segunda-feira, julho 07, 2008
SALAZAR GRANDE E PEQUENO
(um artigo de Nuno Rogeiro, com a devida vénia ao Futuro Presente)
Haverá duas formas de encarar a experiência política do Estado Novo, entre Julho de 1932 e Setembro de 1968: integrá-la e compreendê-la no seu tempo, ou transplantá-la para o presente, e reinventá-la.
“Salazaristas” e “anti-salazaristas”, isto é, aqueles que pensam continuar a obra política do ex - Presidente do Conselho de Ministros, ou continuar a opor-se a ela, costumam optar pela segunda via.
Mas nunca a primeira se tornou mais importante do que hoje, quando parece ter-se feito alguma distância para olhar, com serenidade e olhos de ver, o que aconteceu a Portugal, depois da queda da Primeira República.
Este pequeno ensaio limita-se, como é óbvio, a relançar algumas pistas.
2: O QUE É SER GRANDE
Deve observar-se, em primeiro lugar, que a pergunta “foi Salazar um grande português?” nunca terá uma resposta universalmente válida.
Desde logo, porque não existe, codificada ou comungada por um grupo suficientemente vasto (na história, ou na mesma época), a definição de “grande português”, a não ser que se confunda com a de “Português notável”. Agigantado no seu tempo, Salazar foi um português notado, mas essa é uma observação banal.
Depois porque a pergunta envolve, mal ou bem, um julgamento político-moral, que divide, mais do que une.
Salazar devia ter encerrado a colónia penal do Tarrafal, evitando o regresso aos processos expeditos de alguns figurões da Primeira República? E seria isso uma prioridade? Devia ter “descolonizado” antes ou depois de 1945? Devia ter autorizado partidos, e restaurado os de 1911? Devia ter declarado o regime monárquico, quando da chegada, com honras de estado, dos restos mortais de D. Manuel II? Devia ter viajado mais, ou menos? E dentro, ou fora?
Devia ter-se casado? Apegou-se demasiado, ou de menos, ao poder? E a quê: à sua capacidade de transformação, ou aos seus benefícios?
Há, no julgamento, centenas de tópicos de inquirição, em diversos modelos e situações. Mas convém dizer que, se tratássemos de um mero juízo técnico, por exemplo em torno do reconhecido saneamento financeiro do país, entre 1932 e 1945, talvez se pudesse dizer, sem dificuldade, que Salazar foi um “grande português”.
Mas, como sabemos, não é um juízo técnico que se pretende, nem ele é possível.
Em último lugar, a pergunta perde-se, porque “grande português” corresponde a uma visão global, sobre-humana, cientista e impossível do passado. Em boa verdade, entendendo-se que o processo da independência nacional é um todo coerente, só se pode passar juízo, e estabelecer balanço e contas...no fim da história.
Não estamos ainda na sua antevéspera, salvo melhor opinião.
3: AS ÉPOCAS DE SALAZAR (I)
"Mais do que em “regime de Salazar” ou “Salazarismo”, há que falar em “épocas” do sistema político em causa.
O período de 28 de Maio de 1926 a 5 de Julho de 1932 é o do estabelecimento das bases e legitimidades.
É aqui que Salazar passa de tecnocrata a político, de “mero” reconstrutor das finanças públicas a teorizador das tarefas do Estado, de disciplinador orçamental e fiscal, a estratego da nacionalidade. O seu braço de ferro com Sinel de Cordes, em 1928, a propósito das condições dos primeiros empréstimos internacionais putativos, traça, antes da letra, uma linha de rumo de conduta do estado. Podemos hoje discutir as razões reais de recusa das condições impostas pelo ágio exterior, mas a justificação oficial foi sempre a de não-humilhação nacional, da manutenção do tecido social, da soberania operativa, e da capacidade de decisão económica.
Se fica ali logo traçada a estrutura básica de auto-determinação internacional, delimita-se o clima interno, político-institucional e “ideológico”, no discurso de 23 de Novembro de 1932. Eis que se declaram os partidos contrários ao estado revolucionário, e em que se dissuadem “direitas” e “esquerdas” de ensaiar a tomada do poder pela via das facções organizadas. É também nessa altura que Salazar pede a dissolução do Centro Católico, que o formara e onde militou. E não se pode esquecer que Salazar participou, activamente, na aventura de influenciar a junta militar no sentido “centrista”, longe da aliança pretoriana – proto-fascista ensaiada por Gomes da Costa.
De 1933 a 1945, o Estado Novo precisa de afirmar super-estruturas, e de ganhar um lugar no mundo. Em parte, por causa das guerras (de Espanha e Mundial), em parte por causa da pressão externa dos totalitarismos e das democracias.
Esta é a época da política de obras públicas, da propaganda mediática, da arte de estado, mas também da afinação jurídico-doutrinal. Começa esta, claro, com a Constituição Corporativa, e com uma série de elementos que, desagradando a gregos e troianos, afirmam o espaço próprio do novo regime.
O Estado Novo afirma-se subordinado à Moral, reconhece a Igreja e a história, mas abstém-se de restaurar a monarquia, e mantém o 5 de Outubro como feriado, mesmo se envergonhado. Isto é significativo, se tivermos em conta que o 28 de Maio se fez contra muito do espírito dessa efeméride, e que tinham decorrido apenas 23 anos sobre a revolução republicana.
Afirma-se antidemocrático e anti-liberal, mas rejeita o totalitarismo (1). Rejeita o pluralismo partidário, ilegaliza o PCP, mas fá-lo igualmente face ao nacional-sindicalismo de Rolão Preto, em 1934/35.
É também nesta altura que Salazar adapta as instituições do interregno, da Liga Patriótica “União Nacional” (criada em 1930, antes da sua chegada ao poder executivo máximo) à sucessora da Polícia Preventiva da Segurança do Estado (fundada pela Primeira República,
para lutar contra a subversão política e a contestação social).
É deste período o famoso comentário do Secretário de Estado norte-americano, Dean Acheson, sobre a sua visita a Salazar, em plena segunda guerra. Descreve o chefe de governo português como:
(...) um ditador – gestor, empregado e mantido pelo poder do exército, para dirigir o país em benefício das classes médias, de onde provinha a maioria dos oficiais (2).
Acheson escreve que Salazar está mais próximo do estadista de Platão do que das democracias, mas que a ausência de “força excessiva” no governo o separa dos totalitarismos. O chefe da diplomacia americana, insuspeito, foi membro do Partido Democrata toda a vida, e opôs-se, mais tarde, veementemente e com coragem pessoal, à caça às bruxas do senador McCarthy."
4: AS ÉPOCAS DE SALAZAR (II)
"Entre 1945 e 1961, os desafios são outros: a modernização económica, social e política, a modernização do estado e das suas estruturas, a modernização “ideológica”, a re-centragem do regime. Tudo isto, face às realidades do triunfo das democracias, da debilidade espanhola, da guerra fria, e também a consideração de um movimento contestatário interno mais organizado, e liberto do bode expiatório comunista, culminando na campanha de Humberto Delgado.
Pode perguntar-se, objectivamente, porque é que Salazar não protagonizou ele próprio a “abertura”, antecipando a Primavera Marcellista, porque é que não renovou em profundidade o pessoal dirigente, porque é que não usou o tema da neutralidade face à guerra, e da distância dos totalitarismos, para encontrar novos adeptos e uma nova lógica.
Para os que acham que isto teria sido possível, porque havia paz (e logo capacidade de manobra), as coisas tornaram-se especialmente delicadas, entre 1961 a 1968.
Tratou-se, neste período do ocaso salazarista, de manter uma política ultramarina entre a guerra e o desenvolvimento, entre a emergência e a continuidade, manobrando face a aliados reticentes, e inimigos numerosos.
O potencial para novas ideias existia, porém. Repare-se que, num discurso de 12 de Agosto de 1963, Salazar, então já com 75 anos, nega a necessidade de “dualidade territorial” entre metrópole e ultramar (sugerindo, em abstracto, a possibilidade uma capital em África), explica a necessidade de uma “igualdade jurídica de todas as etnias”, e “o multiracialismo nas leis e na vida”.
A influência de novas gerações, algumas vindas de áreas da oposição (os casos de Franco Nogueira e Adriano Moreira são os mais conhecidos), fazia-se sentir, e até um autor crítico, o politicólogo americano Paul Lewis, reconhecia uma evolução do regime no sentido da “tecnocracia” (3).
Mas era então demasiado tarde. Não para o regime, que continuou, mudado, sob Marcello Caetano, mas para o próprio Salazar, que acabava, politicamente, e que, dois anos depois, morria físicamente, ao mesmo tempo que Almada Negreiros. O mesmo Almada que dissera, um dia:
“as pessoas que eu admiro são aquelas que nunca acabam."
5: O HETERÓNIMO DE PESSOA
Como apontava certeiramente o belga Pol Vandromme (4), Salazar correspondia mais, sendo solteiro, à figura jurídica do “bom pai de família”, do que ao leão Mussoliniano, forçado a “viver perigosamente”. E, católico e crente (isto é, politizado e confesso), aproximar-se-ia mais do Cardeal Richelieu, do que de qualquer Rei ou Imperador.
Um Richelieu curioso, colocado no poder e protegido pelos mosqueteiros, mas cuja política começou a diferir da destes, quando os militares quiseram fazer política.
Conservador de outros tempos, de outro país, de outro mundo, tradicionalista e homem da terra, tirou no entanto o tapete aos monárquicos, em jubilosa esperança pela restauração da monarquia. Ele próprio militante católico, “subversivo”, da Primeira República, mostrou que detestava a violência tribal, e distanciou-se muito cedo de Rolão Preto e das suas milícias, mas também das fantasias da “Ordem Nova”, de Marcello Caetano, e dos “Fifis”, de António Ferro.
Foi esta atitude de grande ordenador do espaço, de meticuloso “director, e não administrador”, como referia a Acheson, de tirano do senso comum, de obcecado pela ordem, num país caricaturalmente desordenado, que alienou, desde logo, espíritos como o de Fernando Pessoa.
Mas Salazar, como já escrevi, é um dos seus heterónimos por assumir.
“Outro eu”, porquê?
Em que medida Salazar incarna algum elemento pessoano oculto, alguma camada não consciente, ou recalcada, algum desejo sublimado, ou uma mera coexistência de dois seres, diferentes, no mesmo corpo?
Não é certamente por causa da elegíaca e elegante “Mensagem”, patrocinada pelo Secretariado da Propaganda Nacional. Em muitos aspectos, a aventura Pessoana, quixotesca e sonhadora, chocava com o planeamento logístico do Salazar-Sancho Pança.
Não é por causa do “nacionalismo místico” de Pessoa. O de Salazar era ordenado, bem comportado e “não agressivo”.
Não é por causa do cosmopolitismo de Pessoa, o trânsfuga de Durban, o sonhador inglês, o correspondente do sinistro Aleister Crowley, o primeiro publicista português da Coca Cola (com o “Primeiro Estranha-se/Depois Entranha-se”, de 1928). Embora curioso e atento face à política internacional, Salazar usava apenas as palavras necessárias – e suficientes – para descrever um pensamento, e não para o ocultar, ou realçar.
Salazar foi o heterónimo de Pessoa, na precisa medida em que incarnou todos os elementos que o poeta incluiu no Interregno, como necessários e urgentes, para a salvação da pátria.
Onde Pessoa era o grande agitador, e o patrono do caos, Salazar era o grande organizador, e o padroeiro da ordem.
Poderíamos imaginar o que teria sucedido, se Pessoa tivesse vivido o Salazarismo, e não apenas o seu prelúdio. Acabaria como Rolão Preto...ou como António Ferro?
Claro que o “lugar exacto” de Pessoa e de Salazar, nos grandes concursos historiográficos, está em aberto, embora muitos já tenham expresso uma opinião.
Mas, como dizia Torga:
“Chegar à India ou Não
É um íntimo desígnio da vontade.
Os Fados a favor e a desfavor
São argumentos da Posteridade”.
(1) Uma das proclamações importantes de Salazar, visivelmente dirigida ao nacional-socialismo, e feita precocemente, em 1934, diz assim:
“(...) e todavia é preciso afastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou de raça por ele representada, na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, a que tinham de estar sujeitas todas as manifestações individuais e colectivas, e poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedera os regimes liberais, porque ao menos esse outro não se desligara do destino humano” (in “O Estado Novo português na evolução política europeia”, Lisboa, 26 de Maio de 1934).
Mais à frente, denuncia o paganismo residual destes regimes, e vaticina-lhes o fim, na revolução ou nas guerras de religião, “mais graves do que as antigas”.
(2) in Dean Acheson, Present at the Creation, Londres 1969, pág. 628.
(3) P. Lewis, “Salazar’s Ministerial Elite, 1932-1968”, in Journal of Politics, vol.40, pp. 622-647. Lewis estuda o problema da tensão entre lealdade e competência, nos regimes autocráticos, e lamenta que a “estreiteza doutrinal” da liderança tivesse alienado muitos jovens promissores de uma carreira na política superior, mas parece moderar o seu juízo face a alguns elementos paradoxais do Estado Novo.
(4) No clássico "L’Europe en Chemise", Pardes, 2002 (reedição)."
Haverá duas formas de encarar a experiência política do Estado Novo, entre Julho de 1932 e Setembro de 1968: integrá-la e compreendê-la no seu tempo, ou transplantá-la para o presente, e reinventá-la.
“Salazaristas” e “anti-salazaristas”, isto é, aqueles que pensam continuar a obra política do ex - Presidente do Conselho de Ministros, ou continuar a opor-se a ela, costumam optar pela segunda via.
Mas nunca a primeira se tornou mais importante do que hoje, quando parece ter-se feito alguma distância para olhar, com serenidade e olhos de ver, o que aconteceu a Portugal, depois da queda da Primeira República.
Este pequeno ensaio limita-se, como é óbvio, a relançar algumas pistas.
2: O QUE É SER GRANDE
Deve observar-se, em primeiro lugar, que a pergunta “foi Salazar um grande português?” nunca terá uma resposta universalmente válida.
Desde logo, porque não existe, codificada ou comungada por um grupo suficientemente vasto (na história, ou na mesma época), a definição de “grande português”, a não ser que se confunda com a de “Português notável”. Agigantado no seu tempo, Salazar foi um português notado, mas essa é uma observação banal.
Depois porque a pergunta envolve, mal ou bem, um julgamento político-moral, que divide, mais do que une.
Salazar devia ter encerrado a colónia penal do Tarrafal, evitando o regresso aos processos expeditos de alguns figurões da Primeira República? E seria isso uma prioridade? Devia ter “descolonizado” antes ou depois de 1945? Devia ter autorizado partidos, e restaurado os de 1911? Devia ter declarado o regime monárquico, quando da chegada, com honras de estado, dos restos mortais de D. Manuel II? Devia ter viajado mais, ou menos? E dentro, ou fora?
Devia ter-se casado? Apegou-se demasiado, ou de menos, ao poder? E a quê: à sua capacidade de transformação, ou aos seus benefícios?
Há, no julgamento, centenas de tópicos de inquirição, em diversos modelos e situações. Mas convém dizer que, se tratássemos de um mero juízo técnico, por exemplo em torno do reconhecido saneamento financeiro do país, entre 1932 e 1945, talvez se pudesse dizer, sem dificuldade, que Salazar foi um “grande português”.
Mas, como sabemos, não é um juízo técnico que se pretende, nem ele é possível.
Em último lugar, a pergunta perde-se, porque “grande português” corresponde a uma visão global, sobre-humana, cientista e impossível do passado. Em boa verdade, entendendo-se que o processo da independência nacional é um todo coerente, só se pode passar juízo, e estabelecer balanço e contas...no fim da história.
Não estamos ainda na sua antevéspera, salvo melhor opinião.
3: AS ÉPOCAS DE SALAZAR (I)
"Mais do que em “regime de Salazar” ou “Salazarismo”, há que falar em “épocas” do sistema político em causa.
O período de 28 de Maio de 1926 a 5 de Julho de 1932 é o do estabelecimento das bases e legitimidades.
É aqui que Salazar passa de tecnocrata a político, de “mero” reconstrutor das finanças públicas a teorizador das tarefas do Estado, de disciplinador orçamental e fiscal, a estratego da nacionalidade. O seu braço de ferro com Sinel de Cordes, em 1928, a propósito das condições dos primeiros empréstimos internacionais putativos, traça, antes da letra, uma linha de rumo de conduta do estado. Podemos hoje discutir as razões reais de recusa das condições impostas pelo ágio exterior, mas a justificação oficial foi sempre a de não-humilhação nacional, da manutenção do tecido social, da soberania operativa, e da capacidade de decisão económica.
Se fica ali logo traçada a estrutura básica de auto-determinação internacional, delimita-se o clima interno, político-institucional e “ideológico”, no discurso de 23 de Novembro de 1932. Eis que se declaram os partidos contrários ao estado revolucionário, e em que se dissuadem “direitas” e “esquerdas” de ensaiar a tomada do poder pela via das facções organizadas. É também nessa altura que Salazar pede a dissolução do Centro Católico, que o formara e onde militou. E não se pode esquecer que Salazar participou, activamente, na aventura de influenciar a junta militar no sentido “centrista”, longe da aliança pretoriana – proto-fascista ensaiada por Gomes da Costa.
De 1933 a 1945, o Estado Novo precisa de afirmar super-estruturas, e de ganhar um lugar no mundo. Em parte, por causa das guerras (de Espanha e Mundial), em parte por causa da pressão externa dos totalitarismos e das democracias.
Esta é a época da política de obras públicas, da propaganda mediática, da arte de estado, mas também da afinação jurídico-doutrinal. Começa esta, claro, com a Constituição Corporativa, e com uma série de elementos que, desagradando a gregos e troianos, afirmam o espaço próprio do novo regime.
O Estado Novo afirma-se subordinado à Moral, reconhece a Igreja e a história, mas abstém-se de restaurar a monarquia, e mantém o 5 de Outubro como feriado, mesmo se envergonhado. Isto é significativo, se tivermos em conta que o 28 de Maio se fez contra muito do espírito dessa efeméride, e que tinham decorrido apenas 23 anos sobre a revolução republicana.
Afirma-se antidemocrático e anti-liberal, mas rejeita o totalitarismo (1). Rejeita o pluralismo partidário, ilegaliza o PCP, mas fá-lo igualmente face ao nacional-sindicalismo de Rolão Preto, em 1934/35.
É também nesta altura que Salazar adapta as instituições do interregno, da Liga Patriótica “União Nacional” (criada em 1930, antes da sua chegada ao poder executivo máximo) à sucessora da Polícia Preventiva da Segurança do Estado (fundada pela Primeira República,
para lutar contra a subversão política e a contestação social).
É deste período o famoso comentário do Secretário de Estado norte-americano, Dean Acheson, sobre a sua visita a Salazar, em plena segunda guerra. Descreve o chefe de governo português como:
(...) um ditador – gestor, empregado e mantido pelo poder do exército, para dirigir o país em benefício das classes médias, de onde provinha a maioria dos oficiais (2).
Acheson escreve que Salazar está mais próximo do estadista de Platão do que das democracias, mas que a ausência de “força excessiva” no governo o separa dos totalitarismos. O chefe da diplomacia americana, insuspeito, foi membro do Partido Democrata toda a vida, e opôs-se, mais tarde, veementemente e com coragem pessoal, à caça às bruxas do senador McCarthy."
4: AS ÉPOCAS DE SALAZAR (II)
"Entre 1945 e 1961, os desafios são outros: a modernização económica, social e política, a modernização do estado e das suas estruturas, a modernização “ideológica”, a re-centragem do regime. Tudo isto, face às realidades do triunfo das democracias, da debilidade espanhola, da guerra fria, e também a consideração de um movimento contestatário interno mais organizado, e liberto do bode expiatório comunista, culminando na campanha de Humberto Delgado.
Pode perguntar-se, objectivamente, porque é que Salazar não protagonizou ele próprio a “abertura”, antecipando a Primavera Marcellista, porque é que não renovou em profundidade o pessoal dirigente, porque é que não usou o tema da neutralidade face à guerra, e da distância dos totalitarismos, para encontrar novos adeptos e uma nova lógica.
Para os que acham que isto teria sido possível, porque havia paz (e logo capacidade de manobra), as coisas tornaram-se especialmente delicadas, entre 1961 a 1968.
Tratou-se, neste período do ocaso salazarista, de manter uma política ultramarina entre a guerra e o desenvolvimento, entre a emergência e a continuidade, manobrando face a aliados reticentes, e inimigos numerosos.
O potencial para novas ideias existia, porém. Repare-se que, num discurso de 12 de Agosto de 1963, Salazar, então já com 75 anos, nega a necessidade de “dualidade territorial” entre metrópole e ultramar (sugerindo, em abstracto, a possibilidade uma capital em África), explica a necessidade de uma “igualdade jurídica de todas as etnias”, e “o multiracialismo nas leis e na vida”.
A influência de novas gerações, algumas vindas de áreas da oposição (os casos de Franco Nogueira e Adriano Moreira são os mais conhecidos), fazia-se sentir, e até um autor crítico, o politicólogo americano Paul Lewis, reconhecia uma evolução do regime no sentido da “tecnocracia” (3).
Mas era então demasiado tarde. Não para o regime, que continuou, mudado, sob Marcello Caetano, mas para o próprio Salazar, que acabava, politicamente, e que, dois anos depois, morria físicamente, ao mesmo tempo que Almada Negreiros. O mesmo Almada que dissera, um dia:
“as pessoas que eu admiro são aquelas que nunca acabam."
5: O HETERÓNIMO DE PESSOA
Como apontava certeiramente o belga Pol Vandromme (4), Salazar correspondia mais, sendo solteiro, à figura jurídica do “bom pai de família”, do que ao leão Mussoliniano, forçado a “viver perigosamente”. E, católico e crente (isto é, politizado e confesso), aproximar-se-ia mais do Cardeal Richelieu, do que de qualquer Rei ou Imperador.
Um Richelieu curioso, colocado no poder e protegido pelos mosqueteiros, mas cuja política começou a diferir da destes, quando os militares quiseram fazer política.
Conservador de outros tempos, de outro país, de outro mundo, tradicionalista e homem da terra, tirou no entanto o tapete aos monárquicos, em jubilosa esperança pela restauração da monarquia. Ele próprio militante católico, “subversivo”, da Primeira República, mostrou que detestava a violência tribal, e distanciou-se muito cedo de Rolão Preto e das suas milícias, mas também das fantasias da “Ordem Nova”, de Marcello Caetano, e dos “Fifis”, de António Ferro.
Foi esta atitude de grande ordenador do espaço, de meticuloso “director, e não administrador”, como referia a Acheson, de tirano do senso comum, de obcecado pela ordem, num país caricaturalmente desordenado, que alienou, desde logo, espíritos como o de Fernando Pessoa.
Mas Salazar, como já escrevi, é um dos seus heterónimos por assumir.
“Outro eu”, porquê?
Em que medida Salazar incarna algum elemento pessoano oculto, alguma camada não consciente, ou recalcada, algum desejo sublimado, ou uma mera coexistência de dois seres, diferentes, no mesmo corpo?
Não é certamente por causa da elegíaca e elegante “Mensagem”, patrocinada pelo Secretariado da Propaganda Nacional. Em muitos aspectos, a aventura Pessoana, quixotesca e sonhadora, chocava com o planeamento logístico do Salazar-Sancho Pança.
Não é por causa do “nacionalismo místico” de Pessoa. O de Salazar era ordenado, bem comportado e “não agressivo”.
Não é por causa do cosmopolitismo de Pessoa, o trânsfuga de Durban, o sonhador inglês, o correspondente do sinistro Aleister Crowley, o primeiro publicista português da Coca Cola (com o “Primeiro Estranha-se/Depois Entranha-se”, de 1928). Embora curioso e atento face à política internacional, Salazar usava apenas as palavras necessárias – e suficientes – para descrever um pensamento, e não para o ocultar, ou realçar.
Salazar foi o heterónimo de Pessoa, na precisa medida em que incarnou todos os elementos que o poeta incluiu no Interregno, como necessários e urgentes, para a salvação da pátria.
Onde Pessoa era o grande agitador, e o patrono do caos, Salazar era o grande organizador, e o padroeiro da ordem.
Poderíamos imaginar o que teria sucedido, se Pessoa tivesse vivido o Salazarismo, e não apenas o seu prelúdio. Acabaria como Rolão Preto...ou como António Ferro?
Claro que o “lugar exacto” de Pessoa e de Salazar, nos grandes concursos historiográficos, está em aberto, embora muitos já tenham expresso uma opinião.
Mas, como dizia Torga:
“Chegar à India ou Não
É um íntimo desígnio da vontade.
Os Fados a favor e a desfavor
São argumentos da Posteridade”.
(1) Uma das proclamações importantes de Salazar, visivelmente dirigida ao nacional-socialismo, e feita precocemente, em 1934, diz assim:
“(...) e todavia é preciso afastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou de raça por ele representada, na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, a que tinham de estar sujeitas todas as manifestações individuais e colectivas, e poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedera os regimes liberais, porque ao menos esse outro não se desligara do destino humano” (in “O Estado Novo português na evolução política europeia”, Lisboa, 26 de Maio de 1934).
Mais à frente, denuncia o paganismo residual destes regimes, e vaticina-lhes o fim, na revolução ou nas guerras de religião, “mais graves do que as antigas”.
(2) in Dean Acheson, Present at the Creation, Londres 1969, pág. 628.
(3) P. Lewis, “Salazar’s Ministerial Elite, 1932-1968”, in Journal of Politics, vol.40, pp. 622-647. Lewis estuda o problema da tensão entre lealdade e competência, nos regimes autocráticos, e lamenta que a “estreiteza doutrinal” da liderança tivesse alienado muitos jovens promissores de uma carreira na política superior, mas parece moderar o seu juízo face a alguns elementos paradoxais do Estado Novo.
(4) No clássico "L’Europe en Chemise", Pardes, 2002 (reedição)."
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