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quinta-feira, agosto 05, 2010

Evocação de Panait Istrati 

O destaque dado à recente edição portuguesa de Os Cardos do Baragan acabou por tornar-se uma boa oportunidade para evocar o autor, Panait Istrati.
Para isso nada melhor que reproduzir um artigo que Vintila Horia, o autor da “Introdução à Literatura do Século XX”, e farol seguro nessas matérias, escreveu sobre o seu conterrâneo Panait Istrati.
Pelo caminho acaba também por mencionar os casos literários do norueguês Knut Hamsun e de John dos Passos, o mais açoreano dos grandes escritores americanos, que Vintila tinha em grande conta, como é patente na citada “Introdução”.
Lembro com saudade o próprio Vintila, que esteve entre nós na época quente do pós-revolução e, mesmo em Madrid, onde vivia, nunca regateou a sua atenção, auxílio e colaboração a quem o procurava.
Aqui fica portanto a evocação do autor de "Os cardos do Baragan", ou de "Kira Kiralina".

A DUPLA MORTE DE PANAIT ISTRATI

Num dia de Janeiro de 1921, num jardim público de Nice, um fotógrafo ambulante golpeou a garganta, perante o público que se passeava ao sol medi­terrâneo. Salvou‑se, depois de dura e demorada luta com a morte, mas os médicos tiraram­‑no do hospital antes de se restabelecer, por uma enfer­meira haver encontrado num bolso do seu casaco uma carta dirigida ao jornal comunista “L'Humanité”, saudando a re­volução como o nascimento de um mundo novo e de uma nova esperança. O vagabundo voltou às suas deambulações, mas agora com uma nova razão para viver: tinha recebido uma carta do escritor Romain Rolland, que o incitava a aban­donar o género epistolar para se dedicar a escrever livros. E Panait Istrati, protegido e ajudado agora por um compatrio­ta de Paris, o sapateiro lonescu, escreve “Kira Kiralina”, a histó­ria de uma prostituta que, ao entregar‑se aos homens, cum­pre dessa forma o seu dever para com Deus.
O livro publicou‑se em 1924 e foi um dos maiores êxitos do século. O vagabundo e autodi­dacta Panait Istrati, nascido no porto romeno de Braila, em 1884, tornou‑se célebre e rico de um dia para o outro. Fartos da literatura falsa e rebuscada dos anos vinte, os leitores admiraram no novo escritor o poder da sua inspiração e o colorido do seu mundo danu­biano, semi‑oriental, povoado de estranhas personagens, pecadores e santos ao mesmo tempo, movidos por paixões às vezes primitivas e às vezes sublimes.
Três anos depois (entretanto havia publicado “O Tio Ângelo” e “A Vida de Adriano Zograti”) Istrati é convidado a visitar Moscovo, onde conhecerá a grande desilusão. Em primeiro lugar ‑ conforme o conta Nikos Kazantsakis no seu livro de memórias intitulado “Do Monte Sinai à Ilha de Vénus” (Paris, 1958 ) - por encontrar no ídolo da sua juventude, Máximo Gorki, uma espécie de funcio­nário do novo estado soviético, frio e indiferente; em segundo lugar, por encontrar uma Rússia em nada parecida à dos seus sonhos e ilusões. Percor­reu‑a de uma ponta a outra e, de regresso a Paris, escreveu “A Rússia a Nu” (1929). que foi outro êxito e o começo de no­vos sofrimentos. Caiu‑lhe em cima toda a Imprensa de esquerda, os seus amigos aban­donaram‑no, a perseguição contra ele tomou formas inaudi­tas de crueldade e de cobardia. Era a época da íntima e gozosa colaboração entre os grandes intelectuais europeus e o co­munismo. Louis Aragon podia ser então, ao mesmo tempo, surrealista e admirador do rea­lismo socialista, homem livre e membro do partido. Ninguém queria saber dos campos de concentração, dos assassínios em massa, da fome ou das façanhas quotidianas da poli­cia política. Panait Istrait foi um dos primeiros escritores capa­zes de dizer a verdade sobre o monstro que acabava de nascer, semelhante ao engendrado pela doutor Frankenstein, mas que os ocidentais confun­diam com Apolo e Adonis.
Doente de tuberculose, abandonado, pobre, autor já de muitos livros, Istrati decidiu vol­tar ao seu país. Regressa pois à Roménia, onde dedicará os seus últimos anos de vida a colaborar num semanário da extrema‑direita. Em 1935 morre num hospital de Bucareste, rodeado de jovens amigos e colaboradores que o acompa­nharam ao cemitério, homem puro, que se havia enganado muito, mas que também havia amado muito, semelhante às suas personagens e, sobretudo, àquele “Adriano Zograti”, que é o seu “alter ego”.
A sua vida e a sua obra não deixam de ser modelares neste momento, quando o desengano começa a corroer a boa consciência dos intelectuais ociden­tais, testemunhas oculares do processo comunista e da sua evolução, mas cegos, todavia, até hoje, perante aquela tremenda injustiça. lstrati deu‑se conta dela logo no seu primeiro en­contro com a Rússia. Não possuía muita cultura, e, tal como o seu contemporâneo Knut Hamsun ‑ ex‑comunista arrependido, transformado em inimigo visceral do sistema soviético igualmente depois da sua primeira visita à Rússia ‑também o autor de “Kira Kyra­lina” nunca soube mentir.
Defensor do homem numa época em que se fala dos direi­tos humanos, mas já ninguém os sabe defender a não ser na tribuna dos congressos e nas reuniões de juristas, enquanto os governos os ignoram na maior parte da geografia uni­versal, Istrati descobriu aos seus leitores o mundo do homem vencido, humilhado e agredido pelos poderosos, do homem fiei à sua humanidade.
As suas personagens são gente humilde, enferma de pai­xões, mas disposta sempre a estender a mão e a compreen­der. A sua poesia em prosa é, por vezes, comovedora. A cena de “Os Cardos de Baragan” (Novelas e Contos‑ Madrid, 1973) quando o menino foge de casa e corre ao longo da planura do Baragan, juntamente com os cardos que o vento leva, é de uma grande beleza simbólica: pois tem a latejar em si o eterno mito da aventura humana, a correlação neo‑romântica que o leitor logo estabelece entre o puro furor da natureza e o impulso vital que leva a criança a participar naquela tormenta.
O caso Istrati é sumamente interessante e instrutivo, do ponto de vista político e do lite­rário. Ele não foi o único vaga­bundo autodidacta capaz de dar uma tal volta. O autor de “Fome”, Prémio Nobel, ator­mentado por passado muito parecido ao de Istrati, é igual­mente característico. Knut Hamsun foi defensor do marxismo na sua juventude e passou para o outro lado quando tomou contacto com a encarnação visível dos seus so­nhos. No seu ódio, chegou a aceitar os nazis durante a segunda guerra mundial, para depois acabar por ser perse­guido pelos seus, humilhado e torturado psiquicamente, tal como em novo havia sido tortu­rado pela fome. Mas John dos Passos terá sido, porventura, o esquerdista mais violentamente direitista da história das Letras deste século. Socialista ao longo das suas novelas mais conhecidas, tornou‑se fanati­camente da Direita depois dos sessenta anos e morreu isolado, incompreendido e boicotado, sobretudo pelos ambientes uni­versitários dominados então (Dos Passos morreu em 1970) pelo clã dos marxistas de salão. Todavia, ninguém, nenhum escritor do nosso século, conheceu tanto a dor, o desengano, o desejo de abandonar a vida, o êxito e a perseguição como o romeno uni­versal que foi Panait Istrati. Ter morrido duas vezes parece pouco para um homem assim. Significa, no fundo, não morrer nunca. Que é, afinal, o destino dos grandes forjadores de mitos, aliados dos homens.

VINTILA HORIA

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