sexta-feira, agosto 04, 2006
O MARCELISMO
(Um artigo de Manuel Maria Múrias, publicado originalmente na "Resistência", de Julho de 1974)
A decomposição do regime derrubado pelo 25 de Abril começou evidentemente, muito antes desta data. Prenunciava-se nos últimos quinze anos de governo de Salazar; precipitou-se logo que Marcello Caetano assumiu o poder.
Na verdade, como se provou, o regime vivia quase só da personalidade e do génio de Salazar. O êxito da sua política financeira em 1928, a política externa dos anos trágicos da II Grande Guerra que salvaguardou a neutralidade; a firmeza impassível da resistência africana; a habilidade com que, durante quarenta anos, congraçou e pôs a colaborar as diversas forças políticas que apoiavam o Estado Corporativo — granjearam a Salazar um prestígio e uma força política excepcionais neste país sentimentalmente anarquista que, durante quase um século, incapaz de se autodisciplinar, vivera em situação endémica da guerra civil. A determinação, a frieza, a visão histórica com que Salazar olhava e resolvia os problemas, impuseram-no à consciência da Nação; a sua proverbial honestidade, a austeridade e a isenção faziam-no respeitado, até pelos adversários. Em função do interesse nacional sacrificava amigos e adversários; visceralmente devotado à Pátria, por ela se consumiu até ao último sopro.
Marcello Caetano, esse, foi sempre um hesitante. Humanamente é a antítese do seu antecessor: — jamais esqueceu um agravo pessoal; sacrificou tudo para chegar onde chegou e baixar onde baixou. Agiu precipitadamente na circunstância e esqueceu-se dos princípios. Monárquico integralista desde os bancos do liceu, dirigiu nos últimos anos vinte, uma das violentas e pitorescas revistas reaccionárias daqueles tempos heróicos — a «Ordem Nova» — folhetozinho que, no frontispício, em agressivo normando, se confessava escandalosamente antiliberal, antidemocrática, anticapitalista, anticomunista, antitotalitária, antimaçónica, etc., et., etc.
Professor universitário, era geralmente considerado pelos discípulos um excelente pedagogo e um cientista de mérito. Administrativista, é responsável pelo ainda vigente Código Administrativo e pelo Estatuto do Funcionário Público — dois textos que, ao longo das últimas décadas, aniquilaram quase todas as nossas antigas franquias regionais completando a obra destrutiva de Mouzinho da Silveira e ajudando, muito gravemente, à edificação do Estado centralizado e burocrático em que se degradou o sonhado Estado Corporativo, descentralizado e desburocratizado, autogestionado e organicamente electivo, que, mais ou menos influenciado pelo ideário integralista, mais ou menos catolicizante, a Constituição de 1933, embora de raiz democrática, intentara institucionalizar.
Como administrativista e estadista Marcello Caetano renegou o seu incipiente maurrasianismo. Como político, pouco a pouco, foi-se deixando enlear pela ambição do poder, pela ânsia de vir a desempenhar um papel histórico — pela glória de mandar, pela vã cobiça dessa vaidade que se chama fama.
Detestava Salazar. As centenas de cartas que, pela vida fora, principalmente depois de 1945, escreveu à maioria dos políticos portugueses, constituirão, reunidas, um dos mais extraordinários acervos desse anti-salazarismo frustrado que a certa altura se apossou de poucos mas importantes homens do antigo regime. Acompanhei muito de perto o fenómeno — e um dia hei-de atestá-lo documentalmente — até porque a sua análise tem a maior relevância para o bom entendimento histórico da crise larvada que, agravando-se através dos anos, desembocou no 25 de Abril. Falta-nos agora perspectiva temporal para o poder valorar cientificamente. Algumas achegas, porém, se devem dar — e essas têm se ser críticas, e ainda muito subjectivas.
Em 1945, forçado a abandonar a pasta das Colónias que sobraçara durante cerca de dezoito meses, Marcello Caetano ocupou a Presidência da Comissão Executiva da União Nacional. Aí, preparou-se, não sem uma certa impaciência, para suceder a Salazar. Somando uns poucos de discípulos a certa geração da Mocidade Portuguesa que ele disciplinara como Comissário Nacional da Organização, constitui uma pequena clique de jovens que a partir de então, aderindo espectacularmente à União Nacional, passou a formar, dentro do regime, um grupo de pressão, o marcelismo, que, colocado em muitas posições estratégicas, principalmente na informação, foi abrindo caminho para o Palácio de S. Bento, rodeando, primeiro, o Presidente Craveiro Lopes, cercando, depois, o Presidente Thomaz, de modo a ficar-se, no momento exacto, com a aparência pública e política de que, sem Marcello Caetano, o regime se afundaria, e que os marcelistas, na panóplia das forças dominantes, constituiam a força mais poderosa, a mais esclarecida, a mais dinâmica, a mais moderna e (coisa espantosa para o antigo director de «Ordem Nova») a mais liberalizante.
A primeira oportunidade que os marcelistas julgaram ter para alçar o seu chefe à Presidência do Conselho de Ministros, surgiu em 1949 quando, terminando o mandato do Marechal Carmona, a Comissão Central da União Nacional queria escolher o seu candidato à Presidência da República. O Marechal Carmona tinha então 79 anos. Pelas oposições, apoiado pelo Partido Comunista, candidatava-se o General Norton de Matos, prestigiosa figura da I República, antigo Ministro de Guerra e Alto-Comissário em Angola. Aos marcelistas pareceu possível não reeleger o velho Marechal, candidatar Salazar — e conduzir Marcello Caetano à Chefia do Governo.
Preparou-se uma pequena conspiração: — no dia em que Salazar devia ir até ao Largo da Misericórdia presidir à reunião magna da Comissão Central da União Nacional, convocada para escolher o candidato, previamente convocado pelos amigos de Marcello, juntou-se na Palmatória de S. Roque algum pouco povo que em uníssono gritava compassadamente:
— Salazar à Presidência da República! Salazar à Presidência da República!
Salazar, chegando a uma janela, apanhado na armadilha, recuou precipitadamente, coradíssimo. Dois dias depois anunciava-se a candidatura de Carmona — e alguns meses após, enrodilhado na defesa do seu cunhado Henrique de Barros, compulsivamente demitido de professor universitário pelo Ministro da Educação Nacional Fernando Pires de Lima, Marcello Caetano regressava à privada, amuado, enfurecido — possesso de anti-salazarismo.
O Marechal Carmona morreu em 1951, quando na Assembleia Nacional se discutia uma reforma constitucional periódica. Houve quem pensasse em restaurar a monarquia, voltou a pôr-se a hipótese da candidatura de Salazar; acabou por se firmar apresentando-se ao sufrágio, como candidato governamental, o general de aeronáutica Craveiro Lopes, um dos poucos Torre-Espada de então, e, pelas oposições, patrocinado pelo Capitão Henrique Galvão, trânsfuga decepcionado do estadonovismo, o Almirante Quintão Meirelles, antigo Ministro da Ditadura Militar, personalidade ideologicamente indefinida, muito difícil de rotular como político. O marcelismo não interveio no pleito eleitoral, mas sabia-se que todas as suas silenciosas simpatias iam para os oposicionistas, cisão menor dentro do regime mas que, apesar da insignificância, denotava certo estado de espírito.
Firmavam-se os marcelistas defendendo o futuro do Estado Corporativo. Salazar estava velho, — diziam — é preciso assegurar-lhe um sucessor. Salazar tinha sessenta e dois anos, parecia em plena posse das suas qualidades políticas e senhor de uma saúde de ferro. De vez em quando surgiam-lhe inflamações nos olhos e afecções na garganta; mas geralmente mantinha-se regular em S. Bento, viver modesto, um horário e uma capacidade de trabalho extenuantes para qualquer pessoa. As hipóteses sucessórias de Marcello Caetano adiavam-se indefinidamente; a sua acção, metódica e organizada, circunscrevia-se à cátedra, a uma cara advocacia de pendor plutocrático, à administração duma companhia de seguros — à cultivação semanal dos amigos que com ele se reuniam muitas vezes.
O General Craveiro Lopes era considerado um homem sério. Indicado para a Presidência da República pelo Ministro da Guerra, Coronel Santos Costa, breve se desentendeu com este. Imediatamente os marcelistas aproveitaram a sota e embarcaram com bom vento. Recolocando-se em boas situações, pouco a pouco dominaram alguns sectores, comandados por aqueles que, nos anos 40, tinham aderido à União Nacional. O chefe, entretanto, fora eleito Presidente da Câmara Corporativa. Exercia influência, colocava adeptos, delineava estratégias, aproximava-se mais e mais de Belém, contactando intimamente com o Presidente da República.
Em 1955, Craveiro Lopes insiste com Salazar para nomear Marcello Caetano Ministro da Presidência. Uma nova Comissão Executiva da União Nacional, constituída na sua melhor parte por jovens marcelistas, vai dominar o confronto eleitoral de 1957 que se avizinhava. Distribuíra-se o jogo: alisaram-se dos postos vários salazaristas intolerantes, começara uma luta pelo poder, que se julgava o último round.
Surgiram os primeiros desentendimentos visíveis entre Craveiro Lopes e Salazar. A máquina política do regime afrouxava de andamento, a própria máquina administrativa começava a gripar. A estrela montante de Marcello Caetano brilhava no futuro, as oposições democráticas, muito apoiadas nas diversas internacionais, mostravam-se aguerridas, melhor organizadas, muito mais conscientes da sua própria força e das fraquezas do regime.
Quando em 1958 se tratou de escolher o candidato governamental às eleições presidenciais, as fendas no edifício eram notórias. Um antigo Comandante Distrital da Legião Portuguesa, antigo combatente da Guerra Civil de Espanha, antigo Adido Militar em Washington, oficial de aeronáutica como Craveiro Lopes, seu amigo e camarada, o General Humberto Delgado, candidatava-se pelas oposições, de princípio sem o apoio dos comunistas. Pelo lado governamental era apresentado o Almirante Américo Thomaz, Ministro da Marinha.
Para a oposição democrática tratava-se de reeditar a experiência Quintão Meirelles com outros meios, muito mais força, grande violência, o cavalo de Tróia instalado na praça inimiga e nos ministérios fundamentalmente políticos.
Um dia se fará a história da candidatura de Delgado. Pode, todavia, verificar-se já que, comandada a informação e a propaganda pelo marcelismo, o marcelismo se mostrou táctica e estrategicamente incapaz de obstar ao desenvolvimento tempestuoso da candidatura oposicionista. À agressividade, à indiscutível valentia do General Humberto Delgado, contrapunham-se as hesitações típicas do carácter de Marcello Caetano, o oportunismo, pequenos e descrentes movimentos de defesa, autênticos actos de sabotagem. Chegou-se ao ponto de, pela Televisão recém-criada, não se ter transmitido em directo um discurso de Salazar; chegou-se ao ponto de a Polícia desistir de manter a ordem, deixando-se substituir primeiro pela G.N.R. e depois pelo Exército. Com tanques nas ruas, cargas de cavalaria e uma repressão violenta, conseguiu-se recompor o quadrado; o Estado Novo, contudo, estava ferido de morte, sustentado apenas pela personalidade e pelo prestígio de Salazar, os salazaristas quase convencidos que o seu chefe não morria, espécie estranha de ideologia, aparentada com o espiritismo, que não segurava o presente, nem resguardava o futuro.
Américo Thomaz foi eleito. Marcello saíu do governo, deixando instalada na infra-estrutura do poder muita gente sua — o Estado minado, Moreira Baptista, Ramiro Valadão e Henrique Tenreiro, cortesãos do Palácio de Belém, manobras na sombra, a corrosão a apodrecer a máquina. Salazar envelhecia. A guerra de África, deflagrada em 1961, limitava-o à política externa. Os marcelistas já não jogavam na sua destituição em vida; apostavam no enterro. Quando Salazar caíu da cadeira, o governo caíu-lhes nas mãos. Venciam. Tarde e a más-horas; mas suficientemente a tempo para se poderem constituir em comissão liquidatária, desfazendo o que restava da política do Estado Novo.
A experiência Marcello Caetano inicia-se sob o signo do anti-salazarismo. Logo nos primeiros dias da sua governação os jornais se desbocaram em críticas a Salazar e, na televisão, onde em Março, contra a opinião do próprio Marcello, se colocava Ramiro Valadão, a figura e o nome do antigo Presidente do Conselho eram cuidadosamente esquecidos, não fosse o velho recuperar do acidente cerebral e reinstalar-se no palacete da Rua da Imprensa. A um jornalista estrangeiro, dizia em 1969 certo membro do governo que, desde há longos anos, muito anteriores à demissão de Salazar, era Marcello Caetano quem governava através dos seus acólitos, instalados nos lugares-chaves.
O anti-salazarismo sensível e latente da atmosfera política, dividiu quase imediatamente as gentes do regime. A abertura liberalizante da nova Comissão Executiva da União Nacional, presidida pelo Dr. José Guilherme de Melo e Castro, antigo Subsecretário do Estado de Assistência Social de Salazar, permitiu criar uma pequena seita neocapitalista e social plutocrática na Assembleia Nacional; escorada na influência de dois filhos de Marcello Caetano e de dois ou três membros do governo, fundava-se a SEDES; o «Expresso» saía como órgão da oposição tecnocrática, tendo como redactor político um filho do Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, Ministro das Corporações, e via a censura amenizar-se graças a tal ligação. A chamada Direita tinha as maiores dificuldades em se mover e em se organizar, a maior parte dos seus importantes personagens ligados à alta-finança, epicuristas agradáveis que só não queriam ter maçadas.
Acontecia, porém, que o regime politicamente se estruturava na Direita. Ante um governo de tendências liberalizantes, as massas de apoio imobilizaram-se: organizaram-se grandes manifestações espontâneas, é certo; todavia a classe política mantinha-se desconfiada, não deixando ir por diante o processo esquerdizante. O próprio Marcello Caetano, autoritaríssimo, não se dispunha às reformas de fundo reclamadas por todos; hesitante, como sempre, deixava em meio a maioria dos projectos, mudava os nomes às instituições, não lhes mudando a essência, cada vez mais embaraçado pelos grandes interesses plutocráticos e especulativos recém-nascidos, por uma política económica e financeira onde, nitidamente, se desenhava a sombra sinistra do nepotismo e da corrupção. Algumas das maiores fortunas portuguesas fizeram-se nos últimos cinco anos: — a esquerda e a direita revoltavam-se contra os escândalos semi-políticos que ressaltavam da maioria das acções de fomento.
A especulação bolsista tomou aspectos desesperados. Manobrada por meia dúzia de meneurs, a alta fictícia do papel desviou as pequenas poupanças dos investimentos imediatamente reprodutivos. A massa monetária foi-se concentrando inevitavelmente nos grupos mais poderosos que, mesmo sem conscientemente o desejarem, se viam arrastados para um crescimento redundante que os engrandecia desmesuradamente, tornando-os menos eficientes e úteis, tornando-os anti-sociais. A inflação corria a galope.
Houve momentos em que por pura inépcia dos serviços se verificaram graves faltas no abastecimento público, em que a taxa de inflação subiu catastroficamente, em que o público começou a sentir-se concretamente lesado. Caminhava-se com passo seguro para uma situação perigosíssima a que a política salarial demagógica não conseguia pôr termo, estado de descontentamento larvado que atingia, de alto a baixo, toda a escala social. Marcello Caetano virava as costas à Nação — e nem as suas preocupadas Conversas em Família acalmavam os ânimos exaltados.
Como se isto não bastasse, no Ministério de Educação Nacional o Prof. Veiga Simão saltitava loucamente ao som da mais franca demagogia. As lutas da grande imprensa generosamente subsidiada insensavam-no com constância pertinaz: — fechadas muitas escolas por não ser possível manter a disciplina, abriam-nas em papel selado centenas de muitas outras, sem que houvesse professores para as guarnecerem, sem que as estruturas didácticas e pedagógicas estivessem preparadas para o monstruoso esforço. Milhões de contos eram lançados assim para o mercado em pura perda, não se calando nem os discentes, nem os docentes, esquerda e direita unidas para acusarem o Ministro de demagogia pura.
Mais: — com as Forças Armadas batendo-se heroicamente em África, o Ministro Sá Viana Rebelo conduzia uma política divisionista e pouco realista, sacrificando os quadros, satisfazendo uns para descontentar outros, não concedendo às Forças Armadas aquele mínimo de condições logísticas e frontais necessário para a condução da guerra, já agora desapoiada diplomaticamente por um Ministro dos Negócios Estrangeiros inexperiente e divertido.
Quando apareceram os primeiros manifestos do Movimento das Forças Armadas, as pessoas conscientes sentiram que o fim se aproximava. O marcelismo colhendo os frutos do seu hesitantismo, do oportunismo, da sua fraqueza congénita, dissolvia o Estado Novo. Só Marcello Caetano e Afonso Marchueta impávidos, insensíveis à tempestade, um discursando semana após semana, o outro com algumas das mais notáveis peças da oratória lusíada, recebendo sociedades recreativas e medalhas comemorativas.
O regime desfazia-se no desprezo e na irrisão. Iniciado pelas Forças Armadas num 28 de Maio para findar com a inépcia, a corrupção e a anarquia dos sucessivos governos da I República, era liquidado pelas Forças Armadas num 25 de Abril para acabar com o mesmo estado de coisas, exageradíssimo pelo gigantismo estatal e pela multiplicação dos interesses que, quarenta anos de estabilidade, tinham permitido criar, com muitos erros e injustiças, mas com extraordinárias virtudes.
O Estado Novo suicidou-se.
A decomposição do regime derrubado pelo 25 de Abril começou evidentemente, muito antes desta data. Prenunciava-se nos últimos quinze anos de governo de Salazar; precipitou-se logo que Marcello Caetano assumiu o poder.
Na verdade, como se provou, o regime vivia quase só da personalidade e do génio de Salazar. O êxito da sua política financeira em 1928, a política externa dos anos trágicos da II Grande Guerra que salvaguardou a neutralidade; a firmeza impassível da resistência africana; a habilidade com que, durante quarenta anos, congraçou e pôs a colaborar as diversas forças políticas que apoiavam o Estado Corporativo — granjearam a Salazar um prestígio e uma força política excepcionais neste país sentimentalmente anarquista que, durante quase um século, incapaz de se autodisciplinar, vivera em situação endémica da guerra civil. A determinação, a frieza, a visão histórica com que Salazar olhava e resolvia os problemas, impuseram-no à consciência da Nação; a sua proverbial honestidade, a austeridade e a isenção faziam-no respeitado, até pelos adversários. Em função do interesse nacional sacrificava amigos e adversários; visceralmente devotado à Pátria, por ela se consumiu até ao último sopro.
Marcello Caetano, esse, foi sempre um hesitante. Humanamente é a antítese do seu antecessor: — jamais esqueceu um agravo pessoal; sacrificou tudo para chegar onde chegou e baixar onde baixou. Agiu precipitadamente na circunstância e esqueceu-se dos princípios. Monárquico integralista desde os bancos do liceu, dirigiu nos últimos anos vinte, uma das violentas e pitorescas revistas reaccionárias daqueles tempos heróicos — a «Ordem Nova» — folhetozinho que, no frontispício, em agressivo normando, se confessava escandalosamente antiliberal, antidemocrática, anticapitalista, anticomunista, antitotalitária, antimaçónica, etc., et., etc.
Professor universitário, era geralmente considerado pelos discípulos um excelente pedagogo e um cientista de mérito. Administrativista, é responsável pelo ainda vigente Código Administrativo e pelo Estatuto do Funcionário Público — dois textos que, ao longo das últimas décadas, aniquilaram quase todas as nossas antigas franquias regionais completando a obra destrutiva de Mouzinho da Silveira e ajudando, muito gravemente, à edificação do Estado centralizado e burocrático em que se degradou o sonhado Estado Corporativo, descentralizado e desburocratizado, autogestionado e organicamente electivo, que, mais ou menos influenciado pelo ideário integralista, mais ou menos catolicizante, a Constituição de 1933, embora de raiz democrática, intentara institucionalizar.
Como administrativista e estadista Marcello Caetano renegou o seu incipiente maurrasianismo. Como político, pouco a pouco, foi-se deixando enlear pela ambição do poder, pela ânsia de vir a desempenhar um papel histórico — pela glória de mandar, pela vã cobiça dessa vaidade que se chama fama.
Detestava Salazar. As centenas de cartas que, pela vida fora, principalmente depois de 1945, escreveu à maioria dos políticos portugueses, constituirão, reunidas, um dos mais extraordinários acervos desse anti-salazarismo frustrado que a certa altura se apossou de poucos mas importantes homens do antigo regime. Acompanhei muito de perto o fenómeno — e um dia hei-de atestá-lo documentalmente — até porque a sua análise tem a maior relevância para o bom entendimento histórico da crise larvada que, agravando-se através dos anos, desembocou no 25 de Abril. Falta-nos agora perspectiva temporal para o poder valorar cientificamente. Algumas achegas, porém, se devem dar — e essas têm se ser críticas, e ainda muito subjectivas.
Em 1945, forçado a abandonar a pasta das Colónias que sobraçara durante cerca de dezoito meses, Marcello Caetano ocupou a Presidência da Comissão Executiva da União Nacional. Aí, preparou-se, não sem uma certa impaciência, para suceder a Salazar. Somando uns poucos de discípulos a certa geração da Mocidade Portuguesa que ele disciplinara como Comissário Nacional da Organização, constitui uma pequena clique de jovens que a partir de então, aderindo espectacularmente à União Nacional, passou a formar, dentro do regime, um grupo de pressão, o marcelismo, que, colocado em muitas posições estratégicas, principalmente na informação, foi abrindo caminho para o Palácio de S. Bento, rodeando, primeiro, o Presidente Craveiro Lopes, cercando, depois, o Presidente Thomaz, de modo a ficar-se, no momento exacto, com a aparência pública e política de que, sem Marcello Caetano, o regime se afundaria, e que os marcelistas, na panóplia das forças dominantes, constituiam a força mais poderosa, a mais esclarecida, a mais dinâmica, a mais moderna e (coisa espantosa para o antigo director de «Ordem Nova») a mais liberalizante.
A primeira oportunidade que os marcelistas julgaram ter para alçar o seu chefe à Presidência do Conselho de Ministros, surgiu em 1949 quando, terminando o mandato do Marechal Carmona, a Comissão Central da União Nacional queria escolher o seu candidato à Presidência da República. O Marechal Carmona tinha então 79 anos. Pelas oposições, apoiado pelo Partido Comunista, candidatava-se o General Norton de Matos, prestigiosa figura da I República, antigo Ministro de Guerra e Alto-Comissário em Angola. Aos marcelistas pareceu possível não reeleger o velho Marechal, candidatar Salazar — e conduzir Marcello Caetano à Chefia do Governo.
Preparou-se uma pequena conspiração: — no dia em que Salazar devia ir até ao Largo da Misericórdia presidir à reunião magna da Comissão Central da União Nacional, convocada para escolher o candidato, previamente convocado pelos amigos de Marcello, juntou-se na Palmatória de S. Roque algum pouco povo que em uníssono gritava compassadamente:
— Salazar à Presidência da República! Salazar à Presidência da República!
Salazar, chegando a uma janela, apanhado na armadilha, recuou precipitadamente, coradíssimo. Dois dias depois anunciava-se a candidatura de Carmona — e alguns meses após, enrodilhado na defesa do seu cunhado Henrique de Barros, compulsivamente demitido de professor universitário pelo Ministro da Educação Nacional Fernando Pires de Lima, Marcello Caetano regressava à privada, amuado, enfurecido — possesso de anti-salazarismo.
O Marechal Carmona morreu em 1951, quando na Assembleia Nacional se discutia uma reforma constitucional periódica. Houve quem pensasse em restaurar a monarquia, voltou a pôr-se a hipótese da candidatura de Salazar; acabou por se firmar apresentando-se ao sufrágio, como candidato governamental, o general de aeronáutica Craveiro Lopes, um dos poucos Torre-Espada de então, e, pelas oposições, patrocinado pelo Capitão Henrique Galvão, trânsfuga decepcionado do estadonovismo, o Almirante Quintão Meirelles, antigo Ministro da Ditadura Militar, personalidade ideologicamente indefinida, muito difícil de rotular como político. O marcelismo não interveio no pleito eleitoral, mas sabia-se que todas as suas silenciosas simpatias iam para os oposicionistas, cisão menor dentro do regime mas que, apesar da insignificância, denotava certo estado de espírito.
Firmavam-se os marcelistas defendendo o futuro do Estado Corporativo. Salazar estava velho, — diziam — é preciso assegurar-lhe um sucessor. Salazar tinha sessenta e dois anos, parecia em plena posse das suas qualidades políticas e senhor de uma saúde de ferro. De vez em quando surgiam-lhe inflamações nos olhos e afecções na garganta; mas geralmente mantinha-se regular em S. Bento, viver modesto, um horário e uma capacidade de trabalho extenuantes para qualquer pessoa. As hipóteses sucessórias de Marcello Caetano adiavam-se indefinidamente; a sua acção, metódica e organizada, circunscrevia-se à cátedra, a uma cara advocacia de pendor plutocrático, à administração duma companhia de seguros — à cultivação semanal dos amigos que com ele se reuniam muitas vezes.
O General Craveiro Lopes era considerado um homem sério. Indicado para a Presidência da República pelo Ministro da Guerra, Coronel Santos Costa, breve se desentendeu com este. Imediatamente os marcelistas aproveitaram a sota e embarcaram com bom vento. Recolocando-se em boas situações, pouco a pouco dominaram alguns sectores, comandados por aqueles que, nos anos 40, tinham aderido à União Nacional. O chefe, entretanto, fora eleito Presidente da Câmara Corporativa. Exercia influência, colocava adeptos, delineava estratégias, aproximava-se mais e mais de Belém, contactando intimamente com o Presidente da República.
Em 1955, Craveiro Lopes insiste com Salazar para nomear Marcello Caetano Ministro da Presidência. Uma nova Comissão Executiva da União Nacional, constituída na sua melhor parte por jovens marcelistas, vai dominar o confronto eleitoral de 1957 que se avizinhava. Distribuíra-se o jogo: alisaram-se dos postos vários salazaristas intolerantes, começara uma luta pelo poder, que se julgava o último round.
Surgiram os primeiros desentendimentos visíveis entre Craveiro Lopes e Salazar. A máquina política do regime afrouxava de andamento, a própria máquina administrativa começava a gripar. A estrela montante de Marcello Caetano brilhava no futuro, as oposições democráticas, muito apoiadas nas diversas internacionais, mostravam-se aguerridas, melhor organizadas, muito mais conscientes da sua própria força e das fraquezas do regime.
Quando em 1958 se tratou de escolher o candidato governamental às eleições presidenciais, as fendas no edifício eram notórias. Um antigo Comandante Distrital da Legião Portuguesa, antigo combatente da Guerra Civil de Espanha, antigo Adido Militar em Washington, oficial de aeronáutica como Craveiro Lopes, seu amigo e camarada, o General Humberto Delgado, candidatava-se pelas oposições, de princípio sem o apoio dos comunistas. Pelo lado governamental era apresentado o Almirante Américo Thomaz, Ministro da Marinha.
Para a oposição democrática tratava-se de reeditar a experiência Quintão Meirelles com outros meios, muito mais força, grande violência, o cavalo de Tróia instalado na praça inimiga e nos ministérios fundamentalmente políticos.
Um dia se fará a história da candidatura de Delgado. Pode, todavia, verificar-se já que, comandada a informação e a propaganda pelo marcelismo, o marcelismo se mostrou táctica e estrategicamente incapaz de obstar ao desenvolvimento tempestuoso da candidatura oposicionista. À agressividade, à indiscutível valentia do General Humberto Delgado, contrapunham-se as hesitações típicas do carácter de Marcello Caetano, o oportunismo, pequenos e descrentes movimentos de defesa, autênticos actos de sabotagem. Chegou-se ao ponto de, pela Televisão recém-criada, não se ter transmitido em directo um discurso de Salazar; chegou-se ao ponto de a Polícia desistir de manter a ordem, deixando-se substituir primeiro pela G.N.R. e depois pelo Exército. Com tanques nas ruas, cargas de cavalaria e uma repressão violenta, conseguiu-se recompor o quadrado; o Estado Novo, contudo, estava ferido de morte, sustentado apenas pela personalidade e pelo prestígio de Salazar, os salazaristas quase convencidos que o seu chefe não morria, espécie estranha de ideologia, aparentada com o espiritismo, que não segurava o presente, nem resguardava o futuro.
Américo Thomaz foi eleito. Marcello saíu do governo, deixando instalada na infra-estrutura do poder muita gente sua — o Estado minado, Moreira Baptista, Ramiro Valadão e Henrique Tenreiro, cortesãos do Palácio de Belém, manobras na sombra, a corrosão a apodrecer a máquina. Salazar envelhecia. A guerra de África, deflagrada em 1961, limitava-o à política externa. Os marcelistas já não jogavam na sua destituição em vida; apostavam no enterro. Quando Salazar caíu da cadeira, o governo caíu-lhes nas mãos. Venciam. Tarde e a más-horas; mas suficientemente a tempo para se poderem constituir em comissão liquidatária, desfazendo o que restava da política do Estado Novo.
A experiência Marcello Caetano inicia-se sob o signo do anti-salazarismo. Logo nos primeiros dias da sua governação os jornais se desbocaram em críticas a Salazar e, na televisão, onde em Março, contra a opinião do próprio Marcello, se colocava Ramiro Valadão, a figura e o nome do antigo Presidente do Conselho eram cuidadosamente esquecidos, não fosse o velho recuperar do acidente cerebral e reinstalar-se no palacete da Rua da Imprensa. A um jornalista estrangeiro, dizia em 1969 certo membro do governo que, desde há longos anos, muito anteriores à demissão de Salazar, era Marcello Caetano quem governava através dos seus acólitos, instalados nos lugares-chaves.
O anti-salazarismo sensível e latente da atmosfera política, dividiu quase imediatamente as gentes do regime. A abertura liberalizante da nova Comissão Executiva da União Nacional, presidida pelo Dr. José Guilherme de Melo e Castro, antigo Subsecretário do Estado de Assistência Social de Salazar, permitiu criar uma pequena seita neocapitalista e social plutocrática na Assembleia Nacional; escorada na influência de dois filhos de Marcello Caetano e de dois ou três membros do governo, fundava-se a SEDES; o «Expresso» saía como órgão da oposição tecnocrática, tendo como redactor político um filho do Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, Ministro das Corporações, e via a censura amenizar-se graças a tal ligação. A chamada Direita tinha as maiores dificuldades em se mover e em se organizar, a maior parte dos seus importantes personagens ligados à alta-finança, epicuristas agradáveis que só não queriam ter maçadas.
Acontecia, porém, que o regime politicamente se estruturava na Direita. Ante um governo de tendências liberalizantes, as massas de apoio imobilizaram-se: organizaram-se grandes manifestações espontâneas, é certo; todavia a classe política mantinha-se desconfiada, não deixando ir por diante o processo esquerdizante. O próprio Marcello Caetano, autoritaríssimo, não se dispunha às reformas de fundo reclamadas por todos; hesitante, como sempre, deixava em meio a maioria dos projectos, mudava os nomes às instituições, não lhes mudando a essência, cada vez mais embaraçado pelos grandes interesses plutocráticos e especulativos recém-nascidos, por uma política económica e financeira onde, nitidamente, se desenhava a sombra sinistra do nepotismo e da corrupção. Algumas das maiores fortunas portuguesas fizeram-se nos últimos cinco anos: — a esquerda e a direita revoltavam-se contra os escândalos semi-políticos que ressaltavam da maioria das acções de fomento.
A especulação bolsista tomou aspectos desesperados. Manobrada por meia dúzia de meneurs, a alta fictícia do papel desviou as pequenas poupanças dos investimentos imediatamente reprodutivos. A massa monetária foi-se concentrando inevitavelmente nos grupos mais poderosos que, mesmo sem conscientemente o desejarem, se viam arrastados para um crescimento redundante que os engrandecia desmesuradamente, tornando-os menos eficientes e úteis, tornando-os anti-sociais. A inflação corria a galope.
Houve momentos em que por pura inépcia dos serviços se verificaram graves faltas no abastecimento público, em que a taxa de inflação subiu catastroficamente, em que o público começou a sentir-se concretamente lesado. Caminhava-se com passo seguro para uma situação perigosíssima a que a política salarial demagógica não conseguia pôr termo, estado de descontentamento larvado que atingia, de alto a baixo, toda a escala social. Marcello Caetano virava as costas à Nação — e nem as suas preocupadas Conversas em Família acalmavam os ânimos exaltados.
Como se isto não bastasse, no Ministério de Educação Nacional o Prof. Veiga Simão saltitava loucamente ao som da mais franca demagogia. As lutas da grande imprensa generosamente subsidiada insensavam-no com constância pertinaz: — fechadas muitas escolas por não ser possível manter a disciplina, abriam-nas em papel selado centenas de muitas outras, sem que houvesse professores para as guarnecerem, sem que as estruturas didácticas e pedagógicas estivessem preparadas para o monstruoso esforço. Milhões de contos eram lançados assim para o mercado em pura perda, não se calando nem os discentes, nem os docentes, esquerda e direita unidas para acusarem o Ministro de demagogia pura.
Mais: — com as Forças Armadas batendo-se heroicamente em África, o Ministro Sá Viana Rebelo conduzia uma política divisionista e pouco realista, sacrificando os quadros, satisfazendo uns para descontentar outros, não concedendo às Forças Armadas aquele mínimo de condições logísticas e frontais necessário para a condução da guerra, já agora desapoiada diplomaticamente por um Ministro dos Negócios Estrangeiros inexperiente e divertido.
Quando apareceram os primeiros manifestos do Movimento das Forças Armadas, as pessoas conscientes sentiram que o fim se aproximava. O marcelismo colhendo os frutos do seu hesitantismo, do oportunismo, da sua fraqueza congénita, dissolvia o Estado Novo. Só Marcello Caetano e Afonso Marchueta impávidos, insensíveis à tempestade, um discursando semana após semana, o outro com algumas das mais notáveis peças da oratória lusíada, recebendo sociedades recreativas e medalhas comemorativas.
O regime desfazia-se no desprezo e na irrisão. Iniciado pelas Forças Armadas num 28 de Maio para findar com a inépcia, a corrupção e a anarquia dos sucessivos governos da I República, era liquidado pelas Forças Armadas num 25 de Abril para acabar com o mesmo estado de coisas, exageradíssimo pelo gigantismo estatal e pela multiplicação dos interesses que, quarenta anos de estabilidade, tinham permitido criar, com muitos erros e injustiças, mas com extraordinárias virtudes.
O Estado Novo suicidou-se.
Etiquetas: Manuel Maria Múrias, marcelismo
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