado de vesania, são as causas do nascimento de Dadá» (7). Tristan Tzara declara que «o movimento é só a materialização do seu asco: que para ele só contam a indiferença activa, a espontaneidade e a relatividade» (8). Ao Dadaísmo «falta‑lhe a esperança; confunde tudo num caos abominável: o bem e o mal misturam‑se...» (7). É uma constante destruição, até de si próprio, é continuamente subversão, negação.
O Dadaísmo só deseja e aceita a vida, mas, por temor ao enquistamento, ao formalismo e à cristalização, confunde a vida com desordem, destruição, ultrapassagem e negação de toda a forma. Deseja a permanência mas não na forma, sim no fluir, na corrente, no ímpeto aniquilador — interiores e anteriores a todas as formas de vida. Por isso, compreende‑se que ataque os géneros, as artes, as ciências, a filosofia, a estética, e seja contra o que está aceite, respeitado ou admirado, contra o que é costume, contra a regra e a ordem. E é esta a razão por que vai buscar — e este o espírito com que vai buscar —, continuando‑os e adaptando‑os, processos e invenções de outros movimentos (cubistas, expressionistas, futuristas). Em vez da civilização, da cultura e da arte, proclama a natureza, a vida, o primitivismo ou a banalidade que fere o artificialismo; em vez do regulamento, da etiqueta e da aprendizagem, requer o desregramento, a confusão, a fealdade e o acaso. Em vez do objecto artístico, o desprezo por ele, o insulto a ele, e o objecto vulgar, de uso comum e de fabrico comum. Trata‑se de corroer, dissolver, desarticular, estilhaçar, misturar, confundir, provocar o absurdo e o caos. A pontuação e as maiúsculas são abolidas ou utilizadas arbitrariamente. Procura‑se obter novidades, efeitos chocantes e recobrar um ingénuo, originário sentido criativo. Para isso, consorciam‑se figuras, materiais, formas e assuntos separados ou inconciliáveis, quer no campo visual (com a fotocolagem e a fotomontagem), quer no campo literário e dos géneros, e até se misturam vários processos (literários, gráficos, plásticos, de movimento, etc.) e também se conjugam pedaços ou totalidades de objectos naturais, de produções artísticas e de produtos de uso vulgar ou utilitário. Perceber‑se‑á, por conseguinte, a razão de ser de obras como estas: A Gioconda, de Leonardo da Vinci, com uns bigodes postos por Marcel Duchamp, (na grande Exposição dadá de Berlim); uma vulgar retrete de louça, com a assinatura de R. Mut, pseudónimo do mesmo Duchamp na 1.ª Exposição de Arte Moderna, em Nova lorque); os desenhos e as madeiras gravadas de Arp, simplificações e combinações essenciais das formas gastas e polidas de conchas e pedras de praia, ou dos ondeados dos troncos.
Se há um espírito comum aos movimentos Dadá em todos os países e localidades há, no entanto, algo que os diferencia. Hausmann diz o seguinte: «As relações entre os diferentes grupos dadás na Alemanha eram nulas e, fora das semelhanças criadas pela época, nós estávamos até 1920 separados uns dos outros por abismos» (9). Por exemplo, e mais vastamente: Os Franceses voltavam‑se para o maravilhoso dos românticos Alemães, para o subconsciente freudiano, para a Alemanha, enfim; os Alemães (embora o grupo de Colónia estivesse mais próximo da atitude francesa) atacavam a Alemanha que a si própria se exalta e pretendiam haver ultrapassado Freud: «Combatemos essa civilização teutónica, opondo‑lhe, não o Nada surrealista-existencialista, mas um mundo recriado por nós e pelos nossos conhecimentos» (10).
Talvez pertencessem ao grupo de Berlim as maiores tendências e autenticidade do Dadaísmo, algo anterior ao movimento declarado e ao nome, algo que continuou posterior a eles, algo que pretende não findar, algo que revela a proclamação (na linha de outra feita por Marinetti): «Ser antidadá é ser Dadá. ...Dadá é a sua própria contra‑revolução». Hausmann elucida: «As nossas intenções, justificadas pelas nossas experiências no domínio da mania e da catatonia, e pela participação dum grande desequilibrado, Johannes Baader, só se podiam manifestar sob a máscara de Dadá. ...Nós havíamo‑nos posto de acordo com Huelsenbeck à sua volta da Suíça, para nos servirmos dele e de Dadá como sapa e base de combate contra a sociedade e os intelectuais, considerando dissolvente a nossa atitude, realizada e vivida» (11).
Como surgiu, porém, o nome Dadá e como se declarou o movimento? A ironia, o ataque e o escândalo tomam, a partir de 1910, cada vez mais lugar nas obras de Duchamp e Picabia, para «edificar a conjura pré‑dadaísta à qual se deverá juntar Apollinaire e que terá por primeiro efeito a ruptura com o espírito de gravidade». Em 1913, eles, pela Suíça e Paris, estão já, de certo modo, elaborando o «complot dadá» em cuja origem está «uma reacção do espírito de infância contra a pressão cada vez mais nítida dos acontecimentos». Em 1913‑14, Duchamp apresenta os seus «ready-made» e com eles chega a Nova lorque em 1915, onde com Man Ray e Picabia desenvolve novas actividades pré‑dadaístas (12).
Hausmann refere‑se à «atmosfera e ambiente protodadá em Berlim: «Desde a declaração de guerra (1914) nós tentávamos revoltar o espírito de escravos do povo alemão». Em 1912, o escritor Franz Jung publicara O Livro do Imbecil (Trottelbuch), «o descaminho interior e a impotência em face dos fenómenos duma vida absurda». Um senhor Johannes Baader, que se evadira do manicómio pela primeira vez em 17 de Setembro de 1899 (aos 23 anos), tomava atitudes de «irrealidade» e toda a sua vida se considerou Jesus Cristo tornado a vir das nuvens do Céu. Numa revista, Die Aktion, que inseria colaboração política e de pintores e escritores vanguardistas, colaboravam também Raoul Hausmann e Franz Jung que se conheceram em 1916. Ambos os autores juntos publicaram vários cadernos e revistas como Die Freie Strasse (A estrada livre), «distribuída gratuitamente para divulgar uma nova psicanálise formulada por Otto Gross». Um comum amigo de ambos, o poeta Richard Huelsenbeck, militar reformado, foi para a Suíça, onde residia outro alemão, o refractário Hugo Ball. Este último e a sua amiga Emmy Hennings «organizavam nesse tempo, no «Cabaret Voltaire», em Zurique, «serões em que se diziam versos, em que pintores apresentavam quadros, desenhos, «papéis colados», e em que se punham em cena espectáculos de dança» (13). A Hugo Ball haviam‑se reunido Hans Arp, (outro alemão, nascido em Estrasburgo) e os romenos Tristan Tzara e Marcel Janco, e então juntou‑se‑lhes Huelsenbeck. O movimento existia já, portanto. E o nome? Marcel Jean conta assim o caso: «Ball e Huelsenbeck procuravam um nome artístico para uma cantora do cabaret e, para isso, abriram ao acaso um dicionário franco-alemão. O primeiro termo que lhes caiu debaixo dos olhos foi Dadá e, então Dadá tomou‑se, não um pseudónimo, e sim o nome do novo moviment0» (12). Era o dia 8 de Fevereiro de 1916. No entanto, quer Tristan Tzara quer Hans Arp reivindicam também para cada um deles a invenção da palavra (12). Ainda nesse ano, publica‑se «Cabaret Voltaire», um volume «artístico e literário, em cujo prefácio surge, pela primeira vez e pela pena de Ball, a palavra DADÁ» (13).
Em Zurique o movimento continua com várias actividades: espectáculos tumultuosos no cabaret; exposições escandalosas em salas de espectáculos; sessões desvairadas, abracadabrantes, de cómico e gravidade. Em Fevereiro de 1917, Huelsenbeck volta a Berlim, e liga‑se a Franz Jung e a Hausmann. Nesse mesmo ano, forma‑se naquela cidade o movimento Dadá. Em Abril de 1918, surge o primeiro Manifesto Dadá em Berlim, assinado por Tristan Tzara, Franz Jung, Georges Grosz, Marcel Janco, Richard Huelsenbeck, Gehrard Preisz, Raoul Hausmann. Entretanto, Max Ernst, que «morrera em 1 de Agosto de 1914», ressuscita em 11 de Novembro de 1918, «como um jovem aspirando a tomar‑se mágico e a descobrir o mito da sua época».
Ao ressuscitar, Max Ernst ligou‑se a Dadá, e, com o seu amigo Baargeld, tornou‑se o animador do movimento na cidade de Colónia (15) e por toda a Renânia. Em Berlim, Baader nomeava‑se Ober‑Dada (Supradadá). Começam a desenvolver‑se várias manifestações dadaístas, individuais ou colectivas, desde o folheto e a exposição até ao cabaret dadá. Na Suíça, Tzara e Arp criam uma dança de urso e, na Alemanha, Hausmann e seus companheiros inventam e apresentam danças como o sixty‑one‑step. Fazem‑se conferências, recitais, uma estranha mistura de arenga e espectáculo. Em Paris, Dadá afecta autores como Cendrars, Picasso, Breton. Atinge, depois Barcelona. Em Portugal, podem considerar‑se dadaístas várias atitudes e obras de Almada Negreiros e Santa‑Rita Pintor. A actividade dadá estende‑se, renova‑se, inova, inventa, ataca. Apresenta esculturas híbridas, poemas fonéticos, fotomontagens, cinema sintético da pintura. Intervém, por vezes, muito ligada ou aparentada com factos políticos. Na Alemanha esteve, desde início, bastante próximo dos comunistas. J. E. Baargeld era um dos corifeus do movimento dadá em Colónia e também do Partido Comunista. Naquela cidade, o periódico do grupo era o jornal comunista Der Ventilador. O dadá John Heartfield era mesmo filiado no partido. Em Novembro de 1918, deu‑se em Berlim a revolução soviética que durou uma semana e que nomeou Huelsenbeck para comissário das Belas‑Artes. Outros dadás, embora não pertencendo ao partido, desenvolviam actividades coincidentes, como certas conferências que, no dizer de Georges Hugnet, «se não eram oficialmente meetings comunistas, militavam acima de tudo a favor da revolução total que Lenine e o Marxismo haviam levado à velha Rússia» (16).
E assim Dadá alarga‑se, desdobra‑se, parte‑se, aniquila‑se, desfigura‑se. Vai influenciar outros movimentos, alguns que o negam, tal como ele negou e atacou os seus ancestrais Futurismo e Expressionismo. Vai tomar nova forma, clássica, moderada e ordenada, no Surrealismo (17). Vai tentar novo e efémero sobressalto no movimento Antidadá de Merck, de Hausmann e Schwitters. Vai ser «um protótipo do Existencialismo» e permitir que Sartre se chame o novo dadá (18). Conforme escreve Rafael Benet, «encontramos associados a Dadá, num período ou noutro, elementos tão heterogéneos como Picasso, Ecgeling, Segal, Janco, Marinetti, Apollinaire, Modigliani, Arp, Huelsenbeck, Kandinsky, Van Rees, Cendrars, Ball, Grosz, Max Ernst, Picabia, Marcel Duchamp, Man Ray, Aragon, Breton, R. Hausmann, Johannes Baader, Eluard, Carl Einstein, Franz Jung, Friedlaender, Heartfield, Kisling, Chirico, Lissitzky, Mondrian, Däubler, Citroën, Paul Dermée, Giacometti, Baumaister, etc.» (19). Produto da nossa época indisciplinada e dividida, sem fé nem hierarquias, produto duma vida angustiosa e dum materialismo que não satisfaz e duma ansiedade febricitante, Dadá é o desespero (menor, em todo o caso, do que o desespero para além do desespero que existe no vácuo anunciado em Samuel Beckett, por exemplo). Dadá é pretensa actividade humana e pseudo‑alegria: nada encontra, porque nada também pode dar.
Goulart Nogueira
Notas:
1 — Raoul Hausmann, Courrier Dada, Le Terrain Vague, Paris, 1958.
2 — Raoul Hausmann, ob. cit., p. 14.
3 — Cf. João Gaspar Simões, A Mentira do Futurismo, in «Diário Ilustrado», Junho de 1959, onde preconceituosarmente se ataca o Futurismo.
4 — Cf. Georges Ribemont‑Dessaignes, Avant Dada, in «Les lettres nouvelles», n.º 32, p. 543: « ... Um dos homens cuja influência se exerceu, visível ou invisível, sobre o estado artístico dum período que se pode situar entre 1905 e 1925».
5 — Manifestos Futuristas, citados por Marinetti, in Futurismo, Enciclopédia Italiana, 1932.
6 — Geneviève Bianquis, Histoire de Ia Littérature Allemande, Libr. Armand Colin, Paris, 1958, pp. 197‑198.
7 — Rafael Benet, Futurismo y Dada, Barcelona, 1949, pp. 19‑20.
8 — Citado por Rafael Benet, ob. cit., p. 20.
9 — Raoul Hausmann, ob. cit., p. 45.
10 — Raoul Hausmann, ob. cit., p. 32.
11 — Raoul Hausmann, ob. cit., pp. 26 e 31.
12 — Robert Lebel, Marcel Duchamp, 1959.
13 — Marcel Jean, Jalons d`Arp, in «Les Lettres Nouvelles», n.º 35.
14 —Georges Ribemont~Dessaignes, ob cit., p. 539.
15 — A. Mezei e Marcel Jean, Sur Max Ernst, in «Les lettres nouvelles», n.º 14, contam, duma das principais exposições dadás em Colónia: «Baargeld exibia o "Fluidoskeptryk", aquário cheio de água vermelha onde estavam mergulhados um despertador, uma cabeleira de mulher e uma mão de madeira. ...A exposição foi inaugurada por uma rapariguinha de primeira comunhão. A rapariguinha recitou poemas de Jakob van Hoddis qualificados pela assistência de obscenos e, depois, fez em cacos o "Fluidoskeptryk" que espalhou o seu sangue falso aos pés dos espectadores indignados. 0 escândalo foi tal que a polícia mandou fechar a exposição».
16 — Georges Hugnet, L`esprit dada en Allemagne, «Cahiers d'Art», 1932.
17 — Henri Peyre, «Que es el clasicismo», Fondo de Cultura Económica, México, 1953, anota: «O mais inteligente e ao mesmo tempo o único excelente historiador da arte contemporânea (René Huyghe) assinalou engenhosa e justamente...... como o surrealismo não é, no fundo, mais do que a imposição da lógica francesa sobre o anárquico dadaísmo de origem estrangeira.».
18 — Huelsenbeck, Manifesto de 1949, citado por Raoul Hausmann.
19 — Rafael Benet, ob. cit.
G. N.
(In Tempo Presente, n.º 6, Outubro de 1959, págs. 20 a 29)
0 Comentários
Comments:
Enviar um comentário
Blog search directory