sexta-feira, dezembro 31, 2004
CAETANO BEIRÃO
Invadiu-me um fundo sentimento de saudade e tristeza quando recebi, de chofre, a notícia da morte de Caetano Beirão. Depois, as recordações começaram a afluir em tropel à minha mente e recuei algumas décadas no tempo.
Em Coimbra, há uns bons vinte anos, no momento, para mim solene, em que proferia uma palestra na sede da Causa Monárquica, entrou na sala o consagrado historiador de "D. Maria I", que nós, quase imberbes contra-revolucionários, considerávamos um mestre ilustre. Para minha confusão, pediu-me ele que recomeçasse, desde início, a leitura do meu trabalhinho, o que fiz simultaneamente atrapalhado e envaidecido. No final, com a sua grande indulgência pelos novos e a sua amabilidade de sempre, Caetano Beirão elogiou, abertamente, a minha insignificante produção (que eu, nessa altura, supunha importantíssima). Durante alguns dias imaginei-me alguém, um autêntico e importante doutrinador político, até que o bom senso regressou, ajudado pela salutar ironia dos camaradas da época.
Assim travei relações pessoais com o escritor de "Uma Campanha Tradicionalista", num andar modesto da Avenida Sá da Bandeira, na cidade de «tão doces e lavados ares» de que falava Eça de Queirós.
Os anos passaram e o culto que eu votava a muitas figuras destacadas do pensamento integralista, em especial aos fundadores do movimento (que venerava, com fervor, na altura em que ingressei na Universidade), foi, infelizmente, desaparecendo, pouco a pouco, pela contemplação de um dos mais lastimáveis quadros de abdicações, de transigências e recuos que até hoje tive o desgosto de presenciar. Com pasmo e estupefacção vi grande número dos pioneiros do nacionalismo integral, praticamente, esquecerem as páginas dos seus livros de outrora e enfileirarem, com desfaçatez, nas hostes dos defensores da monarquia democrática, dos entusiastas das liberdades fundamentais, dos campeões da vitória das demo-plutocracias e do marxismo sobre o autoritarismo totalitário fascista e nacional-socialista.
Contudo, no que diz respeito a Caetano Beirão, graças a Deus nunca tive a amargura de me sentir obrigado a deixar de o julgar digno da admiração e do respeito que lhe votava desde rapaz. Ele não pertencia — louvado seja! — à escola daquele destacado militante do integralismo que, segundo conta nas suas memórias o Sr. Cunha Leal, lhe surgiu, agora, a penitenciar-se do seu ódio à Revolução Francesa e a dizer-lhe compungido que só após se perder a liberdade se sabe apreciar o seu valor.
Caetano Beirão, fossem quais fossem os acidentes da sua vida pessoal (e também ele conheceu a prisão, a seguir a 1926) jamais renegou princípios e convicções passadas ou principiou, sem aviso ou explicação, a incensar os erros e as mentiras que combatera grande parte da sua existência. Para ele, como para os melhores combatentes da Europa, a sua honra era a sua fidelidade.
Circunstâncias várias, em primeiro lugar a fraternal amizade que me ligava a Caetano de Melo Beirão com quem luto, lado a lado, na mesma trincheira, desde os bancos da Faculdade de Direito, levaram-me a estreitar os contactos e a penetrar um pouco na intimidade do autor de "Via Latina". Durante o meu curso de oficiais milicianos, com a maior simplicidade e a mais afectuosa cordialidade, Caetano Beirão recebia-me em sua casa, nos fins de semana. No domingo eu jantava lá frequentemente havendo, sempre, à noite, uma pequena reunião, com conversa interessante e viva, que, por regra, nos momentos de maior animação, eu era forçado a abandonar, para tomar o caminho do regresso ao quartel, em Mafra.
Mais tarde, lembro-me perfeitamente, estava, por curiosa coincidência, ao lado de Caetano Beirão e seus filhos quando me foram dadas as primeiras notícias fidedignas da sublevação de Argel. Era a 14 ou 15 de Maio. Tínhamos ido escutar uma conferência de Gérard Hupin sobre Charles Maurras. No fim, Jacques Ploncard d`Assac aproximou-se de nós e, sorridente, optimista, disse-nos o que sabia dos acontecimentos. Confirmou a notícia, dada pelas agências, de que o nome do general La Perche fora invocado pelos revolucionários, no Forum. Em face disso expressei algumas reservas e dúvidas, ciente, como estava, de que desse general nada mais podia vir senão o perjúrio, a desonra e a infâmia. Em todo o caso, sob o meu cepticismo havia, ainda, um forte substracto de esperança. Pensava que a invocação de tão abominável nome talvez não passasse de manobra transitória ou de infeliz balão de ensaio de grupo mais ou menos restrito e que, a final, nunca o poder viria a cair em tais mãos. Tremenda ilusão a minha!
Os eventos tomaram o rumo de todos conhecido e o sonho que eu sonhava, ao lado de Caetano Beirão, o sonho de um início do ressurgimento da Europa, de um firme começo de reacção contra as forças da barbárie e da desordem sossobrou frente ao amargo, sórdido e torpe quadro das realidades. Nesse período, a acompanhar-nos, constantemente, nos nossos anseios, a compartilhar dos nossos desencantos, encontrávamos sempre, o polemista corajoso de Resposta à letra ao jornal Novidades. As nossas tentativas de avançar para além do ideário integralista — para além no sentido do aprofundamento do que esse ideário tinha de anti-democrático, anti-liberal, anti-personalista ou individualista, autoritário, hierárquico, pré-fascista e pré-totalitário — não escandalizavam Caetano Beirão, antes deparavam com a sua compreensão e a sua simpatia. Ele não deixava de nos acompanhar, com uma discreta presença tutelar, embora, de idade e formação diferentes, não quisesse lançar-se connosco numa empresa de renovação doutrinária primordialmente inspirada em preocupações de índole filosófica a que nunca se sentiu ligado e que nunca o entusiasmaram com veemência.
Morto Alfredo Pimenta, Caetano Beirão tornara-se o mais prestigioso dos sobreviventes da Acção Realista Portuguesa, agrupamento em que se destacaram individualidades como João Ameal, Fernando de Campos, Luís Chaves, Gastão de Melo de Matos, e outros. A sua devoção à memória do erudito pensador de "Novos Estudos Filosóficos e Críticos" foi sempre exemplar e tocante, testemunhando um carácter nobilíssimo. Na presença de Caetano Beirão nunca ouvi uma alusão irónica a certos pendores pessoais mais ou menos discutíveis (desses que toda a gente tem) de Alfredo Pimenta, ou uma referência pouco elogiosa a determinados livros da fase esteticista do poeta de "Paisagem de Orquídeas", sem que o investigador de "Cartas da Rainha D. Mariana Vitória" acorresse a observar, serenamente, que, mesmo nos livros de menor valia de Alfredo Pimenta, palpitava o talento e que, até nas extravagâncias individuais, este evidenciava inconformismo, desassombro e coragem.
A obra de Caetano Beirão sem ser, e é pena, extremamente vasta, possui um real e incontestável valor. No domínio da doutrinação política salientam-se os volumes "Uma Campanha Tradicionalista", e "A Lição da Democracia" de tão acentuado mérito no seu tempo, "O Tradicionalismo da Carta", "Resposta à letra ao jornal Novidades", etc., e vários e notáveis artigos dispersos em jornais e revistas que bom seria fossem reunidos e publicados de novo.
No domínio da historiografia legou-nos o excelente trabalho "Dona Maria I", que bastaria para o celebrizar além das já mencionadas "Cartas da Rainha D. Mariana Vitória" (lastimavelmente não passaram do tomo I), de "O Problema da sucessão do Rei D. João VI na História de Portugal do Sr. Fortunato de Almeida", de "Vinte e oito anos de guerra — 1640-1668", de "El-Rei D. Miguel e a sua Descendência", de "História Breve de Portugal" (torpemente atacada, na sua 2.ª edição, por um saltimbanco da política nacional que, se um dia está ao lado do reviralho, no dia seguinte faz tagatés à situação), etc., etc. Foi, sem dúvida, enquanto historiador que mais se destacou Caetano Beirão, convindo, todavia, não esquecer o cronista de "As Grandes Reportagens de outros tempos", (com o pseudónimo de Amador Patrício), e de "Via Latina", com capítulos em que palpita a sua admiração pela extraordinária figura de Benito Mussolini e um grande amor pela Itália.
No entanto, no instante em que Caetano Beirão nos deixou definitivamente, mais do que à sua obra — obra que, na sua maior parte, não perecerá, apesar de lhe faltarem as consagrações da fama fácil e os aplausos de suspeitos intuitos — o que rememorámos com nostalgia foi a sua figura, tranquila mas inquebrantável, o seu aprumo inalterável, a sua gentileza na amizade. Com ele desapareceu um pouco de nós próprios, dos nossos anos de aprendizagens, quimeras, entusiasmos, pugnas, enfim, aquela época encantada cujo perfume se foi diluindo no dobrar dos anos, a época em que éramos jovens confiantes, despreocupados e pensávamos, candidamente, que um futuro cheio de feitos e aventuras nos aguardava e chamava por nós.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 344, 17.02.1968., pág. 12).
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Em Coimbra, há uns bons vinte anos, no momento, para mim solene, em que proferia uma palestra na sede da Causa Monárquica, entrou na sala o consagrado historiador de "D. Maria I", que nós, quase imberbes contra-revolucionários, considerávamos um mestre ilustre. Para minha confusão, pediu-me ele que recomeçasse, desde início, a leitura do meu trabalhinho, o que fiz simultaneamente atrapalhado e envaidecido. No final, com a sua grande indulgência pelos novos e a sua amabilidade de sempre, Caetano Beirão elogiou, abertamente, a minha insignificante produção (que eu, nessa altura, supunha importantíssima). Durante alguns dias imaginei-me alguém, um autêntico e importante doutrinador político, até que o bom senso regressou, ajudado pela salutar ironia dos camaradas da época.
Assim travei relações pessoais com o escritor de "Uma Campanha Tradicionalista", num andar modesto da Avenida Sá da Bandeira, na cidade de «tão doces e lavados ares» de que falava Eça de Queirós.
Os anos passaram e o culto que eu votava a muitas figuras destacadas do pensamento integralista, em especial aos fundadores do movimento (que venerava, com fervor, na altura em que ingressei na Universidade), foi, infelizmente, desaparecendo, pouco a pouco, pela contemplação de um dos mais lastimáveis quadros de abdicações, de transigências e recuos que até hoje tive o desgosto de presenciar. Com pasmo e estupefacção vi grande número dos pioneiros do nacionalismo integral, praticamente, esquecerem as páginas dos seus livros de outrora e enfileirarem, com desfaçatez, nas hostes dos defensores da monarquia democrática, dos entusiastas das liberdades fundamentais, dos campeões da vitória das demo-plutocracias e do marxismo sobre o autoritarismo totalitário fascista e nacional-socialista.
Contudo, no que diz respeito a Caetano Beirão, graças a Deus nunca tive a amargura de me sentir obrigado a deixar de o julgar digno da admiração e do respeito que lhe votava desde rapaz. Ele não pertencia — louvado seja! — à escola daquele destacado militante do integralismo que, segundo conta nas suas memórias o Sr. Cunha Leal, lhe surgiu, agora, a penitenciar-se do seu ódio à Revolução Francesa e a dizer-lhe compungido que só após se perder a liberdade se sabe apreciar o seu valor.
Caetano Beirão, fossem quais fossem os acidentes da sua vida pessoal (e também ele conheceu a prisão, a seguir a 1926) jamais renegou princípios e convicções passadas ou principiou, sem aviso ou explicação, a incensar os erros e as mentiras que combatera grande parte da sua existência. Para ele, como para os melhores combatentes da Europa, a sua honra era a sua fidelidade.
Circunstâncias várias, em primeiro lugar a fraternal amizade que me ligava a Caetano de Melo Beirão com quem luto, lado a lado, na mesma trincheira, desde os bancos da Faculdade de Direito, levaram-me a estreitar os contactos e a penetrar um pouco na intimidade do autor de "Via Latina". Durante o meu curso de oficiais milicianos, com a maior simplicidade e a mais afectuosa cordialidade, Caetano Beirão recebia-me em sua casa, nos fins de semana. No domingo eu jantava lá frequentemente havendo, sempre, à noite, uma pequena reunião, com conversa interessante e viva, que, por regra, nos momentos de maior animação, eu era forçado a abandonar, para tomar o caminho do regresso ao quartel, em Mafra.
Mais tarde, lembro-me perfeitamente, estava, por curiosa coincidência, ao lado de Caetano Beirão e seus filhos quando me foram dadas as primeiras notícias fidedignas da sublevação de Argel. Era a 14 ou 15 de Maio. Tínhamos ido escutar uma conferência de Gérard Hupin sobre Charles Maurras. No fim, Jacques Ploncard d`Assac aproximou-se de nós e, sorridente, optimista, disse-nos o que sabia dos acontecimentos. Confirmou a notícia, dada pelas agências, de que o nome do general La Perche fora invocado pelos revolucionários, no Forum. Em face disso expressei algumas reservas e dúvidas, ciente, como estava, de que desse general nada mais podia vir senão o perjúrio, a desonra e a infâmia. Em todo o caso, sob o meu cepticismo havia, ainda, um forte substracto de esperança. Pensava que a invocação de tão abominável nome talvez não passasse de manobra transitória ou de infeliz balão de ensaio de grupo mais ou menos restrito e que, a final, nunca o poder viria a cair em tais mãos. Tremenda ilusão a minha!
Os eventos tomaram o rumo de todos conhecido e o sonho que eu sonhava, ao lado de Caetano Beirão, o sonho de um início do ressurgimento da Europa, de um firme começo de reacção contra as forças da barbárie e da desordem sossobrou frente ao amargo, sórdido e torpe quadro das realidades. Nesse período, a acompanhar-nos, constantemente, nos nossos anseios, a compartilhar dos nossos desencantos, encontrávamos sempre, o polemista corajoso de Resposta à letra ao jornal Novidades. As nossas tentativas de avançar para além do ideário integralista — para além no sentido do aprofundamento do que esse ideário tinha de anti-democrático, anti-liberal, anti-personalista ou individualista, autoritário, hierárquico, pré-fascista e pré-totalitário — não escandalizavam Caetano Beirão, antes deparavam com a sua compreensão e a sua simpatia. Ele não deixava de nos acompanhar, com uma discreta presença tutelar, embora, de idade e formação diferentes, não quisesse lançar-se connosco numa empresa de renovação doutrinária primordialmente inspirada em preocupações de índole filosófica a que nunca se sentiu ligado e que nunca o entusiasmaram com veemência.
Morto Alfredo Pimenta, Caetano Beirão tornara-se o mais prestigioso dos sobreviventes da Acção Realista Portuguesa, agrupamento em que se destacaram individualidades como João Ameal, Fernando de Campos, Luís Chaves, Gastão de Melo de Matos, e outros. A sua devoção à memória do erudito pensador de "Novos Estudos Filosóficos e Críticos" foi sempre exemplar e tocante, testemunhando um carácter nobilíssimo. Na presença de Caetano Beirão nunca ouvi uma alusão irónica a certos pendores pessoais mais ou menos discutíveis (desses que toda a gente tem) de Alfredo Pimenta, ou uma referência pouco elogiosa a determinados livros da fase esteticista do poeta de "Paisagem de Orquídeas", sem que o investigador de "Cartas da Rainha D. Mariana Vitória" acorresse a observar, serenamente, que, mesmo nos livros de menor valia de Alfredo Pimenta, palpitava o talento e que, até nas extravagâncias individuais, este evidenciava inconformismo, desassombro e coragem.
A obra de Caetano Beirão sem ser, e é pena, extremamente vasta, possui um real e incontestável valor. No domínio da doutrinação política salientam-se os volumes "Uma Campanha Tradicionalista", e "A Lição da Democracia" de tão acentuado mérito no seu tempo, "O Tradicionalismo da Carta", "Resposta à letra ao jornal Novidades", etc., e vários e notáveis artigos dispersos em jornais e revistas que bom seria fossem reunidos e publicados de novo.
No domínio da historiografia legou-nos o excelente trabalho "Dona Maria I", que bastaria para o celebrizar além das já mencionadas "Cartas da Rainha D. Mariana Vitória" (lastimavelmente não passaram do tomo I), de "O Problema da sucessão do Rei D. João VI na História de Portugal do Sr. Fortunato de Almeida", de "Vinte e oito anos de guerra — 1640-1668", de "El-Rei D. Miguel e a sua Descendência", de "História Breve de Portugal" (torpemente atacada, na sua 2.ª edição, por um saltimbanco da política nacional que, se um dia está ao lado do reviralho, no dia seguinte faz tagatés à situação), etc., etc. Foi, sem dúvida, enquanto historiador que mais se destacou Caetano Beirão, convindo, todavia, não esquecer o cronista de "As Grandes Reportagens de outros tempos", (com o pseudónimo de Amador Patrício), e de "Via Latina", com capítulos em que palpita a sua admiração pela extraordinária figura de Benito Mussolini e um grande amor pela Itália.
No entanto, no instante em que Caetano Beirão nos deixou definitivamente, mais do que à sua obra — obra que, na sua maior parte, não perecerá, apesar de lhe faltarem as consagrações da fama fácil e os aplausos de suspeitos intuitos — o que rememorámos com nostalgia foi a sua figura, tranquila mas inquebrantável, o seu aprumo inalterável, a sua gentileza na amizade. Com ele desapareceu um pouco de nós próprios, dos nossos anos de aprendizagens, quimeras, entusiasmos, pugnas, enfim, aquela época encantada cujo perfume se foi diluindo no dobrar dos anos, a época em que éramos jovens confiantes, despreocupados e pensávamos, candidamente, que um futuro cheio de feitos e aventuras nos aguardava e chamava por nós.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 344, 17.02.1968., pág. 12).
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Blog NR
Dos lados de Espanha é o Blog NR, que se dedica a analisar a corrrente NR e o seu papel num "futuro ente patriótico-populista".
Por entre a realidade da fragmentação da area nacional, pensa-se a possibilidade de um futuro "ente" que supere essa situação. Veremos se "a coisa" alguma vez se torna realidade.
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Por entre a realidade da fragmentação da area nacional, pensa-se a possibilidade de um futuro "ente" que supere essa situação. Veremos se "a coisa" alguma vez se torna realidade.
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quinta-feira, dezembro 30, 2004
Mais fascismo em rede
Surgiu agora um novo forum para o qual envio todos os visitantes, especialmente os de língua espanhola: o Unidad Nacional.
Pouco a pouco se vai construindo a imensa rede que aqui propus desde o princípio: é bom verificar que as ideias vão fazendo o seu caminho, e que os nacionalistas se mostram capazes de enfrentar o nosso tempo adaptando os seus métodos, tácticas e estratégias à vanguarda da época em que vivem - na mente os ideais intemporais, nas mãos os instrumentos da modernidade.
Para a internet, camaradas! Que no ciberespaço se faça laborar, magnífica,a fábrica das ideias que irão encher as ruas!
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REFLEXÕES IRREFLECTIDAS
Nas montras das nossas livrarias, têm aparecido, com profusão, em edições de bolso ou de bolsinho, as traduções brasileira, espanhola, chinesa, espanhola, bunda ou o raio que as parta, de uma obra de Sartre intitulada "Réflexions sur la question juive". Escrita em 1944, por certo em hora de delírio histérico, se houvesse neste mundo um pouco de pudor ninguém pensaria em reeditá-la. E se, porventura, o seu autor tivesse recuperado o juízo seria o primeiro a recolher o livrinho, com pressa e aflição, querendo ocultar, envergonhadamente, o vestígio do delito. Infelizmente, nem Sartre recobrou o uso da razão, nem a decência impera no orbe. Pelo que estas inenarráveis Reflexões vão sendo exibidas, tranquilamente, por terras de França e de Navarra chegando até Portugal.
Inútil acrescentar que ao lê-las, agora, (em 1944 a minha modesta bolsa de estudante não continha capitais disponíveis para desperdiçar com volumes de semelhante jaez) me torci a rir, em certas ocasiões, duma maneira geral nunca abandonando o sorriso. As virtudes humorísticas do livrinho são indiscutíveis, incontroversas.
A tese de Sartre é genial e simples. Os judeus, por certo, constituíram outrora uma nação. Tal nação, porém, desapareceu há muito tempo. A partir daí «é o anti-semita que cria o judeu» (1). O ódio e aversão dirigidos a uma certa espécie humana é que lhe dá existência e a faz comportar-se como se fosse representativa dum tipo nacional, embora nem de longe o seja.
Mas de que modo surgiriam esses ódio e aversão? Poder-se-ia supor que recordações de índole religiosa os tinham originado, remotamente. Sartre, no entanto, desfaz, com talento, esta ilusão. O anti-semitismo não ataca os judeus enquanto povo deicida. Não estamos perante uma absurda imputação aos filhos das faltas dos pais que se tenha, tristemente, prolongado através da história. Não! Atribuir a morte de Cristo aos judeus é, já, o primeiro acto daquele anti-semitismo que cria a existência do israelita. O surgir do ódio e da aversão é que leva a asseverar que foram os judeus que crucificaram Jesus. Luminosamente Sartre escreve: «Le juif est parfaitement assimilable par les nations modernes. Il se définit comme celui que les nations ne veulent pas assimiler. Ce qui pèse origenellement sur lui c`est qu`il est l`assassin du Christ... Notons tout de suite qu`il s`agit ici d`une legende crée par la propagande chrétienne de la diaspora. Il est bien évident que la croix est un suplice romain et que le Christ a été executé par les romains comme agitateur politique» (2).
Nada mais evidente, com efeito, Urge que, quanto antes, se faça a expurgação, a depuração, dos abomináveis livros de propaganda (quase nazi) denominados Evangelhos escritos pelos criminosos de guerra Marcos, Mateus, Lucas e João. Já há alguns anos chamámos a esclarecida atenção de Sua Santidade João XXIII, (que tão nobremente mandara suprimir a palavra pérfidos da expressão «pérfidos judeus» do Ofício de Sexta-feira Santa.) para tão momentoso problema. Felizmente tivemos a honra de ver que o Concílio perfilhou os nossos pontos de vista. E frisemos já um ponto que nos parece importante. É por simples coincidência que o ódio e a aversão, que criam o judeu, incidiram sobre os descendentes dos membros da antiga nação judaica. A semelhantes descendentes é que, de repente, se começou sem qualquer razão plausível, a proclamá-los matadores de Cristo bem como a considerá-los impossíveis de assimilar...
Isto também se poderia ter passado, obviamente, com os descendentes dos Númidas e, então, hoje em dia, os Númidas é que seriam os judeus e a Paixão teria por local, possivelmente, Cartago. Se assim não aconteceu, foi, apenas, por acaso. Longe de nós o intuito, sequer, de pensar que, se os hebreus não foram assimilados depois da Diáspora é porque mantiveram entre si um vínculo nacional e racial a que jamais desejaram renunciar, e que se lhes é imputada a morte de Cristo é porque em Jerusalém uma imensa multidão entre o perdão de Jesus ou o de Barrabás optou a altos e repetidos brados a favor de Barrabás enquanto o romano Pilatos exclamava «estou inocente do sangue deste justo».
Evidentemente, eis aqui abjectas lendas fascistas que não merecem sequer discussão.
Assentes de tão segura e maravilhosa forma as suas premissas, Sartre não deixou de desenvolver, com cuidado singular, a argumentação que delas deriva.
Dado que sentimentos irracionais — ódio e aversão — é que originaram o judeu, o anti-semita é, por definição, um irracionalista. A prová-lo lá está o seu violento combate contra o universal e o racional. «L`anti-sémite adhère au départ a un irracionalisme de fait. Il s`oppose au juif comme le sentiment à l`intelligence, le particulier a l`universel, le passé au présent, le concret a l`abstrait» (3).
Note-se que Sartre indica qual anti-semita típico, a Charles Maurras. Ora Charles Maurras ataca exactamente o espírito judaico como insurreição do particular, do instintivo e se exalta Roma e o ethos romano é por o considerar sinónimo do universal (4). E aqui temos um típico anti-semita segundo Sartre, a perfilhar pontos de vista opostos aos que este último sustenta serem específicos e próprios do anti-semitismo.
Não se contenta, porém, com tal façanha o autor de "La Nausée". Ele ensina, impávido, que a "France Juive" de Edouard Drumont, não passa de um «receuil d`histoires ignobles ou obscènes». Lemos, há anos, essa obra do escritor de "La Fin d`un Monde", onde não encontrámos, quase não vale a pena dizê-lo, histórias ignóbeis ou obscenas. Trata-se de um estudo social e histórico, por vezes com boas páginas, outras vezes um pouco aborrecido. E nada mais. Sartre, com certeza, nunca lhe pôs a vista em cima e fala de ouvido, informado, se calhar, por algum dos seus queridos judeus (5).
Continuando na mesma ordem de inspirações, o filósofo de "L`être et le néant" sustenta a altos brados, que «Maurras nous l` affirme; un juif sera toujours incapable de comprendre ce vers de Racine-Dans l`Orient désert quel devint mon ennui» (6).
Claro que estamos perante uma falsificação grosseiríssima em que até a citação dos versos de Racine, na Bérenice, aparece truncada. O texto de Maurras é o seguinte. «On dit que la culture passe de droite à gauche et qu`un monde neuf s`est constitué. Cela est bien possible. Mais les nouveaux promus sont aussi des nouveaux venus a moins qu`ils ne soient leurs clients et valets et ces étrangers enrichis manquent terriblement les uns de gravité, de réflexion, sous leur apparence et les autres, sous leur détestable vernis parisien, de légèreté, de vraie grâce. Je trouve superficiel leur esprit si brutal. Si pratiques, si souples, ils laissent échaper le coeur la moèlle de tout. Comment ces gens là auraient-ils un gout sincère pour nos humanités? Cela ne s`apprend point à l`Université. Tous les grades du mond ne feront pas sentir à ce critique juif, d`ailleurs pénétrant, érudit, que, dans Bérenice, "lieux charmants où mon coeur vous avait adorée" est une façon de parler qui n`est point banale, mais simple, émouvante et très belle» (7).
Sartre começa, num estenderete completo, por aludir a «Dans l`Orient désert... etc.» quando Maurras se refere, dois versos abaixo, a «Lieux charmants... etc.» Semelhante falta de escrúpulo é já notável. Depois Maurras menciona o facto de os estrangeiros a que alude (esses estrangeiros — «ces étrangers») e que se estavam a assenhorear do mundo intelectual francês, ou não terem verdadeira gravidade, ou não possuírem autêntico gosto crítico, o qual se não adquire por meio de graus universitários. Maurras não estava a sustentar que os estrangeiros como tal, todos os estrangeiros (incluindo os hebreus), não podiam compreender a poesia de Racine. Estava a caracterizar, facilmente, a nova vaga cultural da sua época, de que aquele crítico judeu era um expoente. E se nas palavras do Mestre de "Le Chemin de Paradis" há algo de alcance geral, é, unicamente, contra a Universidade cujos graus nunca conseguirão substituir o bom gosto ausente. Isto que diabo tem a ver com o anti-semitismo?
Numa palavra: Maurras jamais afirmou o que Sartre, tão desavergonhadamente, lhe atribuiu, com uma desonestidade que dispensa comentários.
Observemos, ainda, que o dramaturgo de "La Putain Respectueuse" recusa-se a abranger o anti-semitismo entre as opiniões porque para ele não é «opinion une doctrine qui vise expressément des personnes particulières et à supprimer leus droits ou à les exterminer» (8).
E a conclusão surge imediata: «L`anti-sémitisme ne rentre pas dans la catégorie de pensées que protège le Droit de libre opinion» (9).
Note-se que não se alude à supressão da totalidade dos direitos, pois que, a seguir à expressão «supprimer leurs droits», vem «ou à les exterminer». Donde se vê que, no primeiro caso, sempre resta o direito à vida. Assim Sartre, ao falar em suprimir os direitos de pessoas particulares, pensa na eliminação de alguns direitos não é de todos. O que o indigna aí é que uma certa espécie concreta de indivíduos, caracterizados rácica e hereditariamente, sejam alvo de uma discriminação, quando a única discriminação que admite é aquela que se dirija a categorias abstractas e impessoais. Em todo o caso, Jean Paul Sartre nunca protestou por os cidadãos alemães residentes em França não possuírem o direito de ser deputados nem o de ascender à Presidência da República. Trata-se, aqui, de uma atitude que visa «des personnes particulières», tendendo a suprimir-lhes direitos. Os alemães são definidos por uma hereditariedade, um local de nascimento, constituem um conjunto palpável de homens. Não representam um ente esquemático, tipicizado, tão só, pelo seus factos ou funções. E sobre os alemães tomba em França uma odiosa discriminação. Que pena Sartre não se ter apercebido dela e iniciado uma humanitária e forte campanha de emancipação! Que pena não ter eliminado da categoria de pensamentos protegidos pelo direito de livre opinião a defesa das desigualdades que impendem em França entre os naturais do país e os estrangeiros do Além-Reno.
Escusado acrescentar que o presente livro possui de qualquer coisa de bom. Na página 47 lê-se: «Si Céline a pu soutenir les thèses socialistes des nazis c`est qu`il était payé». Esta bela infâmia originou uma admirável e sangrenta diatribe do romancista de "Voyage au bout de la Nuit" (publicada por Albert Paraz no seu «Gala des Vaches») que colou a Sartre, definitivamente e a justo título, o excelente sobriquete de Ténia. Eis, enfim, que algo de positivo se ficou a dever às "Réflexions sur la question juive".
Salientemos, a concluir, que Ténia-Sartre identifica o judeu como o missionário da universalidade racional, etc., etc., descobrindo-lhe uma imensa série dos mais elevados atributos morais. De forma que podemos sintetizar o pensamento sartriano com a frase do grande e saudoso P. A. Cousteau: «para Sartre os judeus não existem mas esses homens que não existem são, no entanto, superiores a quaisquer outros».
António José de Brito
Notas:
1 — J. P. Sartre, Réflexions sur la question juive, págs. 83-84.
2 — Idem, pág. 81.
3 — J. P. Sartre, Réflexions citadas, págs. 28-29.
4 — Charles Maurras, La Politique Réligieuse, págs. 388-392; Réflexions sur la Révolution de 1789, págs. 7-8.
5 — J. P. Sartre, Réflexions, cit., 53.
6 — Idem, pág. 27.
7 — Charles Maurras, L`Avenir de l`Intelligence, pág. 12.
8 — J. P. Sartre, Réflexions cit., 10.
9 — Idem, idem.
(In «Agora», n.º 343, 10.02.1968., pág. 10.)
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Inútil acrescentar que ao lê-las, agora, (em 1944 a minha modesta bolsa de estudante não continha capitais disponíveis para desperdiçar com volumes de semelhante jaez) me torci a rir, em certas ocasiões, duma maneira geral nunca abandonando o sorriso. As virtudes humorísticas do livrinho são indiscutíveis, incontroversas.
A tese de Sartre é genial e simples. Os judeus, por certo, constituíram outrora uma nação. Tal nação, porém, desapareceu há muito tempo. A partir daí «é o anti-semita que cria o judeu» (1). O ódio e aversão dirigidos a uma certa espécie humana é que lhe dá existência e a faz comportar-se como se fosse representativa dum tipo nacional, embora nem de longe o seja.
Mas de que modo surgiriam esses ódio e aversão? Poder-se-ia supor que recordações de índole religiosa os tinham originado, remotamente. Sartre, no entanto, desfaz, com talento, esta ilusão. O anti-semitismo não ataca os judeus enquanto povo deicida. Não estamos perante uma absurda imputação aos filhos das faltas dos pais que se tenha, tristemente, prolongado através da história. Não! Atribuir a morte de Cristo aos judeus é, já, o primeiro acto daquele anti-semitismo que cria a existência do israelita. O surgir do ódio e da aversão é que leva a asseverar que foram os judeus que crucificaram Jesus. Luminosamente Sartre escreve: «Le juif est parfaitement assimilable par les nations modernes. Il se définit comme celui que les nations ne veulent pas assimiler. Ce qui pèse origenellement sur lui c`est qu`il est l`assassin du Christ... Notons tout de suite qu`il s`agit ici d`une legende crée par la propagande chrétienne de la diaspora. Il est bien évident que la croix est un suplice romain et que le Christ a été executé par les romains comme agitateur politique» (2).
Nada mais evidente, com efeito, Urge que, quanto antes, se faça a expurgação, a depuração, dos abomináveis livros de propaganda (quase nazi) denominados Evangelhos escritos pelos criminosos de guerra Marcos, Mateus, Lucas e João. Já há alguns anos chamámos a esclarecida atenção de Sua Santidade João XXIII, (que tão nobremente mandara suprimir a palavra pérfidos da expressão «pérfidos judeus» do Ofício de Sexta-feira Santa.) para tão momentoso problema. Felizmente tivemos a honra de ver que o Concílio perfilhou os nossos pontos de vista. E frisemos já um ponto que nos parece importante. É por simples coincidência que o ódio e a aversão, que criam o judeu, incidiram sobre os descendentes dos membros da antiga nação judaica. A semelhantes descendentes é que, de repente, se começou sem qualquer razão plausível, a proclamá-los matadores de Cristo bem como a considerá-los impossíveis de assimilar...
Isto também se poderia ter passado, obviamente, com os descendentes dos Númidas e, então, hoje em dia, os Númidas é que seriam os judeus e a Paixão teria por local, possivelmente, Cartago. Se assim não aconteceu, foi, apenas, por acaso. Longe de nós o intuito, sequer, de pensar que, se os hebreus não foram assimilados depois da Diáspora é porque mantiveram entre si um vínculo nacional e racial a que jamais desejaram renunciar, e que se lhes é imputada a morte de Cristo é porque em Jerusalém uma imensa multidão entre o perdão de Jesus ou o de Barrabás optou a altos e repetidos brados a favor de Barrabás enquanto o romano Pilatos exclamava «estou inocente do sangue deste justo».
Evidentemente, eis aqui abjectas lendas fascistas que não merecem sequer discussão.
Assentes de tão segura e maravilhosa forma as suas premissas, Sartre não deixou de desenvolver, com cuidado singular, a argumentação que delas deriva.
Dado que sentimentos irracionais — ódio e aversão — é que originaram o judeu, o anti-semita é, por definição, um irracionalista. A prová-lo lá está o seu violento combate contra o universal e o racional. «L`anti-sémite adhère au départ a un irracionalisme de fait. Il s`oppose au juif comme le sentiment à l`intelligence, le particulier a l`universel, le passé au présent, le concret a l`abstrait» (3).
Note-se que Sartre indica qual anti-semita típico, a Charles Maurras. Ora Charles Maurras ataca exactamente o espírito judaico como insurreição do particular, do instintivo e se exalta Roma e o ethos romano é por o considerar sinónimo do universal (4). E aqui temos um típico anti-semita segundo Sartre, a perfilhar pontos de vista opostos aos que este último sustenta serem específicos e próprios do anti-semitismo.
Não se contenta, porém, com tal façanha o autor de "La Nausée". Ele ensina, impávido, que a "France Juive" de Edouard Drumont, não passa de um «receuil d`histoires ignobles ou obscènes». Lemos, há anos, essa obra do escritor de "La Fin d`un Monde", onde não encontrámos, quase não vale a pena dizê-lo, histórias ignóbeis ou obscenas. Trata-se de um estudo social e histórico, por vezes com boas páginas, outras vezes um pouco aborrecido. E nada mais. Sartre, com certeza, nunca lhe pôs a vista em cima e fala de ouvido, informado, se calhar, por algum dos seus queridos judeus (5).
Continuando na mesma ordem de inspirações, o filósofo de "L`être et le néant" sustenta a altos brados, que «Maurras nous l` affirme; un juif sera toujours incapable de comprendre ce vers de Racine-Dans l`Orient désert quel devint mon ennui» (6).
Claro que estamos perante uma falsificação grosseiríssima em que até a citação dos versos de Racine, na Bérenice, aparece truncada. O texto de Maurras é o seguinte. «On dit que la culture passe de droite à gauche et qu`un monde neuf s`est constitué. Cela est bien possible. Mais les nouveaux promus sont aussi des nouveaux venus a moins qu`ils ne soient leurs clients et valets et ces étrangers enrichis manquent terriblement les uns de gravité, de réflexion, sous leur apparence et les autres, sous leur détestable vernis parisien, de légèreté, de vraie grâce. Je trouve superficiel leur esprit si brutal. Si pratiques, si souples, ils laissent échaper le coeur la moèlle de tout. Comment ces gens là auraient-ils un gout sincère pour nos humanités? Cela ne s`apprend point à l`Université. Tous les grades du mond ne feront pas sentir à ce critique juif, d`ailleurs pénétrant, érudit, que, dans Bérenice, "lieux charmants où mon coeur vous avait adorée" est une façon de parler qui n`est point banale, mais simple, émouvante et très belle» (7).
Sartre começa, num estenderete completo, por aludir a «Dans l`Orient désert... etc.» quando Maurras se refere, dois versos abaixo, a «Lieux charmants... etc.» Semelhante falta de escrúpulo é já notável. Depois Maurras menciona o facto de os estrangeiros a que alude (esses estrangeiros — «ces étrangers») e que se estavam a assenhorear do mundo intelectual francês, ou não terem verdadeira gravidade, ou não possuírem autêntico gosto crítico, o qual se não adquire por meio de graus universitários. Maurras não estava a sustentar que os estrangeiros como tal, todos os estrangeiros (incluindo os hebreus), não podiam compreender a poesia de Racine. Estava a caracterizar, facilmente, a nova vaga cultural da sua época, de que aquele crítico judeu era um expoente. E se nas palavras do Mestre de "Le Chemin de Paradis" há algo de alcance geral, é, unicamente, contra a Universidade cujos graus nunca conseguirão substituir o bom gosto ausente. Isto que diabo tem a ver com o anti-semitismo?
Numa palavra: Maurras jamais afirmou o que Sartre, tão desavergonhadamente, lhe atribuiu, com uma desonestidade que dispensa comentários.
Observemos, ainda, que o dramaturgo de "La Putain Respectueuse" recusa-se a abranger o anti-semitismo entre as opiniões porque para ele não é «opinion une doctrine qui vise expressément des personnes particulières et à supprimer leus droits ou à les exterminer» (8).
E a conclusão surge imediata: «L`anti-sémitisme ne rentre pas dans la catégorie de pensées que protège le Droit de libre opinion» (9).
Note-se que não se alude à supressão da totalidade dos direitos, pois que, a seguir à expressão «supprimer leurs droits», vem «ou à les exterminer». Donde se vê que, no primeiro caso, sempre resta o direito à vida. Assim Sartre, ao falar em suprimir os direitos de pessoas particulares, pensa na eliminação de alguns direitos não é de todos. O que o indigna aí é que uma certa espécie concreta de indivíduos, caracterizados rácica e hereditariamente, sejam alvo de uma discriminação, quando a única discriminação que admite é aquela que se dirija a categorias abstractas e impessoais. Em todo o caso, Jean Paul Sartre nunca protestou por os cidadãos alemães residentes em França não possuírem o direito de ser deputados nem o de ascender à Presidência da República. Trata-se, aqui, de uma atitude que visa «des personnes particulières», tendendo a suprimir-lhes direitos. Os alemães são definidos por uma hereditariedade, um local de nascimento, constituem um conjunto palpável de homens. Não representam um ente esquemático, tipicizado, tão só, pelo seus factos ou funções. E sobre os alemães tomba em França uma odiosa discriminação. Que pena Sartre não se ter apercebido dela e iniciado uma humanitária e forte campanha de emancipação! Que pena não ter eliminado da categoria de pensamentos protegidos pelo direito de livre opinião a defesa das desigualdades que impendem em França entre os naturais do país e os estrangeiros do Além-Reno.
Escusado acrescentar que o presente livro possui de qualquer coisa de bom. Na página 47 lê-se: «Si Céline a pu soutenir les thèses socialistes des nazis c`est qu`il était payé». Esta bela infâmia originou uma admirável e sangrenta diatribe do romancista de "Voyage au bout de la Nuit" (publicada por Albert Paraz no seu «Gala des Vaches») que colou a Sartre, definitivamente e a justo título, o excelente sobriquete de Ténia. Eis, enfim, que algo de positivo se ficou a dever às "Réflexions sur la question juive".
Salientemos, a concluir, que Ténia-Sartre identifica o judeu como o missionário da universalidade racional, etc., etc., descobrindo-lhe uma imensa série dos mais elevados atributos morais. De forma que podemos sintetizar o pensamento sartriano com a frase do grande e saudoso P. A. Cousteau: «para Sartre os judeus não existem mas esses homens que não existem são, no entanto, superiores a quaisquer outros».
António José de Brito
Notas:
1 — J. P. Sartre, Réflexions sur la question juive, págs. 83-84.
2 — Idem, pág. 81.
3 — J. P. Sartre, Réflexions citadas, págs. 28-29.
4 — Charles Maurras, La Politique Réligieuse, págs. 388-392; Réflexions sur la Révolution de 1789, págs. 7-8.
5 — J. P. Sartre, Réflexions, cit., 53.
6 — Idem, pág. 27.
7 — Charles Maurras, L`Avenir de l`Intelligence, pág. 12.
8 — J. P. Sartre, Réflexions cit., 10.
9 — Idem, idem.
(In «Agora», n.º 343, 10.02.1968., pág. 10.)
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INTOXICAÇÃO DO POVO
O número de livros, opúsculos, artigos sobre os acontecimentos do nosso tempo é, praticamente, incontável. E, salvo raras excepções, impera nesses trabalhos a maior falta de escrúpulos unida ao consabido princípio de que em relação à memória dos vencidos tudo é permitido e lícito.
Uma editorial, sempre preocupada em trazer o público português a par das calúnias despejadas no estrangeiro sobre o Nacional-Socialismo, fez traduzir e publicou, recentissimamente, um curioso volume intitulado "A Segunda Guerra Mundial", da autoria de um professor da Universidade de Lyon, o Sr. André Latreille. Este historiador, com todas as suas responsabilidades docentes, não hesita em escrever, por exemplo, isto: «Conhecemos, hoje, o plano de acção de Hitler pelo acordo secreto firmado com os chefes de Estado-Maior na Chancelaria do Reich a 10 de Novembro de 1937.» É simplesmente prodigioso! Foi em 5 de Novembro de 1937 que se celebrou na Chancelaria uma reunião, presidida pelo Führer, de altas personalidades militares e também civis (von Neurath, v.g.). Durante o processo de Nuremberga, a acusação exibiu um documento, datado de 10 de Novembro, que pretendia fosse a acta daquela reunião e que constava de um discurso de Adolf Hitler, seguido de um ou outro comentário dos circunstantes. Essa pretensa acta exibia a assinatura de um dos oficiais presentes, o coronel Hossbach, e daí que passasse a ser conhecida pela denominação de protocolo de Hossbach. Nunca representou um acordo de espécie nenhuma, a não ser na imaginação delirante do Sr. André Latreille. É assim que se ensina e escreve a História, em França, na Universidade de Lyon. Não vão nada mal!
Seja-nos permitida uma observação marginal acerca do citado protocolo de Hossbach. Que, em Nuremberga, um Tribunal, composto por representantes das potências vitoriosas e destinado a julgar os inimigos da véspera, o tenha dado por autêntico, não nos admira nem espanta. O que nos admira e espanta é que lhe dê crédito um escritor de boa fé, como Benoist-Méchin, na sua "Histoire de l`Armée Allemande", e, ainda para mais, socorrendo-se de argumentos assaz estranhos.
Em "As grandes controvérsias da História Contemporânea", do insuspeito anti-fascista, Sr. Jacques de Launay, deparamos com esta esclarecedora passagem: «Interrogámos o coronel Hossbach..., que nos deu as indicações seguintes: Não redigi nenhum processo verbal durante a entrevista que se realizou na Chancelaria do Reich em 5 de Novembro de 1937, mas fiz posteriormente um relato dessa entrevista num exemplar manuscrito datado de 10 de Novembro de 1937... O meu relato manuscrito original que nunca mais vi... não era... um relato literal das declarações de Hitler... O documento geralmente conhecido, cópia passada à máquina do meu relato original... apresentada no Tribunal Internacional de Nuremberga constitui uma prova?... não posso afirmar com certeza se o documento é uma reprodução absolutamente exacta e literal do meu relato original... Hitler... estava realmente decidido em 5 de Novembro... a correr o risco de uma guerra?... A resposta a esta pergunta há-de ocupar, sem dúvida, ainda por muito tempo, os historiadores e os psicólogos.»
Comecemos por frisar ter sido Hossbach um anti-nazi destacado. Ele alude, com efeito, nas declarações de que transcrevemos excertos, ao «general Beck ... de quem ... era colaborador íntimo». Ora Beck, um dos traidores que participaram na conjura e no atentado de 20 de Julho de 1944 contra a vida do Führer, desde o início tomara posição de primeira linha entre os inimigos do III Reich. Hossbach, seu íntimo colaborador, abundava nas mesmas ideias.
Pois bem! Apesar do seu anti-nazismo, Hossbach não tem coragem para garantir, na qualidade de ouvinte do discurso de Hitler de 5 de Novembro, que este manifestara um intuito firme de recorrer à guerra —, primeiro ponto. Segundo ponto: o relato de Hossbach, confessadamente, não é um relato integral e literal das asserções do Führer. Terceiro ponto: foi escrito de memória, cinco dias depois, e por um adversário. Quarto ponto: Hossbach nem sequer assegura que o documento de Nuremberga constitua a reprodução absolutamente exacta do seu relato original; se o último, pelas razões apontadas, merece ser encarado com suspeita, que dizer de um texto que nem se sabe se é posterior à reunião de 5 de Novembro) do amigo do general Beck?
Tudo leva, portanto, a pôr radicalmente em dúvida o chamado protocolo de Hossbach. Benoist-Méchin, no entanto, procede de outro modo. E tenta até utilizar respostas de Goering, no decorrer do seu interrogatório, em Nuremberga, em favor da autenticidade do referido protocolo. Aqui entramos no domínio do incompreensível. Efectivamente o que Hermann Goering disse foi que, no protocolo de Hossbach, havia, a par de verdades, inexactidões flagrantes. Claro! Pode-se não tomar em consideração semelhante testemunho, e, nesse caso, ele não serve para provar a tal autenticidade. Mas, se aceitarmos o testemunho, é impossível deixar de concluir pela falsidade do protocolo em questão, o qual, então, ou teria sofrido interpolações ou teria sido redigido de forma deficiente, desde início. Benoist-Méchin, todavia, pessoa inteligente, nada facciosa e cujos constantes esforços de objectividade merecem homenagens, extrai do depoimento do desventurado e heróico Feld-Marschall, precisamente, o contrário daquilo que, em boa lógica, se deve inferir. Vá-se lá descobrir porquê! Mistério insondável!
Regressemos, porém, ao Sr. Latreille. Sua Excelência refere-se, nestes termos, aos massacres da Libération: «Um pouco por toda a parte... tinha havido execuções sumárias de pessoas acusadas de colaboração, com simulacro de julgamento ou não. O seu número total não deve ter excedido 10.000... Depois, com a instalação dos novos poderes os excessos acabaram por diminuir (e foram, na verdade muito inferiores ao número de 105.000 execuções que mais tarde se anunciou, numa verdadeira lenda negra)». Não está má a lenda negra! Quem assegurou que o número de execuções se elevou a 105.000 não foram detractores do gaullismo e da democracia, foi um elemento destacado dos novos poderes instalados no Governo de França: o socialista Adrien Tixier, ministro do Interior. Adrien Tixier comunicou a aludida cifra de execuções ao coronel Passy — combatente da resistência — que tornou públicas as palavras daquele homem de Estado, sem ser objecto de qualquer desmentido. Aliás, a existência das afirmações de Adrien Tixier nem um germanófobo e anti-hitleriano tão convicto como o Sr. Robert Aron se atreve a negá-la. Na sua "Histoire de la Libération" procura ele mostrar que o depoimento de Tixier pouco vale, mas, nem por sombras, o considera inexistente. Entende o Sr. Robert Aron que, em Fevereiro de 1945 — data em que situa as confidências ao coronel Passy — não havia possibilidade de conseguir ainda estatísticas dignas de fé acerca das execuções sumárias, além disso, não se devia tomar muito a sério o ministro do Interior socialista que era um impulsivo, um homem de boutades. Só é pena que o Sr. Aron antecipe para Fevereiro as conversações com o coronel Passy, que tiveram lugar meses depois, e que não nos informe se este último não era senão um tonto, capaz de dar importância a boutades, ou, também, por coincidência, um impulsivo dado a fantasias.
De qualquer forma, o Sr. Robert Aron, ao menos, discute o valor das confissões de Adrien Tixier. O Sr. Latreille não. Manhosamente, nem contesta que se tivessem verificado, nem analisa a validade das mesmas. Faz melhor! Não se lhes refere! Some-as, com desembaraço, na caixa do ponto. Em vez de as criticar, oculta-as. E, assim, o número de 105.000 execuções, apresentado por um ministro do Interior, passa a ser função de uma lenda negra. Esplêndido! Parabéns!
Para finalizar ponhamos em destaque uma referência do Sr. Latreille ao Processo de Nuremberga: «A publicação dos debates enche hoje trinta e um volumes, de seiscentas páginas cada.» Sua Excelência não esclarece que há várias edições: uma inglesa, outra francesa, etc. Admitamos conforme é natural que exclusivamente está em causa a versão francesa. Trinta e um volumes, todos de seiscentas páginas! Admirável geometrismo e sentido da igualdade. É pena, contudo, que, empunhando logo o tomo XX, por acaso, ainda nas nossas mãos, vissemos que tem seiscentas oitenta e oito páginas, isto é, quase setecentas.
De certo trata-se, agora, de uma pura questão de pormenor. Simplesmente serve muito bem para evidenciar a disciplina e a precisão do método historiográfico do anti-totalitário profissional Sr. André Latreille. Dá lindos exemplos de rigor científico o egrégio professor.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 320, ano VII, 02.09.1967).
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Uma editorial, sempre preocupada em trazer o público português a par das calúnias despejadas no estrangeiro sobre o Nacional-Socialismo, fez traduzir e publicou, recentissimamente, um curioso volume intitulado "A Segunda Guerra Mundial", da autoria de um professor da Universidade de Lyon, o Sr. André Latreille. Este historiador, com todas as suas responsabilidades docentes, não hesita em escrever, por exemplo, isto: «Conhecemos, hoje, o plano de acção de Hitler pelo acordo secreto firmado com os chefes de Estado-Maior na Chancelaria do Reich a 10 de Novembro de 1937.» É simplesmente prodigioso! Foi em 5 de Novembro de 1937 que se celebrou na Chancelaria uma reunião, presidida pelo Führer, de altas personalidades militares e também civis (von Neurath, v.g.). Durante o processo de Nuremberga, a acusação exibiu um documento, datado de 10 de Novembro, que pretendia fosse a acta daquela reunião e que constava de um discurso de Adolf Hitler, seguido de um ou outro comentário dos circunstantes. Essa pretensa acta exibia a assinatura de um dos oficiais presentes, o coronel Hossbach, e daí que passasse a ser conhecida pela denominação de protocolo de Hossbach. Nunca representou um acordo de espécie nenhuma, a não ser na imaginação delirante do Sr. André Latreille. É assim que se ensina e escreve a História, em França, na Universidade de Lyon. Não vão nada mal!
Seja-nos permitida uma observação marginal acerca do citado protocolo de Hossbach. Que, em Nuremberga, um Tribunal, composto por representantes das potências vitoriosas e destinado a julgar os inimigos da véspera, o tenha dado por autêntico, não nos admira nem espanta. O que nos admira e espanta é que lhe dê crédito um escritor de boa fé, como Benoist-Méchin, na sua "Histoire de l`Armée Allemande", e, ainda para mais, socorrendo-se de argumentos assaz estranhos.
Em "As grandes controvérsias da História Contemporânea", do insuspeito anti-fascista, Sr. Jacques de Launay, deparamos com esta esclarecedora passagem: «Interrogámos o coronel Hossbach..., que nos deu as indicações seguintes: Não redigi nenhum processo verbal durante a entrevista que se realizou na Chancelaria do Reich em 5 de Novembro de 1937, mas fiz posteriormente um relato dessa entrevista num exemplar manuscrito datado de 10 de Novembro de 1937... O meu relato manuscrito original que nunca mais vi... não era... um relato literal das declarações de Hitler... O documento geralmente conhecido, cópia passada à máquina do meu relato original... apresentada no Tribunal Internacional de Nuremberga constitui uma prova?... não posso afirmar com certeza se o documento é uma reprodução absolutamente exacta e literal do meu relato original... Hitler... estava realmente decidido em 5 de Novembro... a correr o risco de uma guerra?... A resposta a esta pergunta há-de ocupar, sem dúvida, ainda por muito tempo, os historiadores e os psicólogos.»
Comecemos por frisar ter sido Hossbach um anti-nazi destacado. Ele alude, com efeito, nas declarações de que transcrevemos excertos, ao «general Beck ... de quem ... era colaborador íntimo». Ora Beck, um dos traidores que participaram na conjura e no atentado de 20 de Julho de 1944 contra a vida do Führer, desde o início tomara posição de primeira linha entre os inimigos do III Reich. Hossbach, seu íntimo colaborador, abundava nas mesmas ideias.
Pois bem! Apesar do seu anti-nazismo, Hossbach não tem coragem para garantir, na qualidade de ouvinte do discurso de Hitler de 5 de Novembro, que este manifestara um intuito firme de recorrer à guerra —, primeiro ponto. Segundo ponto: o relato de Hossbach, confessadamente, não é um relato integral e literal das asserções do Führer. Terceiro ponto: foi escrito de memória, cinco dias depois, e por um adversário. Quarto ponto: Hossbach nem sequer assegura que o documento de Nuremberga constitua a reprodução absolutamente exacta do seu relato original; se o último, pelas razões apontadas, merece ser encarado com suspeita, que dizer de um texto que nem se sabe se é posterior à reunião de 5 de Novembro) do amigo do general Beck?
Tudo leva, portanto, a pôr radicalmente em dúvida o chamado protocolo de Hossbach. Benoist-Méchin, no entanto, procede de outro modo. E tenta até utilizar respostas de Goering, no decorrer do seu interrogatório, em Nuremberga, em favor da autenticidade do referido protocolo. Aqui entramos no domínio do incompreensível. Efectivamente o que Hermann Goering disse foi que, no protocolo de Hossbach, havia, a par de verdades, inexactidões flagrantes. Claro! Pode-se não tomar em consideração semelhante testemunho, e, nesse caso, ele não serve para provar a tal autenticidade. Mas, se aceitarmos o testemunho, é impossível deixar de concluir pela falsidade do protocolo em questão, o qual, então, ou teria sofrido interpolações ou teria sido redigido de forma deficiente, desde início. Benoist-Méchin, todavia, pessoa inteligente, nada facciosa e cujos constantes esforços de objectividade merecem homenagens, extrai do depoimento do desventurado e heróico Feld-Marschall, precisamente, o contrário daquilo que, em boa lógica, se deve inferir. Vá-se lá descobrir porquê! Mistério insondável!
Regressemos, porém, ao Sr. Latreille. Sua Excelência refere-se, nestes termos, aos massacres da Libération: «Um pouco por toda a parte... tinha havido execuções sumárias de pessoas acusadas de colaboração, com simulacro de julgamento ou não. O seu número total não deve ter excedido 10.000... Depois, com a instalação dos novos poderes os excessos acabaram por diminuir (e foram, na verdade muito inferiores ao número de 105.000 execuções que mais tarde se anunciou, numa verdadeira lenda negra)». Não está má a lenda negra! Quem assegurou que o número de execuções se elevou a 105.000 não foram detractores do gaullismo e da democracia, foi um elemento destacado dos novos poderes instalados no Governo de França: o socialista Adrien Tixier, ministro do Interior. Adrien Tixier comunicou a aludida cifra de execuções ao coronel Passy — combatente da resistência — que tornou públicas as palavras daquele homem de Estado, sem ser objecto de qualquer desmentido. Aliás, a existência das afirmações de Adrien Tixier nem um germanófobo e anti-hitleriano tão convicto como o Sr. Robert Aron se atreve a negá-la. Na sua "Histoire de la Libération" procura ele mostrar que o depoimento de Tixier pouco vale, mas, nem por sombras, o considera inexistente. Entende o Sr. Robert Aron que, em Fevereiro de 1945 — data em que situa as confidências ao coronel Passy — não havia possibilidade de conseguir ainda estatísticas dignas de fé acerca das execuções sumárias, além disso, não se devia tomar muito a sério o ministro do Interior socialista que era um impulsivo, um homem de boutades. Só é pena que o Sr. Aron antecipe para Fevereiro as conversações com o coronel Passy, que tiveram lugar meses depois, e que não nos informe se este último não era senão um tonto, capaz de dar importância a boutades, ou, também, por coincidência, um impulsivo dado a fantasias.
De qualquer forma, o Sr. Robert Aron, ao menos, discute o valor das confissões de Adrien Tixier. O Sr. Latreille não. Manhosamente, nem contesta que se tivessem verificado, nem analisa a validade das mesmas. Faz melhor! Não se lhes refere! Some-as, com desembaraço, na caixa do ponto. Em vez de as criticar, oculta-as. E, assim, o número de 105.000 execuções, apresentado por um ministro do Interior, passa a ser função de uma lenda negra. Esplêndido! Parabéns!
Para finalizar ponhamos em destaque uma referência do Sr. Latreille ao Processo de Nuremberga: «A publicação dos debates enche hoje trinta e um volumes, de seiscentas páginas cada.» Sua Excelência não esclarece que há várias edições: uma inglesa, outra francesa, etc. Admitamos conforme é natural que exclusivamente está em causa a versão francesa. Trinta e um volumes, todos de seiscentas páginas! Admirável geometrismo e sentido da igualdade. É pena, contudo, que, empunhando logo o tomo XX, por acaso, ainda nas nossas mãos, vissemos que tem seiscentas oitenta e oito páginas, isto é, quase setecentas.
De certo trata-se, agora, de uma pura questão de pormenor. Simplesmente serve muito bem para evidenciar a disciplina e a precisão do método historiográfico do anti-totalitário profissional Sr. André Latreille. Dá lindos exemplos de rigor científico o egrégio professor.
António José de Brito
(In «Agora», n.º 320, ano VII, 02.09.1967).
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quarta-feira, dezembro 29, 2004
A INTRANSIGÊNCIA DE ALFREDO PIMENTA
É curioso notar que Alfredo Pimenta, confessando-se abertamente um relativista, um céptico, não deixava, contudo, de ser um defensor denodado e franco da intransigência e da intolerância doutrinárias...
À primeira vista parece que nos encontramos face a uma contradição imediata e insanável. Pois, com efeito, um relativista, um céptico, pode acaso considerar verdadeira uma qualquer tese, uma qualquer teoria? Claro que não. E nessa altura como aceitar que uma tese, uma teoria, não tolere as outras teses e teorias e as procure submeter a si?
Equivalendo-se todas do ponto de vista da verdade, em nome de quê terá uma delas direito a asseverar a sua superioridade e a banir as outras? Em que é que se poderá fundamentar tão insólita pretensão?
Alfredo Pimenta tinha plena consciência da validez destes raciocínios, por isso mesmo entendia que o céptico autêntico só conhece a indiferença perante a luta das ideias, a dúvida integral, a abstenção.
Ele ensinava sem equívocos: «O céptico porque o é, não é portador de nenhuma verdade — porque o céptico autêntico duvida, abstém-se» (1).
Simplesmente, no seu entender, a existência, a vida, não eram cepticismo, abstenção eram actividade, decisão volitiva (2). Ora falar em actividade, em decisão volitiva, para Alfredo Pimenta, equivalia a falar, também, em escolha de certas concepções, em opção por certas crenças, uma vez que não concebia uma vontade e uma acção cegas, que não fossem iluminadas por noções suas, pelas convicções e ideologias que afirmassem.
Distinguindo entre o plano teorético e especulativo e o plano vital, existencial, activo, Alfredo Pimenta, considerando-se um relativista e um céptico (numa perspectiva gnoseológica, metafísica, cognoscitiva), não deixava de proclamar indispensável e imprescindível a adopção de concepções do mundo, de doutrinas, do ponto de vista existencial, da prática. Ele, efectivamente, não separava a praxis do pensamento (embora separasse o pensamento puro da praxis) sendo lícito até sustentar que, na sua opinião, a praxis era ainda pensamento, afirmação de ideias, de Weltanschauung, mas com inteira abstracção da sua validez intrínseca, da sua verdade em si.
Contudo, na medida em que a praxis, a acção, numa palavra, a vida, se constituiam através da afirmação de ideias, de concepções do mundo, a intransigência e a intolerância tornavam-se, segundo Alfredo Pimenta, valores primordiais e decisivos.
É que, para ele, afirmar uma ideia, uma verdade, e admitir as ideias e verdades opostas significava aceitar a destruição da ideia e verdade afirmada e, por consequência, nada afirmar a sério, regressar à apatia e abulia cépticas de que importava fugir. «O portador de uma ideia que reconhece ao portador da Ideia contrária o mesmo direito que reclama para si é insensato ou comediante... Não há duas verdades contrárias... Tenho ensinado mais de uma vez que todas as ideias são totalitárias, exclusivistas. O princípio liberal que todas as opiniões são legítimas é uma camuflagem reles que só convence os tolos» (3).
É patente a justeza destas considerações de Alfredo Pimenta. As ideias são, realmente, totalitárias, exclusivistas. Não só se auto-aniquilam aquelas que admitirem a licitude das que directamente as contradigam, mas também qualquer ideia exige a subordinação a si das ideias meramente diferentes, porquanto se estas últimas se encontrarem em esfera que a primeira não possa penetrar e orientar é ela dominada pela ideia que estabelece o critério de tal proibição — e uma ideia dominada por outra é, em rigor, afirmada pela outra, logo negada como afirmação específica, regressando-se à absurda admissão simultânea de uma ideia e da sua negação.
Do carácter totalitário e exclusivista das ideias deriva como corolário inflexível a índole radicalmente inaceitável e ilógica do ideal de tolerância. O partidário de uma verdade que admite direitos iguais às restantes verdades não passa, de facto, ou de um insensato que estabelece o aniquilamento do que defende, ou de um comediante que deseja, também, impor a sua verdade — embora garantindo que não senhor, nem por sombras pretende isso —, a qual é, precisamente, a tese de que todas as verdades são lícitas e devem coexistir.
A tolerância ou se auto-destrói na medida em que admite a legitimidade da concepção oposta — a intolerância — ou se auto-destrói na medida em que põe qual regra categórica, repelindo e afastando tudo quanto a ameace, transformando-se assim em intolerância e dogmatismo, no mais insubsistente dos dogmatismos porque o dogmatismo do anti-dogmatismo.
Alfredo Pimenta repudiava, desse modo, a tolerância por insustentável, suicida. A tolerância, porém, era a doutrina da pretensa conivência de ideias divergentes, a doutrina dos pluralismos ideológicos e, até, dos partidarismos, resultado inevitável de semelhantes pluralismos.
Alfredo Pimenta contrapondo-se-lhe diametralmente, exigia com funda coerência, em nome da vida, a unidade — antítese do pluralismo — a unidade ideológica, identificada com as próprias praxis e vice-versa.
E partindo dessa exigência de unidade, procurava estruturar uma ordenação que lhe fosse adequada, recorrendo na sua construção, acima de tudo, à experiência histórica, prática (não à experiência conhecimento) mas sem deixar de se socorrer da reflexão e uma razão guiadas, porém, de maneira pragmática e não cognoscitiva.
Por tal forma, foi surgindo, de novo, um sistema sui generis, um conjunto de noções, conceitos e imperativos básicos que, para Alfredo Pimenta, eram a expressão mesma da vida, da acção fecunda (conquanto sem pretensões a valerem naquilo que ele desdenhosamente chamava «o mundo das transcendências» (4), sendo consequentemente padrão de escolha das restantes certezas do vasto domínio do pensar a que a praxis não podia alhear-se.
Formulando de forma clara o seu intuito principal: «substituir a pluralidade revolucionária pela unidade tradicional» (5), Alfredo Pimenta expunha, apoiando-se na história iluminada por uma inteligência existencialmente reflexiva, as verdades que constituiam a vida, a própria existência, «verdades naturais» (6), concretas, distintas e alheias às verdades do saber contemplativo.
Essas verdades naturais — por exemplo, as ideias do governo hereditário de um só ou Monarquia, da necessidade de direcção do pensamento para fixar as concepções colectivamente úteis, de respeito pelo passado no que tem de positivo, das virtudes da desigualdade e da hierarquia, dos malefícios do sufrágio universal e da liberdade de expressão, — representavam já, por assim dizer, uma teoria, uma filosofia (e Alfredo Pimenta empregava por vezes tais termos) no sentido mais lato e menos rigoroso desses vocábulos. Melhor será classificá-las, todavia, através, das palavras doutrina ou Weltanschauung ordenadoras e balizadoras de convicções e opiniões subsequentes.
As grandes linhas dessa Weltanschauung ou doutrina soube sempre Alfredo Pimenta indicá-las em traços de rara impressividade sintética, expô-las com clareza, acuidade, precisão e eloquência singulares.
Em 1941 na admirável conferência «Palavras à Juventude» (meses depois publicada e que tive a honra de escutar aos treze anos de idade), ele apontou, penetrantemente, as divisórias capitais do universo ideológico nosso contemporâneo.
«Duas grandes correntes doutrinárias ou filosóficas presidem à elaboração do mundo de amanhã. Uma que continua a Revolução Francesa, extraindo dos dogmas desta tudo quanto neles se contém, aberta ou ocultamente, chama-se Comunismo ou Democracia... À filosofia comunista ou democrática representada hoje na Europa pela Rússia e pela Inglaterra e na América pelos Estados Unidos opõe-se o autoritarismo totalitário representado na Europa superiormente pela Alemanha hitleriana e pela Itália... de Mussolini.
Traduz esta filosofia a reacção contra-revolucionária, anti-democrática, anti-liberal, anti-parlamentar, em suma, anti-comunista.
Essa reacção assume em cada um dos países que a representam aspectos especiais próprios dos seus feitios e das suas posições no mundo.
Mas há qualquer coisa de comum e é esse fundo comum que é preciso salvar. Como em todas as filosofias há na reacção anti-democrática a que chamo autoritarismo totalitário, uma parte negativa e uma parte positiva. A primeira está clara e está patente aos olhos de todos: repúdio de todas as instituições de origem democrática ou liberais. A parte positiva, a das realizações ou soluções realistas dos múltiplos problemas da vida é constituída por tentativas que as necessidades das realidades modificam, corrigem, ampliam ou consolidam. A Ordem Nova que se preconiza é ainda qualquer coisa de informe nos seus pormenores. E neste período de combate, vivido entre ataques e contra-ataques, não se pode exigir mais, não se deve exigir mais. Mas à Mocidade, em cujas raízes está o futuro, cumpre ocupar o seu lugar entre os combatentes da Contra-Revolução porque são estes os encarregados de reparar a acção destruidora da Revolução Democrática» (7).
Sublinhe-se que Alfredo Pimenta não era, de forma nenhuma, seduzido pelo espírito divisionista de alguns que não fazem outra coisa senão fulminar excomunhões sobre movimentos afins e descobrir pretextos pseudo-doutrinários para divisórias e distinções secessionistas. Por isso, ele não deixava de incluir a Action Française no vasto campo do autoritarismo totalitário afirmando: «a... justiça popular deitou a mão a Charles Maurras como se fosse malfeitor da pior espécie, deu-lhe por morada a cela de prisioneiro perpétuo, degredando-o, isto é, condenando-o à indignidade nacional!
Absurdo pungente à primeira vista. Engano: foi lógica, foi natural, foi coerente a justiça popular francesa. Não foi o maurrasismo que venceu, foi a Democracia. E por muito que digam, por muito que sofismem a verdade indiscutível é esta: o maurrasismo está muito mais próximo do Nacional-Socialismo ou do Feixismo do que da Democracia e do Comunismo» (8).
Germanófilo, Alfredo Pimenta não se coibia de admirar Maurras, esse obcecado inimigo da Alemanha; anti-espanhol, isso não o impedia de saudar a ideologia vitoriosa ao fim de três anos de batalhas e pela qual tinham dado a sua vida «os melhores filhos de Espanha» (9).
Para ele a grande fraternidade da luta por uma Weltanschauung anti-democrática e anti-liberal sobrelevava tudo. Em contrapartida, aos trânsfugas, aos traidores é que não sabia perdoar. Quando surgia algum desvio de doutrina de um ex-correligionário, algum retrocesso vergonhoso, alguma abdicação face ao inimigo, corria imediatamente a denunciá-la, com severidade, chamando a atenção dos incautos para a trajectória do renegado.
Alfredo Pimenta foi um eterno desmancha-prazeres para as capelinhas que da extrema-direita deslizam para as liberalizações, para o culto dos direitos do homem, proclamando, sem pudor, um falso apego ao seu passado, e cultivando o elogio mútuo, sejam quais forem as evoluções — deliberadamente ocultadas, na maior parte dos casos — dos seus diversos componentes e elementos. Por defender, assim, a ortodoxia ideológica sem olhar a pessoas, classificaram-no como factor de divisão uns tantos (ou uns tontos), capazes de recusarem a sua solidariedade a um real e efectivo combate anti-democrático e anti-comunista pela ponderosa razão que assumia aí excessivo relevo a participação de forças ou de origem germânica, ou hitita, ou celta ou turca, ou o que quiserem.
Uma maravilha!
Por quanto expusemos vê-se, com clareza, que a concepção de Alfredo Pimenta, baseando-se num desenvolvimento rigoroso do postulado da unidade e do repúdio do pluralismo e da tolerância, não podia deixar de conter uma consciente apologia da intolerância e da intransigência legítima, quer dizer, postas ao serviço do que é benéfico e sadio.
Sem o reconhecimento do valor da intransigência e da intolerância a doutrina de Alfredo Pimenta negar-se-ia a si própria, pois teria de admitir a licitude das cisões, das separações, das oposições ideológicas cujo banimento é da sua própria essência. Considerando as suas ideias capitais, a manifestação mesma da vida e não ignorando que toda a relatividade, toda a concessão as comprometeriam, porque «toda a relatividade é uma diminuição do ser» (10), Alfredo Pimenta teorizou (na sua perspectiva prática), de modo especial, a intolerância e a intransigência, traçando estas belas linhas:
«A Intransigência, o Fanatismo, a Intolerância são símbolos de Fé, são as alavancas mais poderosas da Acção. Os transigentes, os tolerantes, os indiferentes são lesmas e cobardes, destinados ao desprezo ou às piores violências dos adversários fanáticos, intolerantes e intransigentes.
Intransigência, Intolerância e Fanatismo são termos pejorativos dum sentimento sagrado que se chama — a fé.
Há o Fanatismo, a Intolerância, a Intransigência da Virtude e da Verdade, como há o Fanatismo, a Intolerância, a Intransigência do Crime e da Mentira.
Só é fanático, intolerante e intransigente que está convencido que é portador da Verdade. A tolerância, a transigência, a indiferença são estados próprios de quem duvida, hesita e não se sente muito seguro da posição que ocupa.
Na luta entre o Bem e o Mal, entre a Santidade e o Pecado, entre Deus e Satã, não pode haver tolerância, transigência e indiferença, porque a sua presença só traz prejuízos para o Bem, para a Santidade e para Deus e vantagens para o Mal, o Pecado e Satã.
Porque foi fanática, intolerante, intransigente a Revolução conquistou o mundo depois de ter mergulhado a França em Atlânticos de sangue. Porque é fanático, intolerante, intransigente o Comunismo está aí a governar o Mundo...
Porque foram fanáticas, intolerantes, intransigentes as Democracias ganharam a guerra. Porque não foi suficientemente fanático, intransigente e intolerante o Eixo, poupando a França, poupando os países ocupados — perdeu a guerra. Porque se não têm revelado fanáticas, intransigentes e intolerantes as Democracias ocidentais estão a ser vencidas pela Democracia oriental russa.
O Fanatismo, a intolerância e a intransigência postas ao serviço da Verdade, da Virtude, do Bem e da Honra levam ao Heroísmo; postas ao serviço da Mentira, do Pecado, do Mal e da Cobardia levam ao Crime. Jeanne d`Arc e Robespierre; D. Sebastião e Marat; S. João de Brito e Estaline; Silva Porto e Buiça...
Têm-me acusado muitas vezes de fanático, intolerante e intransigente. Sou-o quanto pode sê-lo quem vive num século desvirilizado, essencialmente burguês, materialista e céptico, e percorreu as sete partidas do mundo da cultura à procura da verdade nova, para só encontrar verdades falsas, à busca desinteressada do Sol e só encontrou crepúsculos frios. Quando voltei, desiludido, à minha tenda levantada no meio do tumulto, verifiquei que a única solução acessível às minhas inquietações e angústias era a tradição. E regressei à secular tradição portuguesa — a Deus, à Pátria e ao Rei.
E sou fanático, intransigente e intolerante em defesa de Deus, da Pátria e do Rei, até mesmo contra os que falam em Deus desservindo-o, ou falam na Pátria traindo-a, ou falam no Rei deformando-o» (11).
Numa época dominada pelo culto do diálogo, da liberdade, da convivência, Alfredo Pimenta teve a coragem extrema de proceder ao elogio da intransigência e da intolerância. Sem dúvida os dialogantes, os conviventes, os liberais, perante o inaudito fenómeno, bramiram, imediatamente, as suas maldições, aquelas maldições habituais com que os entusiastas da tolerância têm por hábito mimosear os que não pensam como eles acerca da santidade dos seus princípios. Isso só prova, no entanto, que Alfredo Pimenta estava na razão. Pois não é exacto que a intransigência é tão vitalmente indispensável que os que elevam a tolerância a ideal se vêem forçados, também, com o mais flagrante ilogismo, a ser intransigentes contra os que se recusam a aceitar a religião da tolerância e a hostilizam?
Nós vivemos num tempo em que só se ouve falar em compreensão pelos adversários, respeito mútuo e tudo o mais, mas onde os que não acatam tais valores (ou melhor pseudo-valores) são monteados, caçados, enforcados (em Nuremberg), fuzilados (em Montrouge, v.g.), abatidos e pendurados pelos pés (na bela Itália), torturados, caluniados, difamados. O fascista, porque recusa a curvar-se à deusa tolerância, é alvo da execração geral, é perseguido até à morte, encarcerado, combatido de armas na mão.
Em meio da universal confusão em que reinam os hipócritas, os videirinhos ou os iludidos, Alfredo Pimenta confessou-se, desassombradamente, intolerante e intransigente, e, através de uma existência de inconformista, amargurada e ameaçada, pôs sempre de acordo os seus actos com as suas palavras. Rodeado de inimigos por todos os lados, hostilizado, atacado, e censurado como perigoso nunca preferiu torcer a quebrar.
Entusiasta dos mártires e heróis que, de 1939 a 1945, tombaram vencidos, mas não desonrados, numa conflagração titânica, Alfredo Pimenta foi, ele também, um herói, no plano moral, sacrificando-se, sem transigir, pelas suas convicções, sem as saber temperar por conveniência ou, habilmente, abrandar por interesse. Ele ignorava o que era pactuar, fugir, renunciar, abdicar quando estava em jogo o essencial. E jamais tolerou, passiva e liberalmente, que fosse ofendida a verdade (prática) sem que acorresse a terreiro para defender, por entre golpes, traições, navalhadas de saracoteadores de ponta e mola.
A sua figura agiganta-se no cinzento Portugal do após-guerra por entre um panorama de transigências doutrinárias que hoje atingiram o zénite.
É com profundo respeito que evocamos o seu nome, mas perante ele experimentamos sobretudo a mais pungente das saudades e amarga sensação de um vazio insubstituível.
António José de Brito
Notas:
1 — Monárquicos sem Doutrina, in «A Nação», de 9 de Agosto de 1947, n.º 77.
2 — «Eu, como céptico, vejo, indiferente, passar em tumulto as Hipóteses, as Doutrinas, as Escolas... Mas a vida não é cepticismo: é Acção e a Acção implica o estímulo da Fé. É portanto indispensável que haja uma verdade — artificial, convencional. Como uma verdade é exclusiva não posso criar a minha verdade levado por um solipsismo impertinente». In Novos Estudos Filosóficos e Críticos, pág. 77.
Esclareça-se que, pela nossa parte, não concordamos com nenhuma espécie de cepticismo; logo parece-nos imperfeita a maneira como Alfredo Pimenta conexiona acção e pensamento. Não deixamos, contudo, de aplaudir o seu esforço de os unificar e estamos seguros da perene validade das suas principais construções ético-políticas.
3 — Monárquicos sem Doutrina cit.
4 — Novos Estudos Filosóficos e Críticos, pág. 107.
5 — Os Monárquicos e as Eleições, in «A Nação» de 10 de Julho de 1948, n.º 124.
6 — Monárquicos sem Doutrina cit.
7 — Palavras à Juventude, págs. 26 a 31.
8 — Charles Maurras, o maior apologista da Alemanha, in «A Nação» de 10 de Maio de 1947, n.º 64.
9 — Futura Hispaniae, in «A Nação» de 19 de Abril de 1947, n.º 61. A expressão é do Duque de Alcalá e do Marquês de Sotohermosa, mas Alfredo Pimenta citou-a, perfilhando-a.
10 — Contra a Democracia, pág. 15.
11 — As Cartas da Rainha, in «A Nação» de 24 de Janeiro de 1948, n.º 100.
A. J. B.
(In «Política», n.º 21, pág. 5, de 31.10.1970)
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À primeira vista parece que nos encontramos face a uma contradição imediata e insanável. Pois, com efeito, um relativista, um céptico, pode acaso considerar verdadeira uma qualquer tese, uma qualquer teoria? Claro que não. E nessa altura como aceitar que uma tese, uma teoria, não tolere as outras teses e teorias e as procure submeter a si?
Equivalendo-se todas do ponto de vista da verdade, em nome de quê terá uma delas direito a asseverar a sua superioridade e a banir as outras? Em que é que se poderá fundamentar tão insólita pretensão?
Alfredo Pimenta tinha plena consciência da validez destes raciocínios, por isso mesmo entendia que o céptico autêntico só conhece a indiferença perante a luta das ideias, a dúvida integral, a abstenção.
Ele ensinava sem equívocos: «O céptico porque o é, não é portador de nenhuma verdade — porque o céptico autêntico duvida, abstém-se» (1).
Simplesmente, no seu entender, a existência, a vida, não eram cepticismo, abstenção eram actividade, decisão volitiva (2). Ora falar em actividade, em decisão volitiva, para Alfredo Pimenta, equivalia a falar, também, em escolha de certas concepções, em opção por certas crenças, uma vez que não concebia uma vontade e uma acção cegas, que não fossem iluminadas por noções suas, pelas convicções e ideologias que afirmassem.
Distinguindo entre o plano teorético e especulativo e o plano vital, existencial, activo, Alfredo Pimenta, considerando-se um relativista e um céptico (numa perspectiva gnoseológica, metafísica, cognoscitiva), não deixava de proclamar indispensável e imprescindível a adopção de concepções do mundo, de doutrinas, do ponto de vista existencial, da prática. Ele, efectivamente, não separava a praxis do pensamento (embora separasse o pensamento puro da praxis) sendo lícito até sustentar que, na sua opinião, a praxis era ainda pensamento, afirmação de ideias, de Weltanschauung, mas com inteira abstracção da sua validez intrínseca, da sua verdade em si.
Contudo, na medida em que a praxis, a acção, numa palavra, a vida, se constituiam através da afirmação de ideias, de concepções do mundo, a intransigência e a intolerância tornavam-se, segundo Alfredo Pimenta, valores primordiais e decisivos.
É que, para ele, afirmar uma ideia, uma verdade, e admitir as ideias e verdades opostas significava aceitar a destruição da ideia e verdade afirmada e, por consequência, nada afirmar a sério, regressar à apatia e abulia cépticas de que importava fugir. «O portador de uma ideia que reconhece ao portador da Ideia contrária o mesmo direito que reclama para si é insensato ou comediante... Não há duas verdades contrárias... Tenho ensinado mais de uma vez que todas as ideias são totalitárias, exclusivistas. O princípio liberal que todas as opiniões são legítimas é uma camuflagem reles que só convence os tolos» (3).
É patente a justeza destas considerações de Alfredo Pimenta. As ideias são, realmente, totalitárias, exclusivistas. Não só se auto-aniquilam aquelas que admitirem a licitude das que directamente as contradigam, mas também qualquer ideia exige a subordinação a si das ideias meramente diferentes, porquanto se estas últimas se encontrarem em esfera que a primeira não possa penetrar e orientar é ela dominada pela ideia que estabelece o critério de tal proibição — e uma ideia dominada por outra é, em rigor, afirmada pela outra, logo negada como afirmação específica, regressando-se à absurda admissão simultânea de uma ideia e da sua negação.
Do carácter totalitário e exclusivista das ideias deriva como corolário inflexível a índole radicalmente inaceitável e ilógica do ideal de tolerância. O partidário de uma verdade que admite direitos iguais às restantes verdades não passa, de facto, ou de um insensato que estabelece o aniquilamento do que defende, ou de um comediante que deseja, também, impor a sua verdade — embora garantindo que não senhor, nem por sombras pretende isso —, a qual é, precisamente, a tese de que todas as verdades são lícitas e devem coexistir.
A tolerância ou se auto-destrói na medida em que admite a legitimidade da concepção oposta — a intolerância — ou se auto-destrói na medida em que põe qual regra categórica, repelindo e afastando tudo quanto a ameace, transformando-se assim em intolerância e dogmatismo, no mais insubsistente dos dogmatismos porque o dogmatismo do anti-dogmatismo.
Alfredo Pimenta repudiava, desse modo, a tolerância por insustentável, suicida. A tolerância, porém, era a doutrina da pretensa conivência de ideias divergentes, a doutrina dos pluralismos ideológicos e, até, dos partidarismos, resultado inevitável de semelhantes pluralismos.
Alfredo Pimenta contrapondo-se-lhe diametralmente, exigia com funda coerência, em nome da vida, a unidade — antítese do pluralismo — a unidade ideológica, identificada com as próprias praxis e vice-versa.
E partindo dessa exigência de unidade, procurava estruturar uma ordenação que lhe fosse adequada, recorrendo na sua construção, acima de tudo, à experiência histórica, prática (não à experiência conhecimento) mas sem deixar de se socorrer da reflexão e uma razão guiadas, porém, de maneira pragmática e não cognoscitiva.
Por tal forma, foi surgindo, de novo, um sistema sui generis, um conjunto de noções, conceitos e imperativos básicos que, para Alfredo Pimenta, eram a expressão mesma da vida, da acção fecunda (conquanto sem pretensões a valerem naquilo que ele desdenhosamente chamava «o mundo das transcendências» (4), sendo consequentemente padrão de escolha das restantes certezas do vasto domínio do pensar a que a praxis não podia alhear-se.
Formulando de forma clara o seu intuito principal: «substituir a pluralidade revolucionária pela unidade tradicional» (5), Alfredo Pimenta expunha, apoiando-se na história iluminada por uma inteligência existencialmente reflexiva, as verdades que constituiam a vida, a própria existência, «verdades naturais» (6), concretas, distintas e alheias às verdades do saber contemplativo.
Essas verdades naturais — por exemplo, as ideias do governo hereditário de um só ou Monarquia, da necessidade de direcção do pensamento para fixar as concepções colectivamente úteis, de respeito pelo passado no que tem de positivo, das virtudes da desigualdade e da hierarquia, dos malefícios do sufrágio universal e da liberdade de expressão, — representavam já, por assim dizer, uma teoria, uma filosofia (e Alfredo Pimenta empregava por vezes tais termos) no sentido mais lato e menos rigoroso desses vocábulos. Melhor será classificá-las, todavia, através, das palavras doutrina ou Weltanschauung ordenadoras e balizadoras de convicções e opiniões subsequentes.
As grandes linhas dessa Weltanschauung ou doutrina soube sempre Alfredo Pimenta indicá-las em traços de rara impressividade sintética, expô-las com clareza, acuidade, precisão e eloquência singulares.
Em 1941 na admirável conferência «Palavras à Juventude» (meses depois publicada e que tive a honra de escutar aos treze anos de idade), ele apontou, penetrantemente, as divisórias capitais do universo ideológico nosso contemporâneo.
«Duas grandes correntes doutrinárias ou filosóficas presidem à elaboração do mundo de amanhã. Uma que continua a Revolução Francesa, extraindo dos dogmas desta tudo quanto neles se contém, aberta ou ocultamente, chama-se Comunismo ou Democracia... À filosofia comunista ou democrática representada hoje na Europa pela Rússia e pela Inglaterra e na América pelos Estados Unidos opõe-se o autoritarismo totalitário representado na Europa superiormente pela Alemanha hitleriana e pela Itália... de Mussolini.
Traduz esta filosofia a reacção contra-revolucionária, anti-democrática, anti-liberal, anti-parlamentar, em suma, anti-comunista.
Essa reacção assume em cada um dos países que a representam aspectos especiais próprios dos seus feitios e das suas posições no mundo.
Mas há qualquer coisa de comum e é esse fundo comum que é preciso salvar. Como em todas as filosofias há na reacção anti-democrática a que chamo autoritarismo totalitário, uma parte negativa e uma parte positiva. A primeira está clara e está patente aos olhos de todos: repúdio de todas as instituições de origem democrática ou liberais. A parte positiva, a das realizações ou soluções realistas dos múltiplos problemas da vida é constituída por tentativas que as necessidades das realidades modificam, corrigem, ampliam ou consolidam. A Ordem Nova que se preconiza é ainda qualquer coisa de informe nos seus pormenores. E neste período de combate, vivido entre ataques e contra-ataques, não se pode exigir mais, não se deve exigir mais. Mas à Mocidade, em cujas raízes está o futuro, cumpre ocupar o seu lugar entre os combatentes da Contra-Revolução porque são estes os encarregados de reparar a acção destruidora da Revolução Democrática» (7).
Sublinhe-se que Alfredo Pimenta não era, de forma nenhuma, seduzido pelo espírito divisionista de alguns que não fazem outra coisa senão fulminar excomunhões sobre movimentos afins e descobrir pretextos pseudo-doutrinários para divisórias e distinções secessionistas. Por isso, ele não deixava de incluir a Action Française no vasto campo do autoritarismo totalitário afirmando: «a... justiça popular deitou a mão a Charles Maurras como se fosse malfeitor da pior espécie, deu-lhe por morada a cela de prisioneiro perpétuo, degredando-o, isto é, condenando-o à indignidade nacional!
Absurdo pungente à primeira vista. Engano: foi lógica, foi natural, foi coerente a justiça popular francesa. Não foi o maurrasismo que venceu, foi a Democracia. E por muito que digam, por muito que sofismem a verdade indiscutível é esta: o maurrasismo está muito mais próximo do Nacional-Socialismo ou do Feixismo do que da Democracia e do Comunismo» (8).
Germanófilo, Alfredo Pimenta não se coibia de admirar Maurras, esse obcecado inimigo da Alemanha; anti-espanhol, isso não o impedia de saudar a ideologia vitoriosa ao fim de três anos de batalhas e pela qual tinham dado a sua vida «os melhores filhos de Espanha» (9).
Para ele a grande fraternidade da luta por uma Weltanschauung anti-democrática e anti-liberal sobrelevava tudo. Em contrapartida, aos trânsfugas, aos traidores é que não sabia perdoar. Quando surgia algum desvio de doutrina de um ex-correligionário, algum retrocesso vergonhoso, alguma abdicação face ao inimigo, corria imediatamente a denunciá-la, com severidade, chamando a atenção dos incautos para a trajectória do renegado.
Alfredo Pimenta foi um eterno desmancha-prazeres para as capelinhas que da extrema-direita deslizam para as liberalizações, para o culto dos direitos do homem, proclamando, sem pudor, um falso apego ao seu passado, e cultivando o elogio mútuo, sejam quais forem as evoluções — deliberadamente ocultadas, na maior parte dos casos — dos seus diversos componentes e elementos. Por defender, assim, a ortodoxia ideológica sem olhar a pessoas, classificaram-no como factor de divisão uns tantos (ou uns tontos), capazes de recusarem a sua solidariedade a um real e efectivo combate anti-democrático e anti-comunista pela ponderosa razão que assumia aí excessivo relevo a participação de forças ou de origem germânica, ou hitita, ou celta ou turca, ou o que quiserem.
Uma maravilha!
Por quanto expusemos vê-se, com clareza, que a concepção de Alfredo Pimenta, baseando-se num desenvolvimento rigoroso do postulado da unidade e do repúdio do pluralismo e da tolerância, não podia deixar de conter uma consciente apologia da intolerância e da intransigência legítima, quer dizer, postas ao serviço do que é benéfico e sadio.
Sem o reconhecimento do valor da intransigência e da intolerância a doutrina de Alfredo Pimenta negar-se-ia a si própria, pois teria de admitir a licitude das cisões, das separações, das oposições ideológicas cujo banimento é da sua própria essência. Considerando as suas ideias capitais, a manifestação mesma da vida e não ignorando que toda a relatividade, toda a concessão as comprometeriam, porque «toda a relatividade é uma diminuição do ser» (10), Alfredo Pimenta teorizou (na sua perspectiva prática), de modo especial, a intolerância e a intransigência, traçando estas belas linhas:
«A Intransigência, o Fanatismo, a Intolerância são símbolos de Fé, são as alavancas mais poderosas da Acção. Os transigentes, os tolerantes, os indiferentes são lesmas e cobardes, destinados ao desprezo ou às piores violências dos adversários fanáticos, intolerantes e intransigentes.
Intransigência, Intolerância e Fanatismo são termos pejorativos dum sentimento sagrado que se chama — a fé.
Há o Fanatismo, a Intolerância, a Intransigência da Virtude e da Verdade, como há o Fanatismo, a Intolerância, a Intransigência do Crime e da Mentira.
Só é fanático, intolerante e intransigente que está convencido que é portador da Verdade. A tolerância, a transigência, a indiferença são estados próprios de quem duvida, hesita e não se sente muito seguro da posição que ocupa.
Na luta entre o Bem e o Mal, entre a Santidade e o Pecado, entre Deus e Satã, não pode haver tolerância, transigência e indiferença, porque a sua presença só traz prejuízos para o Bem, para a Santidade e para Deus e vantagens para o Mal, o Pecado e Satã.
Porque foi fanática, intolerante, intransigente a Revolução conquistou o mundo depois de ter mergulhado a França em Atlânticos de sangue. Porque é fanático, intolerante, intransigente o Comunismo está aí a governar o Mundo...
Porque foram fanáticas, intolerantes, intransigentes as Democracias ganharam a guerra. Porque não foi suficientemente fanático, intransigente e intolerante o Eixo, poupando a França, poupando os países ocupados — perdeu a guerra. Porque se não têm revelado fanáticas, intransigentes e intolerantes as Democracias ocidentais estão a ser vencidas pela Democracia oriental russa.
O Fanatismo, a intolerância e a intransigência postas ao serviço da Verdade, da Virtude, do Bem e da Honra levam ao Heroísmo; postas ao serviço da Mentira, do Pecado, do Mal e da Cobardia levam ao Crime. Jeanne d`Arc e Robespierre; D. Sebastião e Marat; S. João de Brito e Estaline; Silva Porto e Buiça...
Têm-me acusado muitas vezes de fanático, intolerante e intransigente. Sou-o quanto pode sê-lo quem vive num século desvirilizado, essencialmente burguês, materialista e céptico, e percorreu as sete partidas do mundo da cultura à procura da verdade nova, para só encontrar verdades falsas, à busca desinteressada do Sol e só encontrou crepúsculos frios. Quando voltei, desiludido, à minha tenda levantada no meio do tumulto, verifiquei que a única solução acessível às minhas inquietações e angústias era a tradição. E regressei à secular tradição portuguesa — a Deus, à Pátria e ao Rei.
E sou fanático, intransigente e intolerante em defesa de Deus, da Pátria e do Rei, até mesmo contra os que falam em Deus desservindo-o, ou falam na Pátria traindo-a, ou falam no Rei deformando-o» (11).
Numa época dominada pelo culto do diálogo, da liberdade, da convivência, Alfredo Pimenta teve a coragem extrema de proceder ao elogio da intransigência e da intolerância. Sem dúvida os dialogantes, os conviventes, os liberais, perante o inaudito fenómeno, bramiram, imediatamente, as suas maldições, aquelas maldições habituais com que os entusiastas da tolerância têm por hábito mimosear os que não pensam como eles acerca da santidade dos seus princípios. Isso só prova, no entanto, que Alfredo Pimenta estava na razão. Pois não é exacto que a intransigência é tão vitalmente indispensável que os que elevam a tolerância a ideal se vêem forçados, também, com o mais flagrante ilogismo, a ser intransigentes contra os que se recusam a aceitar a religião da tolerância e a hostilizam?
Nós vivemos num tempo em que só se ouve falar em compreensão pelos adversários, respeito mútuo e tudo o mais, mas onde os que não acatam tais valores (ou melhor pseudo-valores) são monteados, caçados, enforcados (em Nuremberg), fuzilados (em Montrouge, v.g.), abatidos e pendurados pelos pés (na bela Itália), torturados, caluniados, difamados. O fascista, porque recusa a curvar-se à deusa tolerância, é alvo da execração geral, é perseguido até à morte, encarcerado, combatido de armas na mão.
Em meio da universal confusão em que reinam os hipócritas, os videirinhos ou os iludidos, Alfredo Pimenta confessou-se, desassombradamente, intolerante e intransigente, e, através de uma existência de inconformista, amargurada e ameaçada, pôs sempre de acordo os seus actos com as suas palavras. Rodeado de inimigos por todos os lados, hostilizado, atacado, e censurado como perigoso nunca preferiu torcer a quebrar.
Entusiasta dos mártires e heróis que, de 1939 a 1945, tombaram vencidos, mas não desonrados, numa conflagração titânica, Alfredo Pimenta foi, ele também, um herói, no plano moral, sacrificando-se, sem transigir, pelas suas convicções, sem as saber temperar por conveniência ou, habilmente, abrandar por interesse. Ele ignorava o que era pactuar, fugir, renunciar, abdicar quando estava em jogo o essencial. E jamais tolerou, passiva e liberalmente, que fosse ofendida a verdade (prática) sem que acorresse a terreiro para defender, por entre golpes, traições, navalhadas de saracoteadores de ponta e mola.
A sua figura agiganta-se no cinzento Portugal do após-guerra por entre um panorama de transigências doutrinárias que hoje atingiram o zénite.
É com profundo respeito que evocamos o seu nome, mas perante ele experimentamos sobretudo a mais pungente das saudades e amarga sensação de um vazio insubstituível.
António José de Brito
Notas:
1 — Monárquicos sem Doutrina, in «A Nação», de 9 de Agosto de 1947, n.º 77.
2 — «Eu, como céptico, vejo, indiferente, passar em tumulto as Hipóteses, as Doutrinas, as Escolas... Mas a vida não é cepticismo: é Acção e a Acção implica o estímulo da Fé. É portanto indispensável que haja uma verdade — artificial, convencional. Como uma verdade é exclusiva não posso criar a minha verdade levado por um solipsismo impertinente». In Novos Estudos Filosóficos e Críticos, pág. 77.
Esclareça-se que, pela nossa parte, não concordamos com nenhuma espécie de cepticismo; logo parece-nos imperfeita a maneira como Alfredo Pimenta conexiona acção e pensamento. Não deixamos, contudo, de aplaudir o seu esforço de os unificar e estamos seguros da perene validade das suas principais construções ético-políticas.
3 — Monárquicos sem Doutrina cit.
4 — Novos Estudos Filosóficos e Críticos, pág. 107.
5 — Os Monárquicos e as Eleições, in «A Nação» de 10 de Julho de 1948, n.º 124.
6 — Monárquicos sem Doutrina cit.
7 — Palavras à Juventude, págs. 26 a 31.
8 — Charles Maurras, o maior apologista da Alemanha, in «A Nação» de 10 de Maio de 1947, n.º 64.
9 — Futura Hispaniae, in «A Nação» de 19 de Abril de 1947, n.º 61. A expressão é do Duque de Alcalá e do Marquês de Sotohermosa, mas Alfredo Pimenta citou-a, perfilhando-a.
10 — Contra a Democracia, pág. 15.
11 — As Cartas da Rainha, in «A Nação» de 24 de Janeiro de 1948, n.º 100.
A. J. B.
(In «Política», n.º 21, pág. 5, de 31.10.1970)
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BRASILLACH AL PAREDÓN
— UM IRREMÍVEL PECADO DA FRANÇA —
Se datas há que não podem deixar de ser lembradas por nós anualmente sob pena de incorrermos num imperdoável pecado de omissão para com elas e para com aquilo, sobretudo, que representam, o 6 de Fevereiro de 1945 é incontestavelmente uma dessas datas.
Faz anos que a França se desembaraçou pela lei da bala de um dos seus filhos mais incómodos, mais exemplares — e mais dotados —. Faz anos que caiu, de pé, no fosso de Montrouge, varado pela salva de um pelotão de fuzilamento, um dos maiores artistas literários europeus de todos os tempos. Concretamente. Faz anos que De Gaulle caprichou em mandar abater a tiro de rajada Robert Brasillach. (Parece que é sina dos grandes poetas morrerem às mãos dos maus prosadores de patente militar...)
Estava-se numa França de hetacombe e mais “ocupada” (a matar-se...) do que nunca.
Com o pesadelo da chamada “Libertação” — há-de notar lapidarmente Maurice Bardèche — a nação gaulesa tinha contraído o mau (o péssimo) hábito de mandar passar pelas armas os seus escritores ou de pregar com eles na “choça”, congratulando-se com essa forma expedita e pouco dispendiosa de resolver as suas crises de consciência colectiva.
Na eventualidade, está escrito que Brasillach venha a ser um dos intelectuais expiatoriamente sacrificados desde logo — e um dos cem mil e tal franceses sumariamente chacinados de caminho —.
Condenado à morte mal e porcamente depois de um julgamento político clamoroso que figura na História dos processos de acusação como modelo acabado de farsa judiciária, o poeta de Fresnes cada vez avulta mais como legenda de batalhas que tiveram talvez de se perder para poderem vir a ser ganhas.
Os seus crimes?
Tanto quanto se sabe, respondeu por um único: o crime de ter amado a França e sonhado a Europa sem conta, peso e medida!
Por outras palavras e abreviando razões: Brasillach cometeu tão-somente a injúria e apenas reivindicou para si o direito de pensar as circunstâncias ao invés do que mandavam as boas normas da intelligentzia demo-marxista de antanho. E bastou isso para o liquidarem.
De onde se segue que meia-dúzia de opções cardiais assumidas com toda a galhardia e firmadas com inteira verticalidade no campo de batalha das ideias por homens de uma só convicção — como ele era — já então se pagavam caro. A pretexto delas, conferia-se foros de justiça aos morticínios, força de lei à iniquidade, e tudo era pesadinho na balança de uma justiça que funcionava avec un seul plateau.
Promoviam-se torneios de tiro ao homem a torto e a direito por todo o território e, por sistema, confiava-se o destino de seres tortuosamente incriminados ao cuidado e à pontaria (sempre certeira, sempre infalível) de pelotões de execução.
“O nível da magistratura chegou a revelar-se, de uma maneira geral, francamente inferior ao dos próprios presos de delito comum”, comentará sardònicamente Marcel Aymé, visando esses baixos tempos, e muito justa e justiceiramente invectivando o despudor da jurisprudência depuradora levada a cabo na sua pátria após a chegada dos respectivos “libertadores”.
Na barra dos tribunais contavam-se entretanto pelos dedos da mão de um maneta as vozes verdadeiramente insubornáveis e realmente susceptíveis de se atreverem a erguer num levantamento de razões mais ou menos cerrado contra tanto desatino e desaforo juntos.
Brasillach veio a ter uma dessas vozes pelo lado dele, já que pôde encomendar à eloquência de fogo de Maître Isorni o encargo de o defender.
Mas nenhum resultado (prático) deram, nem qualquer efeito surtiram as imparáveis alegações e o verbo incontestado do grande causídico; como também de coisíssima nenhuma valeu ao poeta a petição de indulto que foi subscrita a favor dele por um sem-número de artistas e homens de letras seus compatriotas (e todos, por sinal, de altíssima craveira).
É que a sorte de Brasillach já estava traçada e ditadinha de antemão e o poeta previamente condenado a acabar como acabou: amarrado ao poste da pena capital, na força dos seus trinta e cinco anos, o corpo crivado de balas.
Uma consolação entretanto nos resta, mormente se admitirmos — como Céline — que “o mais terrível dos juízes é o condenado à morte”: a de sabermos que Robert Brasillach ao cabo de tantas e tão longas horas de calvário e paixão celular e de mortificação judiciária, observará até ao fim uma conduta exemplar, toda ela pautada por um estoicismo supremo, por uma coerência indefectível, por uma coragem inabalável; a consolação de tão-pouco ignorarmos que, chegado à hora da verdade, saberá ele, como poucos mais, encarar e receber a morte de frente!, sem pestanejar.
Daí, que o seu luminoso exemplo nos contemple e que a sua lição de sangue ainda agora nos norteie. Daí, que a sua morte seja em nós uma chaga em carne viva, uma ferida sempre aberta — e que não fecha, nem mesmo à vista da estuante vitalidade que de todos e de cada um dos seus livros se desprende, se liberta e evade, sem cessar —.
E a atestar de forma concludente aquilo que afirmo, nós aí temos em curso de impressão regular e sistemática a edição integral das suas obras, que vai de vento em popa num empreendimento da Plon.
O descerramento das mesmas tem-nos reservado inclusivamente de tempos a tempos a grata surpresa de entrar em contacto com títulos e textos novinhos em folha devidos ao punho (ainda agora fecundo!) do fabuloso polígrafo.
Foi esse o caso, relativamente recente ainda, do aparecimento de outro romance seu intitulado Les Captifs: um original inebriante (apesar de inacabado), até agora rigorosamente inédito, e que a Plon em boa hora declarou a público.
Acima de tudo, porém, dá gosto ver como os livros daquele que foi indubitavelmente o maior mago da ficção da Europa literária de 40, já agora vão deixando de ser raridades inobtíveis para andarem numa roda viva de reedições que a cada passo se esgotam (ao nível, designadamente, das consagratórias colecções de poche).
O significado de que se reveste semelhante fenómeno assinala assim o regresso mesmo do poeta fuzilado para junto daqueles, como nós, que sempre se recusaram a acatar ou a aceitar como terminante o veredicto da sua morte e muito menos ainda o do seu esquecimento.
De uma vez por todas, ei-lo que volta realmente ao convívio fraterno de quantos não tendo deixado nunca de o frequentar, saúdam e entrevêm neste retorno como que a prova provada e o testemunho indesmentível da eterna jovialidade de Robert Brasillach.
Rodrigo Emílio
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Se datas há que não podem deixar de ser lembradas por nós anualmente sob pena de incorrermos num imperdoável pecado de omissão para com elas e para com aquilo, sobretudo, que representam, o 6 de Fevereiro de 1945 é incontestavelmente uma dessas datas.
Faz anos que a França se desembaraçou pela lei da bala de um dos seus filhos mais incómodos, mais exemplares — e mais dotados —. Faz anos que caiu, de pé, no fosso de Montrouge, varado pela salva de um pelotão de fuzilamento, um dos maiores artistas literários europeus de todos os tempos. Concretamente. Faz anos que De Gaulle caprichou em mandar abater a tiro de rajada Robert Brasillach. (Parece que é sina dos grandes poetas morrerem às mãos dos maus prosadores de patente militar...)
Estava-se numa França de hetacombe e mais “ocupada” (a matar-se...) do que nunca.
Com o pesadelo da chamada “Libertação” — há-de notar lapidarmente Maurice Bardèche — a nação gaulesa tinha contraído o mau (o péssimo) hábito de mandar passar pelas armas os seus escritores ou de pregar com eles na “choça”, congratulando-se com essa forma expedita e pouco dispendiosa de resolver as suas crises de consciência colectiva.
Na eventualidade, está escrito que Brasillach venha a ser um dos intelectuais expiatoriamente sacrificados desde logo — e um dos cem mil e tal franceses sumariamente chacinados de caminho —.
Condenado à morte mal e porcamente depois de um julgamento político clamoroso que figura na História dos processos de acusação como modelo acabado de farsa judiciária, o poeta de Fresnes cada vez avulta mais como legenda de batalhas que tiveram talvez de se perder para poderem vir a ser ganhas.
Os seus crimes?
Tanto quanto se sabe, respondeu por um único: o crime de ter amado a França e sonhado a Europa sem conta, peso e medida!
Por outras palavras e abreviando razões: Brasillach cometeu tão-somente a injúria e apenas reivindicou para si o direito de pensar as circunstâncias ao invés do que mandavam as boas normas da intelligentzia demo-marxista de antanho. E bastou isso para o liquidarem.
De onde se segue que meia-dúzia de opções cardiais assumidas com toda a galhardia e firmadas com inteira verticalidade no campo de batalha das ideias por homens de uma só convicção — como ele era — já então se pagavam caro. A pretexto delas, conferia-se foros de justiça aos morticínios, força de lei à iniquidade, e tudo era pesadinho na balança de uma justiça que funcionava avec un seul plateau.
Promoviam-se torneios de tiro ao homem a torto e a direito por todo o território e, por sistema, confiava-se o destino de seres tortuosamente incriminados ao cuidado e à pontaria (sempre certeira, sempre infalível) de pelotões de execução.
“O nível da magistratura chegou a revelar-se, de uma maneira geral, francamente inferior ao dos próprios presos de delito comum”, comentará sardònicamente Marcel Aymé, visando esses baixos tempos, e muito justa e justiceiramente invectivando o despudor da jurisprudência depuradora levada a cabo na sua pátria após a chegada dos respectivos “libertadores”.
Na barra dos tribunais contavam-se entretanto pelos dedos da mão de um maneta as vozes verdadeiramente insubornáveis e realmente susceptíveis de se atreverem a erguer num levantamento de razões mais ou menos cerrado contra tanto desatino e desaforo juntos.
Brasillach veio a ter uma dessas vozes pelo lado dele, já que pôde encomendar à eloquência de fogo de Maître Isorni o encargo de o defender.
Mas nenhum resultado (prático) deram, nem qualquer efeito surtiram as imparáveis alegações e o verbo incontestado do grande causídico; como também de coisíssima nenhuma valeu ao poeta a petição de indulto que foi subscrita a favor dele por um sem-número de artistas e homens de letras seus compatriotas (e todos, por sinal, de altíssima craveira).
É que a sorte de Brasillach já estava traçada e ditadinha de antemão e o poeta previamente condenado a acabar como acabou: amarrado ao poste da pena capital, na força dos seus trinta e cinco anos, o corpo crivado de balas.
Uma consolação entretanto nos resta, mormente se admitirmos — como Céline — que “o mais terrível dos juízes é o condenado à morte”: a de sabermos que Robert Brasillach ao cabo de tantas e tão longas horas de calvário e paixão celular e de mortificação judiciária, observará até ao fim uma conduta exemplar, toda ela pautada por um estoicismo supremo, por uma coerência indefectível, por uma coragem inabalável; a consolação de tão-pouco ignorarmos que, chegado à hora da verdade, saberá ele, como poucos mais, encarar e receber a morte de frente!, sem pestanejar.
Daí, que o seu luminoso exemplo nos contemple e que a sua lição de sangue ainda agora nos norteie. Daí, que a sua morte seja em nós uma chaga em carne viva, uma ferida sempre aberta — e que não fecha, nem mesmo à vista da estuante vitalidade que de todos e de cada um dos seus livros se desprende, se liberta e evade, sem cessar —.
E a atestar de forma concludente aquilo que afirmo, nós aí temos em curso de impressão regular e sistemática a edição integral das suas obras, que vai de vento em popa num empreendimento da Plon.
O descerramento das mesmas tem-nos reservado inclusivamente de tempos a tempos a grata surpresa de entrar em contacto com títulos e textos novinhos em folha devidos ao punho (ainda agora fecundo!) do fabuloso polígrafo.
Foi esse o caso, relativamente recente ainda, do aparecimento de outro romance seu intitulado Les Captifs: um original inebriante (apesar de inacabado), até agora rigorosamente inédito, e que a Plon em boa hora declarou a público.
Acima de tudo, porém, dá gosto ver como os livros daquele que foi indubitavelmente o maior mago da ficção da Europa literária de 40, já agora vão deixando de ser raridades inobtíveis para andarem numa roda viva de reedições que a cada passo se esgotam (ao nível, designadamente, das consagratórias colecções de poche).
O significado de que se reveste semelhante fenómeno assinala assim o regresso mesmo do poeta fuzilado para junto daqueles, como nós, que sempre se recusaram a acatar ou a aceitar como terminante o veredicto da sua morte e muito menos ainda o do seu esquecimento.
De uma vez por todas, ei-lo que volta realmente ao convívio fraterno de quantos não tendo deixado nunca de o frequentar, saúdam e entrevêm neste retorno como que a prova provada e o testemunho indesmentível da eterna jovialidade de Robert Brasillach.
Rodrigo Emílio
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terça-feira, dezembro 28, 2004
A UM CONSERVADOR ILUSTRE
Exmo. Sr.:
Avistámo-nos, há poucos dias, por casualidade, e logo V. Exa., a quem já fui sucessivamente apresentado uma boa meia dúzia de vezes, se dirigiu a mim, dizendo que desejava falar comigo. Eu sou um humílimo desconhecido e V. Exa. é, no regime, um alto vulto que, além de ocupar posição de destaque no mundo da ciência e do saber, consegue, ainda, numa transbordante actividade, servir sacrificadamente a Pátria em importantes lugares das empresas de que depende a economia nacional e em cargos políticos que lhe deram a mais justa notoriedade em todo o país. Por isso, o facto de V. Exa. se ter dignado descer do seu pedestal até à minha insignificância, esse facto, só por si, penhorou-me e honrou-me extremamente. É claro que não supus um minuto que V. Exa. quisesse conversar comigo para desperdiçar o seu tempo louvando os meus insignificantes trabalhos, que nunca leu, ou para discutir, por exemplo, o pensamento de Varisco ou de Octave Hamelin. E de nenhum modo me enganei. O que V. Exa. pretendia era, unicamente, expressar-me o seu desgosto pela minha actuação de escritor nas colunas do "Agora". Escandalizara-o, em particular, o suplemento deste semanário sobre o Fascismo, em que eu tivera a ousadia de colaborar de várias maneiras, o melhor que pude e sei. V. Exa. esclareceu, com desassombro, que desde sempre reprovara tudo o que tenho afirmado acerca dessa ideologia maldita. Mas que eu já não aparecesse como um simples e isolado extravagante, antes enquadrado num grupo de intelectuais, alguns deles muito jovens, que não hesitavam em proclamar-se fascistas, é que pareceu a V. Exa. a «abominação da desolação». Evidentemente, sendo V. Exa. um moderado profissional, a sua indignação e a sua mágoa exprimia-as V. Exa. em termos comedidos, com alguns elogios de circunstância à mistura. Uma vez que os acontecimentos futuros são imprevisíveis, compreende-se, na verdade, que V. Exa. não queira tomar uma atitude de total intransigência que lhe feche de chofre uma determinada saída política, embora de muito remota e pouco provável utilidade. V. Exa! De resto, de que modo um anti-fascista tão resoluto como V. Exa. poderia ser intransigente, sem cair no pecado de extremismo, isto é, de fascismo?
Mas, enfim, eu, todo entregue à delícia e à suprema honra de trocar impressões com uma personalidade do destaque de V. Exa., busquei prolongar a conversação. E atendendo a que nas suas polidas censuras e, até, numa ou outra fase gentil havia, permanentemente, um fundo de azedume e acrimónia, ocorreu-me a ideia de solicitar da esclarecida inteligência de V. Exa. os motivos, por certo profundos, da sua tão manifesta e arreigada aversão ao Fascismo.
V. Exa. teve um sobressalto, ao escutar as minhas interrogações, como se eu estivesse a proferir fortes inconveniências e fosse obsceno imaginar que o anti-fascismo precisa de motivos e argumentos. No entanto, depois de breve pausa, V. Exa. respondeu-me que a sua consciência de católico não lhe permitia pactuar de maneira nenhuma, com um sistema que perseguira tão atrozmente a Igreja.
Não deixei de manifestar o meu espanto, ao ver o Fascismo qualificado desse modo e objectei que desconhecia quaisquer autênticas perseguições à Igreja na Itália do Duce e no Reich hitleriano. Pois não era verdade que a Igreja celebrara com aqueles dois Estados concordatas hoje ainda vigentes e cuja validade firmemente defende? Pois não era verdade que cardeais e bispos, por exemplo um Von Galen e um Faulhaber, permaneceram livres nas suas dioceses, de 1933 a 45, apesar das suas acusações e protestos contra o regime nacional-socialista? Onde se viram, na Alemanha e na Itália fascistas, a prisão de prelados e o seu desterro que assinalaram a nossa república democrática? Onde se viu a expulsão das ordens religiosas que marcou a tão democrática terceira república francesa? E onde se vislumbraram, sequer, as matanças de eclesiásticos que caracterizaram a república democrática espanhola, tanto da simpatia dos Srs. Bernanos, Mauriac, e do ultra celebrado e citado Sr. Jacques Maritain? Houve atritos, na Alemanha do Führer e na Itália de Mussolini, entre o Poder temporal e o Poder espiritual? Sem dúvida. Mas se ninguém se lembra de proclamar a democracia perseguidora da Igreja por causa da prisão e desterro de bispos, por causa da expulsão de ordens religiosas, por causa dos massacres de padres e freiras, cometidos pelas democracias portuguesa, francesa e espanhola, porque havemos de proclamar o Fascismo anti-católico por causa de incidentes ocorridos na Alemanha e Itália, e que nem sequer foram tão graves como os que se verificaram em monarquias cristianíssimas, com excomunhões de reis e tudo o mais?
Eu tomei um certo calor ao formular as minhas perguntas e V. Exa., após encarar-me cheio de surpresa, disse-me, sem me replicar directamente, com um sorriso que pretendia ser paternal: «Meu caro, o que importa, verdadeiramente, não é averiguar se o Fascismo perseguiu ou não a Igreja; o que interessa acentuar é que o Fascismo, na sua essência, é uma ideologia incompatível com o Catolicismo, pois que não é personalista, não aceita a supremacia da pessoa humana sobre a Sociedade política».
Nesta altura, parei estupefacto e fiquei silencioso. V. Exa. colocou protectoramente a mão no meu ombro, supondo-me, por assim dizer, fulminado. De facto, eu estava abismado, mas não pelos motivos que V. Exa. julgava. O que eu estava era em assombro, ao ver o personalismo elevado a dogma de fé e servindo de critério para definir as doutrinas perante o Catolicismo. Passado um primeiro momento de espanto, não deixei, imediatamente, de expor as minhas objecções. E observei que o personalismo era doutrina moderna e não me parecia que a religião católica datasse dos Garrigou-Lagrange, dos Gillet, dos Olgiati e do ultra celebrado e citado Sr. Jacques Maritain. E seriam pensadores na essência anti-católicos filósofos como Louis Lachance, o P. Pedro Descoqus, s.j., o prof. Charles de Koninck e o prof. Leopoldo Eulogio Palacios, todos vigorosamente anti-personalistas e cuja ortodoxia jamais foi posta em causa? A moda hoje em dia levava a confundir personalismo e catolicismo, prossegui; não pensava, porém, que a moda fosse o equivalente de uma formulação dogmática. O personalismo até ao presente momento não passava de uma teoria, de resto falsíssima, e racionalmente reputável. Que o Fascismo não fosse personalista só provava que o Fascismo estava na verdade.
Ouvindo estas considerações, V. Exa. recuou um pouco, como se tivesse escutado a maior das blasfémias. Depois encolheu os ombros e, por certo reflectindo que não valia a pena permanecer no plano das ideias, comunicou-me com secura que houvesse o que houvesse, jamais poderia dar o seu aplauso a uma ideologia responsável pelo extermínio de seis milhões de judeus. Fiquei assaz entristecido, ao ver V. Exa. despenhar-se dos cumes da teologia para o charco da propaganda bélica das democracias vitoriosas. E, bastante impaciente e mais secamente ainda, ripostei que, se ninguém condenava os princípios demo-liberais pelas atrocidades da revolução de 89 ou pelos bombardeamentos a fósforo de Bremen, Hamburgo, Dresden, etc., eventos historicamente incontestáveis, constituía puro disparate repudiar a concepção fascista em nome da chamada exterminação dos judeus que, segundo todas as probabilidades, não passava de invencionice torpe destinada a desacreditar os vencidos e a justificar as monstruosas indemnizações pagas a Israel.
V. Exa., inflamado, bradou-me, sem demoras, que pouco lhe importavam as digressões em torno da verdade histórica e tão só o que representava convicção generalizada de todos ou quase todos. O indiscutível era o sentimento geral de que o Nacional-Socialismo assassinara a totalidade dos hebreus da Europa. E não passava de estupidez rematada procurar remar contra essa maré. Em vez de esgrimirmos contra moinhos de vento eu e os que acompanho devíamos, unicamente, ter a preocupação de servir o actual statu quo nacional, evitando cuidadosamente comprometê-lo.
Tendo dito isto em tom soberano e dogmático, V. Exa. houve por bem retirar-se. Não fui eu quem procurou retê-lo, visto que a companhia de V. Exa. estava a aborrecer-me supinamente. Quedei-me, com satisfação, solitário, a cogitar nas últimas frases de V. Exa. E é o resultado dessas meditações — aliás breves, visto que o tema não merecia mais — que me apresso a transmitir a V. Exa.
Começo por observar que não percebo porque forma um tão reduzido número de franco-atiradores, como são os fascistas que escrevem neste semanário, conseguem comprometer algo ou alguém excepto eles próprios. Bem gostaria que V. Exa. me esclarecesse tal mistério.
Por outro lado, V. Exa. manifesta o seu desdém pela verdade histórica. O que lhe importam, pelos vistos, são as convicções generalizadas, ainda que mentirosas. V. Exa., há alguns anos atrás, protestava indignado contra as acusações que atingiam a memória do Senhor D. Miguel I — que provinham, por coincidência, do campo dos que actualmente se encarniçam contra o Fascismo — e acusava a historiografia maçónica de deturpar o passado português. Percebo agora, que V. Exa. continua a ignorar se o filho de D. João VI foi um monstro ou um mártir e se o passado português corresponde ou não às descrições dos Pinheiros Chagas e quejandos. Tais problemas em nada o interessavam. O que V. Exa. queria era acompanhar com os seus aplausos uma corrente de revisão historiográfica que surgira bem antes de V. Exa. e lhe parecia irresistível.
V. Exa., se seu pai fosse alvo de graves acusações em que mais ou menos toda a gente acreditasse, não procuraria averiguar do bom fundamento dessas acusações, investigando uma verdade histórica que despreza; preferiria, com certeza, mudar de nome e arranjar nova árvore genealógica, em lugar de se dar ao trabalho inútil de atacar uma convicção generalizada. Não podemos deixar de felicitar V. Exa. pelo nobre comedimento das suas posições.
V. Exa. alude à defesa do statu quo como única tarefa digna que nos competiria. Lastimo que V. Exa. não se tenha referido, de preferência, ao aperfeiçoamento da situação presente e à garantia para o futuro do que nela há de válido. Mas V. Exa. — não ignoro isso — classifica de tolas as preocupações pelo porvir do regime. Ocupemo-nos exclusivamente com o que está e não façamos ondas, não mexamos sequer numa vírgula, que as consequências podem ser trágicas, eis o lema de V. Exa. V. Exa. no pavor de toda a modificação, de toda a agitação, julga, até, perigosíssimo o movimento de oposição às desvairadas ideologias do nosso tempo, esquecendo-se de que o triunfo dessas ideologias em Portugal seria precisamente, o fim do statu quo que V. Exa. afirma defender. Basta pensar, verbi gratia, no personalismo, que V. Exa.
Idolatra, para se perceber que a sua vitória constituiria o fim da situação actual. Se cada pessoa humana é um valor em si, porquê negar-lhe a liberdade de expressão pela censura, recusar-lhe a liberdade de associação e a liberdade política, impedindo a formação de partidos políticos e condicionando o sufrágio universal?
Parece-me em extremo estranho que V. Exa., que nada tem de tolo, não descortine isto. E está-me a parecer que o extremo conservantismo de V. Exa. corresponde antes, ao raciocínio subtil de que uma extrema reacção de defesa é uma aventura que pode trazer riscos a V. Exa., ao passo que o imobilismo, que quase pela certa leva à dissolução, vai protelando a mesma até ao instante supremo em que as contas correntes de V. Exa. na Suíça e na América atinjam nível substancial. Não diremos que o cálculo de V. Exa. seja disparatado. Simplesmente, pela nossa parte, como não pertencemos à elite dos plutocratas e enfileiramos entre os quixotes, que V. Exa. tanto despreza e teme, ao mesmo tempo, preferimos enfrentar os ventos da história e procurar salvar o que puder ser salvo. Doutrinariamente, estamos na mais decidida oposição à mitologia hoje dominante no mundo e que ameaça subverter Portugal. Somos, mesmo, a única oposição autêntica aos falsos ídolos. Entre o mundo da democracia — liberal ou marxista — e o nosso mundo, não há meios termos entre o ser e o não-ser, o bem e o mal. E se não for possível triunfar do ambiente de loucura que sopra sobre o globo, preferimos tombar com plena consciência e em plena luta a deixar-nos arrastar para o abismo, passivamente, indiferentemente alheios a tudo o que não nos traga vantagem ou proveito pessoal. Este o nosso ponto de vista, Exmo. Sr.
Certos da incompreensão de V. Exa., subscrevemo-nos sem qualquer consideração,
António José de Brito
(In «Agora», n.º 332, 25.11.1967, págs. 11/12).
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Avistámo-nos, há poucos dias, por casualidade, e logo V. Exa., a quem já fui sucessivamente apresentado uma boa meia dúzia de vezes, se dirigiu a mim, dizendo que desejava falar comigo. Eu sou um humílimo desconhecido e V. Exa. é, no regime, um alto vulto que, além de ocupar posição de destaque no mundo da ciência e do saber, consegue, ainda, numa transbordante actividade, servir sacrificadamente a Pátria em importantes lugares das empresas de que depende a economia nacional e em cargos políticos que lhe deram a mais justa notoriedade em todo o país. Por isso, o facto de V. Exa. se ter dignado descer do seu pedestal até à minha insignificância, esse facto, só por si, penhorou-me e honrou-me extremamente. É claro que não supus um minuto que V. Exa. quisesse conversar comigo para desperdiçar o seu tempo louvando os meus insignificantes trabalhos, que nunca leu, ou para discutir, por exemplo, o pensamento de Varisco ou de Octave Hamelin. E de nenhum modo me enganei. O que V. Exa. pretendia era, unicamente, expressar-me o seu desgosto pela minha actuação de escritor nas colunas do "Agora". Escandalizara-o, em particular, o suplemento deste semanário sobre o Fascismo, em que eu tivera a ousadia de colaborar de várias maneiras, o melhor que pude e sei. V. Exa. esclareceu, com desassombro, que desde sempre reprovara tudo o que tenho afirmado acerca dessa ideologia maldita. Mas que eu já não aparecesse como um simples e isolado extravagante, antes enquadrado num grupo de intelectuais, alguns deles muito jovens, que não hesitavam em proclamar-se fascistas, é que pareceu a V. Exa. a «abominação da desolação». Evidentemente, sendo V. Exa. um moderado profissional, a sua indignação e a sua mágoa exprimia-as V. Exa. em termos comedidos, com alguns elogios de circunstância à mistura. Uma vez que os acontecimentos futuros são imprevisíveis, compreende-se, na verdade, que V. Exa. não queira tomar uma atitude de total intransigência que lhe feche de chofre uma determinada saída política, embora de muito remota e pouco provável utilidade. V. Exa! De resto, de que modo um anti-fascista tão resoluto como V. Exa. poderia ser intransigente, sem cair no pecado de extremismo, isto é, de fascismo?
Mas, enfim, eu, todo entregue à delícia e à suprema honra de trocar impressões com uma personalidade do destaque de V. Exa., busquei prolongar a conversação. E atendendo a que nas suas polidas censuras e, até, numa ou outra fase gentil havia, permanentemente, um fundo de azedume e acrimónia, ocorreu-me a ideia de solicitar da esclarecida inteligência de V. Exa. os motivos, por certo profundos, da sua tão manifesta e arreigada aversão ao Fascismo.
V. Exa. teve um sobressalto, ao escutar as minhas interrogações, como se eu estivesse a proferir fortes inconveniências e fosse obsceno imaginar que o anti-fascismo precisa de motivos e argumentos. No entanto, depois de breve pausa, V. Exa. respondeu-me que a sua consciência de católico não lhe permitia pactuar de maneira nenhuma, com um sistema que perseguira tão atrozmente a Igreja.
Não deixei de manifestar o meu espanto, ao ver o Fascismo qualificado desse modo e objectei que desconhecia quaisquer autênticas perseguições à Igreja na Itália do Duce e no Reich hitleriano. Pois não era verdade que a Igreja celebrara com aqueles dois Estados concordatas hoje ainda vigentes e cuja validade firmemente defende? Pois não era verdade que cardeais e bispos, por exemplo um Von Galen e um Faulhaber, permaneceram livres nas suas dioceses, de 1933 a 45, apesar das suas acusações e protestos contra o regime nacional-socialista? Onde se viram, na Alemanha e na Itália fascistas, a prisão de prelados e o seu desterro que assinalaram a nossa república democrática? Onde se viu a expulsão das ordens religiosas que marcou a tão democrática terceira república francesa? E onde se vislumbraram, sequer, as matanças de eclesiásticos que caracterizaram a república democrática espanhola, tanto da simpatia dos Srs. Bernanos, Mauriac, e do ultra celebrado e citado Sr. Jacques Maritain? Houve atritos, na Alemanha do Führer e na Itália de Mussolini, entre o Poder temporal e o Poder espiritual? Sem dúvida. Mas se ninguém se lembra de proclamar a democracia perseguidora da Igreja por causa da prisão e desterro de bispos, por causa da expulsão de ordens religiosas, por causa dos massacres de padres e freiras, cometidos pelas democracias portuguesa, francesa e espanhola, porque havemos de proclamar o Fascismo anti-católico por causa de incidentes ocorridos na Alemanha e Itália, e que nem sequer foram tão graves como os que se verificaram em monarquias cristianíssimas, com excomunhões de reis e tudo o mais?
Eu tomei um certo calor ao formular as minhas perguntas e V. Exa., após encarar-me cheio de surpresa, disse-me, sem me replicar directamente, com um sorriso que pretendia ser paternal: «Meu caro, o que importa, verdadeiramente, não é averiguar se o Fascismo perseguiu ou não a Igreja; o que interessa acentuar é que o Fascismo, na sua essência, é uma ideologia incompatível com o Catolicismo, pois que não é personalista, não aceita a supremacia da pessoa humana sobre a Sociedade política».
Nesta altura, parei estupefacto e fiquei silencioso. V. Exa. colocou protectoramente a mão no meu ombro, supondo-me, por assim dizer, fulminado. De facto, eu estava abismado, mas não pelos motivos que V. Exa. julgava. O que eu estava era em assombro, ao ver o personalismo elevado a dogma de fé e servindo de critério para definir as doutrinas perante o Catolicismo. Passado um primeiro momento de espanto, não deixei, imediatamente, de expor as minhas objecções. E observei que o personalismo era doutrina moderna e não me parecia que a religião católica datasse dos Garrigou-Lagrange, dos Gillet, dos Olgiati e do ultra celebrado e citado Sr. Jacques Maritain. E seriam pensadores na essência anti-católicos filósofos como Louis Lachance, o P. Pedro Descoqus, s.j., o prof. Charles de Koninck e o prof. Leopoldo Eulogio Palacios, todos vigorosamente anti-personalistas e cuja ortodoxia jamais foi posta em causa? A moda hoje em dia levava a confundir personalismo e catolicismo, prossegui; não pensava, porém, que a moda fosse o equivalente de uma formulação dogmática. O personalismo até ao presente momento não passava de uma teoria, de resto falsíssima, e racionalmente reputável. Que o Fascismo não fosse personalista só provava que o Fascismo estava na verdade.
Ouvindo estas considerações, V. Exa. recuou um pouco, como se tivesse escutado a maior das blasfémias. Depois encolheu os ombros e, por certo reflectindo que não valia a pena permanecer no plano das ideias, comunicou-me com secura que houvesse o que houvesse, jamais poderia dar o seu aplauso a uma ideologia responsável pelo extermínio de seis milhões de judeus. Fiquei assaz entristecido, ao ver V. Exa. despenhar-se dos cumes da teologia para o charco da propaganda bélica das democracias vitoriosas. E, bastante impaciente e mais secamente ainda, ripostei que, se ninguém condenava os princípios demo-liberais pelas atrocidades da revolução de 89 ou pelos bombardeamentos a fósforo de Bremen, Hamburgo, Dresden, etc., eventos historicamente incontestáveis, constituía puro disparate repudiar a concepção fascista em nome da chamada exterminação dos judeus que, segundo todas as probabilidades, não passava de invencionice torpe destinada a desacreditar os vencidos e a justificar as monstruosas indemnizações pagas a Israel.
V. Exa., inflamado, bradou-me, sem demoras, que pouco lhe importavam as digressões em torno da verdade histórica e tão só o que representava convicção generalizada de todos ou quase todos. O indiscutível era o sentimento geral de que o Nacional-Socialismo assassinara a totalidade dos hebreus da Europa. E não passava de estupidez rematada procurar remar contra essa maré. Em vez de esgrimirmos contra moinhos de vento eu e os que acompanho devíamos, unicamente, ter a preocupação de servir o actual statu quo nacional, evitando cuidadosamente comprometê-lo.
Tendo dito isto em tom soberano e dogmático, V. Exa. houve por bem retirar-se. Não fui eu quem procurou retê-lo, visto que a companhia de V. Exa. estava a aborrecer-me supinamente. Quedei-me, com satisfação, solitário, a cogitar nas últimas frases de V. Exa. E é o resultado dessas meditações — aliás breves, visto que o tema não merecia mais — que me apresso a transmitir a V. Exa.
Começo por observar que não percebo porque forma um tão reduzido número de franco-atiradores, como são os fascistas que escrevem neste semanário, conseguem comprometer algo ou alguém excepto eles próprios. Bem gostaria que V. Exa. me esclarecesse tal mistério.
Por outro lado, V. Exa. manifesta o seu desdém pela verdade histórica. O que lhe importam, pelos vistos, são as convicções generalizadas, ainda que mentirosas. V. Exa., há alguns anos atrás, protestava indignado contra as acusações que atingiam a memória do Senhor D. Miguel I — que provinham, por coincidência, do campo dos que actualmente se encarniçam contra o Fascismo — e acusava a historiografia maçónica de deturpar o passado português. Percebo agora, que V. Exa. continua a ignorar se o filho de D. João VI foi um monstro ou um mártir e se o passado português corresponde ou não às descrições dos Pinheiros Chagas e quejandos. Tais problemas em nada o interessavam. O que V. Exa. queria era acompanhar com os seus aplausos uma corrente de revisão historiográfica que surgira bem antes de V. Exa. e lhe parecia irresistível.
V. Exa., se seu pai fosse alvo de graves acusações em que mais ou menos toda a gente acreditasse, não procuraria averiguar do bom fundamento dessas acusações, investigando uma verdade histórica que despreza; preferiria, com certeza, mudar de nome e arranjar nova árvore genealógica, em lugar de se dar ao trabalho inútil de atacar uma convicção generalizada. Não podemos deixar de felicitar V. Exa. pelo nobre comedimento das suas posições.
V. Exa. alude à defesa do statu quo como única tarefa digna que nos competiria. Lastimo que V. Exa. não se tenha referido, de preferência, ao aperfeiçoamento da situação presente e à garantia para o futuro do que nela há de válido. Mas V. Exa. — não ignoro isso — classifica de tolas as preocupações pelo porvir do regime. Ocupemo-nos exclusivamente com o que está e não façamos ondas, não mexamos sequer numa vírgula, que as consequências podem ser trágicas, eis o lema de V. Exa. V. Exa. no pavor de toda a modificação, de toda a agitação, julga, até, perigosíssimo o movimento de oposição às desvairadas ideologias do nosso tempo, esquecendo-se de que o triunfo dessas ideologias em Portugal seria precisamente, o fim do statu quo que V. Exa. afirma defender. Basta pensar, verbi gratia, no personalismo, que V. Exa.
Idolatra, para se perceber que a sua vitória constituiria o fim da situação actual. Se cada pessoa humana é um valor em si, porquê negar-lhe a liberdade de expressão pela censura, recusar-lhe a liberdade de associação e a liberdade política, impedindo a formação de partidos políticos e condicionando o sufrágio universal?
Parece-me em extremo estranho que V. Exa., que nada tem de tolo, não descortine isto. E está-me a parecer que o extremo conservantismo de V. Exa. corresponde antes, ao raciocínio subtil de que uma extrema reacção de defesa é uma aventura que pode trazer riscos a V. Exa., ao passo que o imobilismo, que quase pela certa leva à dissolução, vai protelando a mesma até ao instante supremo em que as contas correntes de V. Exa. na Suíça e na América atinjam nível substancial. Não diremos que o cálculo de V. Exa. seja disparatado. Simplesmente, pela nossa parte, como não pertencemos à elite dos plutocratas e enfileiramos entre os quixotes, que V. Exa. tanto despreza e teme, ao mesmo tempo, preferimos enfrentar os ventos da história e procurar salvar o que puder ser salvo. Doutrinariamente, estamos na mais decidida oposição à mitologia hoje dominante no mundo e que ameaça subverter Portugal. Somos, mesmo, a única oposição autêntica aos falsos ídolos. Entre o mundo da democracia — liberal ou marxista — e o nosso mundo, não há meios termos entre o ser e o não-ser, o bem e o mal. E se não for possível triunfar do ambiente de loucura que sopra sobre o globo, preferimos tombar com plena consciência e em plena luta a deixar-nos arrastar para o abismo, passivamente, indiferentemente alheios a tudo o que não nos traga vantagem ou proveito pessoal. Este o nosso ponto de vista, Exmo. Sr.
Certos da incompreensão de V. Exa., subscrevemo-nos sem qualquer consideração,
António José de Brito
(In «Agora», n.º 332, 25.11.1967, págs. 11/12).
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segunda-feira, dezembro 27, 2004
COMUNIDADE E DISCIPLINA
Falar em comunidade é indiscutivelmente, pôr o problema da existência de algo que é comum. Mas só há algo em comum quando nos encontramos perante elementos distintos e não perante um único ente. Comunidade é, assim, uma unidade que reúne e liga múltiplas realidades, é, numa palavra, unidade da pluralidade. Reduzir a noção de comunidade a mero acordo entre os que nela participam, representa um contra-senso flagrante, pois destrói aquilo que, precisamente através do conceito de acordo, se pretendia explicar. Se a comunidade resulta de um acordo — conforme pretendem as doutrinas contratualistas — através de um acordo pode ser dissolvida. E, então, não há, verdadeiramente, nada de comum, não há nada que ligue a valer cada um dos membros um ao outro — há apenas uma coexistência dependente por inteiro de arbítrios particulares. Com efeito, o que for comum a vários elementos e os abranger, é qualquer coisa que os constitui, logo é impossível que dependa do bon vouloir dos mesmos.
E, de resto, que possam pôr-se de acordo, que consigam pactuar, isso implica já que os diferentes sujeitos possuam algo em comum e estejam, portanto, duma forma ou doutra, em comunidade.
Simplesmente se temos de repelir a tese de que a comunidade resulta de um contrato ou acordo, a solução que parece impor-se é considerá-la forçosa e necessária para quantos ela englobe. Estes últimos de nenhum modo poderiam subtrair-se à acção da comunidade que os dominaria, inflexivelmente, quisessem ou não. Semelhante ponto de vista conduz a negar qualquer autonomia às individualidades vinculadas pelo elemento comum. Hão-de estar elas, por inteiro, dentro da comunidade (doutro modo, a situação de só estar em parte arrastaria consigo uma independência parcial que, acaso, poderia tentar voltar-se contra a dependência da restante parte e destruí-la) e, portanto, contêm, totalmente, em si, a presença irresistível da unidade comum. Por consequência, as referidas individualidades não possuem nenhuma actividade própria específica, nada são por si.
Serão, no entanto, em si? Também não, porquanto se fossem em si ou não estariam por completo mergulhadas no todo ou, pelo menos, teriam actividade própria específica.
Não se verificando tais condições somos obrigados a concluir que nada constituem por si. E nada sendo em si nem por si, apenas são enquanto a unidade é. Em última análise, só esta existe. E, nessa altura, está também aniquilada a comunidade.
E de que maneira devemos conceber esta derradeira para que se mantenha a indispensável unidade na pluralidade sem que a primeira aniquile a segunda e vice-versa? Em nosso entender de uma única maneira. Considerando a unidade uma exigência normativa, um dever dirigido aos sujeitos múltiplos que jamais pode desaparecer e que, por conseguinte, não depende dos seus arbítrios, e, ao mesmo tempo, reconhecendo a cada elemento plural a liberdade de se decidir, negativa ou afirmativamente, face a essa indestrutível normatividade.
Esclareçamos, contudo, que a unidade normativa não deve entender-se num sentido neo-kantiano como ideal inatingível, entidade transcendente aos múltiplos. A norma está-lhes imanente, é-lhes sempre presente — embora a possam recusar. Exige-se uma superação do neo-kantismo que sem destruir a tensão entre o söllen e o sujeito concreto a que aquele se dirige os congregue, unitariamente, numa síntese superior.
A comunidade situa-se assim in interiore homine. É um modo de existir das individualidades plurais quando elas resolvem ultrapassar o ethos de discórdia e desagregação e afirmar-se no uno. É óbvio que, em contrapartida, pode encaminhar-se para a auto-destruição e o rebaixamento negando a ideia de unidade ou desconhecendo-a, o que é um processo de a negar (de facto, um desconhecimento absoluto da ideia de unidade não é concebível porque, nesse caso, nem sequer as linhas que escrevemos teriam sido traçadas: a ideia de unidade qual existência encontra-se, portanto, sempre proposta à consciência subjectiva seja qual for o seu porta-voz; alhear-se a semelhantes apelos é já desdenhar da força imperativa da unidade ou seja, equivale a negá-la).
Reparemos, todavia, que só há comunidade se os sujeitos plurais se inserirem dinamicamente no uno que se dirige a eles qual regra ética, então a comunidade estrutura-se em função dos conceitos de obediência e disciplina. A comunidade é uma normatividade, uma lei que se torna elo de ligação, vínculo unificador. Não é, evidentemente, pura obediência, pura disciplina, visto que a disciplina e obediência puras podem ter os conteúdos mais diferentes, inclusive anti-comunitários. É obediência e disciplina na medida em que é obediência e disciplina perante a própria norma da unidade, na medida em que a lei disciplinadora a que se obedece é a lei que unifica.
Se nem toda a disciplina e obediência levam à comunidade, não há dúvida que toda a comunidade leva à disciplina e à obediência sem as quais não subsiste.
Por isso, os ataques contra o espírito de obediência e disciplina conduzidos por uns tantos portentosos teorizadores e por eles denominado de concepções comunitária não passa de simples expressão de um mal disfarçado anarquismo besuntado com fortes pinceladas de lirismo sentimentalóide.
Sustenta-se que a substância da comunidade é o amor, pois só o amor junta e liga o que se encontra disperso e dividido. O resto, afirma-se, não passa de artificialidade, de mera coercibilidade exterior.
Nada menos exacto, no entanto. O amor é arbitrariedade e subjectividade. Com verdade, apenas se pode dizer dele que não passa de «oiseau rebelle qui n`a jamais connu de loi». Eis porque o amor isolado nada pode fundar e tão somente consegue destruir. Supô-lo factor de unidade é, afinal, vir a recair no contratualismo, ficando a comunidade a depender de impulsos sentimentais incontroláveis. A unidade comum se é alguma coisa de autêntico não pode traduzir-se senão em disciplina que exige esforço, em obediência que não é agradável mas obrigatória para que tudo não tombe imoralmente no caos. A comunidade é obra da vontade, da vontade tensa cujo expoente máximo é o querer heróico, não é um fado dedilhado à guitarra. Exige elevação e dureza em vez de abandono, espontaneidade ou «conquista da felicidade». A sua força reside no transcendente ideal da honra e não nas blandícias de um amor dito espiritual ou pseudo-espiritual.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 9, págs. 1/6, Março de 1963)
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E, de resto, que possam pôr-se de acordo, que consigam pactuar, isso implica já que os diferentes sujeitos possuam algo em comum e estejam, portanto, duma forma ou doutra, em comunidade.
Simplesmente se temos de repelir a tese de que a comunidade resulta de um contrato ou acordo, a solução que parece impor-se é considerá-la forçosa e necessária para quantos ela englobe. Estes últimos de nenhum modo poderiam subtrair-se à acção da comunidade que os dominaria, inflexivelmente, quisessem ou não. Semelhante ponto de vista conduz a negar qualquer autonomia às individualidades vinculadas pelo elemento comum. Hão-de estar elas, por inteiro, dentro da comunidade (doutro modo, a situação de só estar em parte arrastaria consigo uma independência parcial que, acaso, poderia tentar voltar-se contra a dependência da restante parte e destruí-la) e, portanto, contêm, totalmente, em si, a presença irresistível da unidade comum. Por consequência, as referidas individualidades não possuem nenhuma actividade própria específica, nada são por si.
Serão, no entanto, em si? Também não, porquanto se fossem em si ou não estariam por completo mergulhadas no todo ou, pelo menos, teriam actividade própria específica.
Não se verificando tais condições somos obrigados a concluir que nada constituem por si. E nada sendo em si nem por si, apenas são enquanto a unidade é. Em última análise, só esta existe. E, nessa altura, está também aniquilada a comunidade.
E de que maneira devemos conceber esta derradeira para que se mantenha a indispensável unidade na pluralidade sem que a primeira aniquile a segunda e vice-versa? Em nosso entender de uma única maneira. Considerando a unidade uma exigência normativa, um dever dirigido aos sujeitos múltiplos que jamais pode desaparecer e que, por conseguinte, não depende dos seus arbítrios, e, ao mesmo tempo, reconhecendo a cada elemento plural a liberdade de se decidir, negativa ou afirmativamente, face a essa indestrutível normatividade.
Esclareçamos, contudo, que a unidade normativa não deve entender-se num sentido neo-kantiano como ideal inatingível, entidade transcendente aos múltiplos. A norma está-lhes imanente, é-lhes sempre presente — embora a possam recusar. Exige-se uma superação do neo-kantismo que sem destruir a tensão entre o söllen e o sujeito concreto a que aquele se dirige os congregue, unitariamente, numa síntese superior.
A comunidade situa-se assim in interiore homine. É um modo de existir das individualidades plurais quando elas resolvem ultrapassar o ethos de discórdia e desagregação e afirmar-se no uno. É óbvio que, em contrapartida, pode encaminhar-se para a auto-destruição e o rebaixamento negando a ideia de unidade ou desconhecendo-a, o que é um processo de a negar (de facto, um desconhecimento absoluto da ideia de unidade não é concebível porque, nesse caso, nem sequer as linhas que escrevemos teriam sido traçadas: a ideia de unidade qual existência encontra-se, portanto, sempre proposta à consciência subjectiva seja qual for o seu porta-voz; alhear-se a semelhantes apelos é já desdenhar da força imperativa da unidade ou seja, equivale a negá-la).
Reparemos, todavia, que só há comunidade se os sujeitos plurais se inserirem dinamicamente no uno que se dirige a eles qual regra ética, então a comunidade estrutura-se em função dos conceitos de obediência e disciplina. A comunidade é uma normatividade, uma lei que se torna elo de ligação, vínculo unificador. Não é, evidentemente, pura obediência, pura disciplina, visto que a disciplina e obediência puras podem ter os conteúdos mais diferentes, inclusive anti-comunitários. É obediência e disciplina na medida em que é obediência e disciplina perante a própria norma da unidade, na medida em que a lei disciplinadora a que se obedece é a lei que unifica.
Se nem toda a disciplina e obediência levam à comunidade, não há dúvida que toda a comunidade leva à disciplina e à obediência sem as quais não subsiste.
Por isso, os ataques contra o espírito de obediência e disciplina conduzidos por uns tantos portentosos teorizadores e por eles denominado de concepções comunitária não passa de simples expressão de um mal disfarçado anarquismo besuntado com fortes pinceladas de lirismo sentimentalóide.
Sustenta-se que a substância da comunidade é o amor, pois só o amor junta e liga o que se encontra disperso e dividido. O resto, afirma-se, não passa de artificialidade, de mera coercibilidade exterior.
Nada menos exacto, no entanto. O amor é arbitrariedade e subjectividade. Com verdade, apenas se pode dizer dele que não passa de «oiseau rebelle qui n`a jamais connu de loi». Eis porque o amor isolado nada pode fundar e tão somente consegue destruir. Supô-lo factor de unidade é, afinal, vir a recair no contratualismo, ficando a comunidade a depender de impulsos sentimentais incontroláveis. A unidade comum se é alguma coisa de autêntico não pode traduzir-se senão em disciplina que exige esforço, em obediência que não é agradável mas obrigatória para que tudo não tombe imoralmente no caos. A comunidade é obra da vontade, da vontade tensa cujo expoente máximo é o querer heróico, não é um fado dedilhado à guitarra. Exige elevação e dureza em vez de abandono, espontaneidade ou «conquista da felicidade». A sua força reside no transcendente ideal da honra e não nas blandícias de um amor dito espiritual ou pseudo-espiritual.
António José de Brito
(In Praça Nova, n.º 9, págs. 1/6, Março de 1963)
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UMA CRÍTICA DO COMUNISMO
A obra de Nicolai Berdiaeff "O Marxismo e a Religião", além de constituir uma análise indiscutivelmente séria e penetrante das ideias filosóficas do autor de "O Capital", possui, devido a uma linguagem clara e a esplêndidas virtudes de síntese, a qualidade de não ser apenas acessível a uma escassa minoria de técnicos e, em consequência, a vantagem importante de poder influir no espírito do grande público.
Quer dizer: além dum valor teórico, tem um valor ideológico, além de pensamento vivo, capaz de (ao contrário do que acontece com as grandes obras especulativas) por si só agir, directamente, na exarcebada luta de místicas que hoje se trava.
A inclusão deste trabalho na série «Pensamento e Doutrina» da colecção Mensagem - colecção que a todos os títulos se anuncia esplêndida - significa, pois, nitidamente, por parte dos seus directores, José Charters e José Pina Martins (Duarte de Montalegre), a vontade de contribuir para uma solução no sentido europeu, contra-revolucionário e cristão, da imensa crise em que o Mundo se debate e a que Portugal não é alheio. Exemplo notável de fidelidade patriótica nesta hora de deserções, de cumplicidades com o inimigo, de desânimos e de traições.
Karl Marx apresenta-se, muitas vezes, como discípulo de Hegel. Simplesmente, onde este coloca a Ideia Absoluta como essência do universo, o primeiro coloca a matéria, o ser natural. Matéria, ser natural, não concebidos, porém, à maneira grega, medieval ou iluminística, duma forma estática, imóvel, invariável mas considerados como um devir, como a própria actividade do homem ao visar satisfazer as suas necessidades vitais, ou seja como a própria actividade económica. Esse devir, esse agir físico dos indivíduos eis a realidade. E, como consequência, eis a dialéctica. Dado que tudo é movimento, é acto, cada coisa traz em si o gérmen da própria destruição, cada coisa, considerada momento dum imenso fluxo, ao mesmo tempo que se afirma - nega-se, cada coisa, pois tudo se agita e muda e tem de ser superado, ao mesmo tempo que é, está a negar a própria existência - ao mesmo tempo que é - não é.
E além da dialéctica eis, também, o materialismo histórico. A realidade é a actividade económica. Logo, o espírito, a filosofia, a arte, a moral não passam de super-estruturas que se elevam sobre esta base, não passam de produtos dum determinado estádio das forças de produção.
E, finalmente, eis a Revolução. A análise da sociedade capitalista mostra os gérmens da sua morte. A exploração do operário através da mais-valia, e a diminuição do número de empresas, etc., estas antíteses fazem prever o momento da sua negação. A luta de classes, segundo a lei do desenrolar da História, é a fase preparatória da sociedade sem classes, que inexoravelmente há-de surgir.
Berdiaeff, evidentemente, não discutiu nem a mais-valia nem a lei da concentração, refutando-as e dando por finda a sua tarefa de crítico. Pelo contrário. Os debates científicos deixou-os aos especialistas. A sua atenção assentou antes sobre a concepção do Mundo que tão anti-burguês significado faz assumir a esses conceitos económicos.
Em primeiro lugar, denunciou a impossibilidade de ligar o materialismo com a dialéctica.
Este, segundo Hegel - e é Hegel que Marx pretende adaptar - significa a essência, o modo de ser próprio da Ideia, do Espírito. Ora a Ideia, o Espírito, segundo o Comunismo não passam de super-estruturas de que a matéria é a base. Como atribuir-lhes porém um processo, um ritmo interno idêntico ao do Pensamento, senão confundindo-o com este?
Isto é: ou a matéria não tem dialéctica ou então tem de transformar-se naquilo que o filósofo do Idealismo alemão chamava espírito, ficando o Materialismo reduzido a um simples nome.
Um vício idêntico se deve apontar ao Marxismo no terreno filosófico-histórico. Se «toda a ideologia é o reflexo das relações económicas» também o é a ideologia de Karl Marx, não podendo ter, em consequência, «a pretensão de verdade absoluta, pois se coloca ao nível de todas as outras doutrinas». Se lhe é possível conhecer «os mistérios da História e destinos humanos, então existe uma verdade absoluta e nem toda a ideologia é necessariamente uma super-estrutura da economia».
Por último, no que diz respeito à catástrofe final, ao desaparecer da sociedade burguesa, há a reconhecer uma demonstração flagrante da empirização da dialéctica. O devir eterno, eterno porque no Absoluto, tem aqui um final. A luta de classes é o motor da História, logo quando surgir a sociedade sem classes, a História cessa, pára, imobiliza-se. Consequência evidente do absurdo que significa a aplicação no tempo do que pertence ao universal.
Juntamente com a análise teórica, faz Berdiaeff a análise psicológica do Comunismo. Ele mostra como o seu pretenso carácter objectivo, científico, não passa dum disfarce dado a determinados sentimentos morais. Ele mostra que na crença da injustiça da exploração do homem pelo homem (espécie de pecado original proletário) residia a raiz do ódio de Marx a tudo quanto era autoridade religiosa e divina, a qual, segundo ele, não passava de simples instrumento de adormecimento das massas - o ópio do povo. Mostra igualmente a origem judaica, messiânica, da ideia do proletariado, da classe redentora, que há-de a todos salvar, transformação da fé básica do povo de Israel.
Ele mostra, assim, as duas grandes bases em que alicerça a propaganda bolchevista: o ressentimento por um lado, em relação ao presente, o utopismo por outro em relação ao futuro.
A estas bases junte-se a mentalidade derivada do Idealismo que faz o comunista tratar o relativo e o contingente à laia de Absoluto, de Incondicionado, e que imprime uma forte tonalidade religiosa ao movimento, e teremos a explicação do fanatismo, da energia, do espírito de sacrifício e de luta que animam os militantes do Partido. Fanatismo, energia, espírito de sacrifício e de luta postos ao serviço duma raiva incendida contra a Civilização e duma vontade ilimitada de tudo destruir para tudo edificar, que tornam a mística marxista um verdadeiro perigo para a nossa cultura de portugueses e ocidentais.
Um prefácio, esplêndido, de Duarte de Montalegre, valoriza este volume.
Aí se faz com lucidez e com desassombro a análise da presente situação internacional. Perante o dilema Democracia ou Internacionalismo proletário, Duarte de Montalegre proclama o fictício dessas duas soluções e defende com energia a restauração integral de Valores, que o Cristianismo representa, mas o Cristianismo puro e ortodoxo, livre do «escalracho daninho da heresia» liberal, ou para-liberal, hoje defendido com o rótulo menos perigoso de Catolicismo progressivo.
Nesta «hora de confusões e de receios... em que se cruzam tantos caminhos e se cometem tantos atropelos» é consolador deparar com um defensor da Verdade, da Verdade pura, sem mutilações de compromisso e de conveniência, da Verdade integral. Duarte de Montalegre enfileira nessa escassa mas valorosa pleiade. Não lhe regateemos, por isso, os louvores.
António José de Brito
(In «Mensagem» n.º 11, 22.03.1948)
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Quer dizer: além dum valor teórico, tem um valor ideológico, além de pensamento vivo, capaz de (ao contrário do que acontece com as grandes obras especulativas) por si só agir, directamente, na exarcebada luta de místicas que hoje se trava.
A inclusão deste trabalho na série «Pensamento e Doutrina» da colecção Mensagem - colecção que a todos os títulos se anuncia esplêndida - significa, pois, nitidamente, por parte dos seus directores, José Charters e José Pina Martins (Duarte de Montalegre), a vontade de contribuir para uma solução no sentido europeu, contra-revolucionário e cristão, da imensa crise em que o Mundo se debate e a que Portugal não é alheio. Exemplo notável de fidelidade patriótica nesta hora de deserções, de cumplicidades com o inimigo, de desânimos e de traições.
Karl Marx apresenta-se, muitas vezes, como discípulo de Hegel. Simplesmente, onde este coloca a Ideia Absoluta como essência do universo, o primeiro coloca a matéria, o ser natural. Matéria, ser natural, não concebidos, porém, à maneira grega, medieval ou iluminística, duma forma estática, imóvel, invariável mas considerados como um devir, como a própria actividade do homem ao visar satisfazer as suas necessidades vitais, ou seja como a própria actividade económica. Esse devir, esse agir físico dos indivíduos eis a realidade. E, como consequência, eis a dialéctica. Dado que tudo é movimento, é acto, cada coisa traz em si o gérmen da própria destruição, cada coisa, considerada momento dum imenso fluxo, ao mesmo tempo que se afirma - nega-se, cada coisa, pois tudo se agita e muda e tem de ser superado, ao mesmo tempo que é, está a negar a própria existência - ao mesmo tempo que é - não é.
E além da dialéctica eis, também, o materialismo histórico. A realidade é a actividade económica. Logo, o espírito, a filosofia, a arte, a moral não passam de super-estruturas que se elevam sobre esta base, não passam de produtos dum determinado estádio das forças de produção.
E, finalmente, eis a Revolução. A análise da sociedade capitalista mostra os gérmens da sua morte. A exploração do operário através da mais-valia, e a diminuição do número de empresas, etc., estas antíteses fazem prever o momento da sua negação. A luta de classes, segundo a lei do desenrolar da História, é a fase preparatória da sociedade sem classes, que inexoravelmente há-de surgir.
Berdiaeff, evidentemente, não discutiu nem a mais-valia nem a lei da concentração, refutando-as e dando por finda a sua tarefa de crítico. Pelo contrário. Os debates científicos deixou-os aos especialistas. A sua atenção assentou antes sobre a concepção do Mundo que tão anti-burguês significado faz assumir a esses conceitos económicos.
Em primeiro lugar, denunciou a impossibilidade de ligar o materialismo com a dialéctica.
Este, segundo Hegel - e é Hegel que Marx pretende adaptar - significa a essência, o modo de ser próprio da Ideia, do Espírito. Ora a Ideia, o Espírito, segundo o Comunismo não passam de super-estruturas de que a matéria é a base. Como atribuir-lhes porém um processo, um ritmo interno idêntico ao do Pensamento, senão confundindo-o com este?
Isto é: ou a matéria não tem dialéctica ou então tem de transformar-se naquilo que o filósofo do Idealismo alemão chamava espírito, ficando o Materialismo reduzido a um simples nome.
Um vício idêntico se deve apontar ao Marxismo no terreno filosófico-histórico. Se «toda a ideologia é o reflexo das relações económicas» também o é a ideologia de Karl Marx, não podendo ter, em consequência, «a pretensão de verdade absoluta, pois se coloca ao nível de todas as outras doutrinas». Se lhe é possível conhecer «os mistérios da História e destinos humanos, então existe uma verdade absoluta e nem toda a ideologia é necessariamente uma super-estrutura da economia».
Por último, no que diz respeito à catástrofe final, ao desaparecer da sociedade burguesa, há a reconhecer uma demonstração flagrante da empirização da dialéctica. O devir eterno, eterno porque no Absoluto, tem aqui um final. A luta de classes é o motor da História, logo quando surgir a sociedade sem classes, a História cessa, pára, imobiliza-se. Consequência evidente do absurdo que significa a aplicação no tempo do que pertence ao universal.
Juntamente com a análise teórica, faz Berdiaeff a análise psicológica do Comunismo. Ele mostra como o seu pretenso carácter objectivo, científico, não passa dum disfarce dado a determinados sentimentos morais. Ele mostra que na crença da injustiça da exploração do homem pelo homem (espécie de pecado original proletário) residia a raiz do ódio de Marx a tudo quanto era autoridade religiosa e divina, a qual, segundo ele, não passava de simples instrumento de adormecimento das massas - o ópio do povo. Mostra igualmente a origem judaica, messiânica, da ideia do proletariado, da classe redentora, que há-de a todos salvar, transformação da fé básica do povo de Israel.
Ele mostra, assim, as duas grandes bases em que alicerça a propaganda bolchevista: o ressentimento por um lado, em relação ao presente, o utopismo por outro em relação ao futuro.
A estas bases junte-se a mentalidade derivada do Idealismo que faz o comunista tratar o relativo e o contingente à laia de Absoluto, de Incondicionado, e que imprime uma forte tonalidade religiosa ao movimento, e teremos a explicação do fanatismo, da energia, do espírito de sacrifício e de luta que animam os militantes do Partido. Fanatismo, energia, espírito de sacrifício e de luta postos ao serviço duma raiva incendida contra a Civilização e duma vontade ilimitada de tudo destruir para tudo edificar, que tornam a mística marxista um verdadeiro perigo para a nossa cultura de portugueses e ocidentais.
Um prefácio, esplêndido, de Duarte de Montalegre, valoriza este volume.
Aí se faz com lucidez e com desassombro a análise da presente situação internacional. Perante o dilema Democracia ou Internacionalismo proletário, Duarte de Montalegre proclama o fictício dessas duas soluções e defende com energia a restauração integral de Valores, que o Cristianismo representa, mas o Cristianismo puro e ortodoxo, livre do «escalracho daninho da heresia» liberal, ou para-liberal, hoje defendido com o rótulo menos perigoso de Catolicismo progressivo.
Nesta «hora de confusões e de receios... em que se cruzam tantos caminhos e se cometem tantos atropelos» é consolador deparar com um defensor da Verdade, da Verdade pura, sem mutilações de compromisso e de conveniência, da Verdade integral. Duarte de Montalegre enfileira nessa escassa mas valorosa pleiade. Não lhe regateemos, por isso, os louvores.
António José de Brito
(In «Mensagem» n.º 11, 22.03.1948)
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domingo, dezembro 26, 2004
Homenagem a Mestre Alfredo Pimenta
Já uma vez aqui foi escrito que dois tipos de intelectual houve sempre — neste recanto de cultura e civilização que se chama Europa. E nessa nótula afirmava-se que os dois tipos de intelectual se referenciavam a duas posições perante os factos marcantes da vida: o submisso e o insubmisso.
Só nos interessa o segundo — já então só nos interessava o segundo — porquanto é esse que marca a opinião livre do intelectual perante as realidades de seu tempo; porque representava o que, muitas vezes ao arrepio, dava as linhas mestras da actuação; porque, na incomodidade do dia a dia, com riscos de toda a ordem, a expressão do seu pensamento era o facho que poderia iluminar uma idade de trevas.
E — dilatando mais o ângulo de visão — no binómio «intelectual — homem da rua» sempre pensámos que o escritor, o artista, o sábio têm uma missão larga de responsabilidade, dado que, quando os escritores, artistas ou sábios submissos, porque o são, em nada modelam a sua época, antes se modelam a ela, os outros criam o ambiente dos grandes movimentos e se não os criam pelo menos fica o documentário humano da sua conduta, que por vezes pode redimir uma época ou uma geração.
Este meio século de vida europeia foi assaltado por todos os apocalípticos desvarios que alteraram, por assim dizer, os sinais da aritmética política.
E se se olha em volta, se se aprofunda o sentido de investigação — neste tapete divino de civilização que os bárbaros têm sujado e conspurcado, temos de convir que, nem sempre ou quase nunca os intelectuais, artistas e sábios estiveram à altura da sua missão: submissos, aterrados ou subornados — eles têm sido muitas vezes o cavalo de Tróia que ajudou a demolir o mosaico sagrado da Europa.
No meio da tormenta, quando os mais novos procuravam eco ou amparo para as suas inquietações — dificilmente encontrariam esse eco e esse amparo. Onde estavam os mestres? Onde estavam os guias espirituais?
Não nos interessa sair de casa, para dar resposta a esta pergunta. Mesmo se saíssemos, pouco ou nada veríamos digno de admiração e de respeito: salvo Maurras, o que ficaria? Repetimos: escusamos de sair das nossas fronteiras para procurar um intelectual que, ao arrepio, ao invés, indiferente a ameaças ou a medos, a insultos, a malquerenças, a incompreensões, a abandonos, quando não traições, soube na sua insubmissão construtiva, ser Mestre onde outros eram meros estagiários de «postos de ensino». E tão estagiários que muitas vezes se esgueiravam pela primeira porta aberta.
Daí a minha admiração por Alfredo Pimenta — nem escondida, nem tíbia, nem disfarçada; e daí o meu nojo profundo, mais nojo que comiseração por todos os mais ou menos fedelhos que têm vindo a terreiro atirar pedras a um Homem e à sua Obra que merece por direito próprio a veneração de todos nós.
Conheço-o como autor — mal soletrando ainda - de um artigo da Época, jornal do Conselheiro Fernando de Sousa, sobre a Maria da Fonte. Depois, correram os anos, lia-o sempre na «Tribuna Livre» de A Voz; lia-o já conscientemente no seu compêndio de história. Agora que conheço quase toda a sua obra, que sigo as suas polémicas, que sinto os seus versos e admiro n`Ele uma das mais sólidas culturas que vicejaram em Portugal, penso se esta homenagem não será pequena, humilde mesmo, para festejar o aniversário de quem está tão alto, no campo das ideias, no campo da cultura, no plano do procedimento e da acção.
Bem português e bem europeu — nunca a sua obra serviu outros desígnios — mesmo quando o silêncio geral e quando o pavor emudeceu as vozes, peou directrizes, ocultou ou cobriu alguns que se tinham a si mesmo proclamado guias. Intransigente, rebelde mesmo, perante a confusão, a mistificação ou a mentira — Ele foi dos poucos, dos raríssimos que se não calou nunca, dos que nunca se submeteram — à maior campanha de calúnias que pode cair sobre uma geração. Mestre antes e depois da tormenta a sua posição avulta e avultará ainda mais — quando o tempo der razão plena a todos os seus juízos, ainda mesmo aos mais cáusticos, aqueles em que podia parecer que havia um bocadinho de exagero. E que de facto não eram exagerados os seus juizos podemos nós agora já, verificá-lo.
Seria traição nossa se — ao sabermos do seu aniversário — calássemos a nossa admiração, perante o facto de tal modo significativo. Porque ainda somos de opinião que os homens se devem glorificar em vida, quando eles podem verificar ou mesmo julgar, da sua actuação, da sua influência nos mais novos — e portanto, para si, poderem ciciar, ao fazerem exame de consciência: a minha passagem na terra, não foi inútil.
Neste jornal publicou Alfredo Pimenta alguns bons artigos, algumas páginas dignas de antologia. A este jornal regressou, depois de curto interregno, e o seu regresso, representa para este órgão da opinião pública minhota que o mais elevado intelectual da nossa província está entre nós, como nosso colaborador, como nosso amigo, como nosso mestre e como nosso camarada mais velho.
E, se alguma coisa, neste dia pedimos sinceramente a Deus, é talvez para nós que o pedimos; e essa coisa é: que nos conserve, por muito tempo este intelectual, que é e sabe ser — Católico, Europeu e Português.
Amândio César
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Só nos interessa o segundo — já então só nos interessava o segundo — porquanto é esse que marca a opinião livre do intelectual perante as realidades de seu tempo; porque representava o que, muitas vezes ao arrepio, dava as linhas mestras da actuação; porque, na incomodidade do dia a dia, com riscos de toda a ordem, a expressão do seu pensamento era o facho que poderia iluminar uma idade de trevas.
E — dilatando mais o ângulo de visão — no binómio «intelectual — homem da rua» sempre pensámos que o escritor, o artista, o sábio têm uma missão larga de responsabilidade, dado que, quando os escritores, artistas ou sábios submissos, porque o são, em nada modelam a sua época, antes se modelam a ela, os outros criam o ambiente dos grandes movimentos e se não os criam pelo menos fica o documentário humano da sua conduta, que por vezes pode redimir uma época ou uma geração.
Este meio século de vida europeia foi assaltado por todos os apocalípticos desvarios que alteraram, por assim dizer, os sinais da aritmética política.
E se se olha em volta, se se aprofunda o sentido de investigação — neste tapete divino de civilização que os bárbaros têm sujado e conspurcado, temos de convir que, nem sempre ou quase nunca os intelectuais, artistas e sábios estiveram à altura da sua missão: submissos, aterrados ou subornados — eles têm sido muitas vezes o cavalo de Tróia que ajudou a demolir o mosaico sagrado da Europa.
No meio da tormenta, quando os mais novos procuravam eco ou amparo para as suas inquietações — dificilmente encontrariam esse eco e esse amparo. Onde estavam os mestres? Onde estavam os guias espirituais?
Não nos interessa sair de casa, para dar resposta a esta pergunta. Mesmo se saíssemos, pouco ou nada veríamos digno de admiração e de respeito: salvo Maurras, o que ficaria? Repetimos: escusamos de sair das nossas fronteiras para procurar um intelectual que, ao arrepio, ao invés, indiferente a ameaças ou a medos, a insultos, a malquerenças, a incompreensões, a abandonos, quando não traições, soube na sua insubmissão construtiva, ser Mestre onde outros eram meros estagiários de «postos de ensino». E tão estagiários que muitas vezes se esgueiravam pela primeira porta aberta.
Daí a minha admiração por Alfredo Pimenta — nem escondida, nem tíbia, nem disfarçada; e daí o meu nojo profundo, mais nojo que comiseração por todos os mais ou menos fedelhos que têm vindo a terreiro atirar pedras a um Homem e à sua Obra que merece por direito próprio a veneração de todos nós.
Conheço-o como autor — mal soletrando ainda - de um artigo da Época, jornal do Conselheiro Fernando de Sousa, sobre a Maria da Fonte. Depois, correram os anos, lia-o sempre na «Tribuna Livre» de A Voz; lia-o já conscientemente no seu compêndio de história. Agora que conheço quase toda a sua obra, que sigo as suas polémicas, que sinto os seus versos e admiro n`Ele uma das mais sólidas culturas que vicejaram em Portugal, penso se esta homenagem não será pequena, humilde mesmo, para festejar o aniversário de quem está tão alto, no campo das ideias, no campo da cultura, no plano do procedimento e da acção.
Bem português e bem europeu — nunca a sua obra serviu outros desígnios — mesmo quando o silêncio geral e quando o pavor emudeceu as vozes, peou directrizes, ocultou ou cobriu alguns que se tinham a si mesmo proclamado guias. Intransigente, rebelde mesmo, perante a confusão, a mistificação ou a mentira — Ele foi dos poucos, dos raríssimos que se não calou nunca, dos que nunca se submeteram — à maior campanha de calúnias que pode cair sobre uma geração. Mestre antes e depois da tormenta a sua posição avulta e avultará ainda mais — quando o tempo der razão plena a todos os seus juízos, ainda mesmo aos mais cáusticos, aqueles em que podia parecer que havia um bocadinho de exagero. E que de facto não eram exagerados os seus juizos podemos nós agora já, verificá-lo.
Seria traição nossa se — ao sabermos do seu aniversário — calássemos a nossa admiração, perante o facto de tal modo significativo. Porque ainda somos de opinião que os homens se devem glorificar em vida, quando eles podem verificar ou mesmo julgar, da sua actuação, da sua influência nos mais novos — e portanto, para si, poderem ciciar, ao fazerem exame de consciência: a minha passagem na terra, não foi inútil.
Neste jornal publicou Alfredo Pimenta alguns bons artigos, algumas páginas dignas de antologia. A este jornal regressou, depois de curto interregno, e o seu regresso, representa para este órgão da opinião pública minhota que o mais elevado intelectual da nossa província está entre nós, como nosso colaborador, como nosso amigo, como nosso mestre e como nosso camarada mais velho.
E, se alguma coisa, neste dia pedimos sinceramente a Deus, é talvez para nós que o pedimos; e essa coisa é: que nos conserve, por muito tempo este intelectual, que é e sabe ser — Católico, Europeu e Português.
Amândio César
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sábado, dezembro 25, 2004
Mais duas descobertas
Encontrei mais dois blogues interessantes para quem se situa na área nacional: são eles o Atlantys e Os meus olhos no mundo.
Não se esqueçam de os visitar e de conversar com os seus responsáveis - a falar é que a gente se entende (às vezes!!).
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Não se esqueçam de os visitar e de conversar com os seus responsáveis - a falar é que a gente se entende (às vezes!!).
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Novos artigos no ECO-NAC
Mesmo no Natal o trabalho não parou: foram acrescentados novos conteúdos ao Portal ECO-NAC a exigir nova visita aos já frequentadores e a justificar que o comecem a visitar os que ainda não o são.
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sexta-feira, dezembro 24, 2004
Livrarias
Nesta época em que é costume comprar mais livros venho recomendar algumas das melhores livrarias em linha que conheço.
Percorram os catálogos de:
LIBRE DIFFUSION
LIBRAD
PYRE LIBROS
NUEVA REPUBLICA
LIBRERIA EUROPA
DUALPHA
E fico por aqui porque só estas já dispõem de uma oferta capaz de satisfazer os mais exigentes.
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Percorram os catálogos de:
LIBRE DIFFUSION
LIBRAD
PYRE LIBROS
NUEVA REPUBLICA
LIBRERIA EUROPA
DUALPHA
E fico por aqui porque só estas já dispõem de uma oferta capaz de satisfazer os mais exigentes.
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quinta-feira, dezembro 23, 2004
Forum Nacional
Constata-se que o Forum Nacional está com um número de membros inscritos que atinge os dois mil.
Um número que faz inveja a muitos outros, com muito maiores pretensões.
E estou convencido que ainda está longe de ter esgotado todas as suas potencialidades: reclamo dos meus leitores toda a atenção para o Forum Nacional, e sobretudo que participem (num Forum não se pode participar ficando calado: escrevam lá o que pensam, colaborem, deixem as vossas opiniões, contribuam para fazer do Forum um ponto de encontro vivo e permanentemente actualizado do que se passa, do que se diz e pensa nos arraiais nacionalistas).
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Um número que faz inveja a muitos outros, com muito maiores pretensões.
E estou convencido que ainda está longe de ter esgotado todas as suas potencialidades: reclamo dos meus leitores toda a atenção para o Forum Nacional, e sobretudo que participem (num Forum não se pode participar ficando calado: escrevam lá o que pensam, colaborem, deixem as vossas opiniões, contribuam para fazer do Forum um ponto de encontro vivo e permanentemente actualizado do que se passa, do que se diz e pensa nos arraiais nacionalistas).
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Coincidências
Para que vejam como este blogue ganha dimensão internacional (apesar dos textos indigestos, longos e pesados que geralmente publica) venho anunciar-vos que recebi um pedido de divulgação de um novo blogue espanhol.
Trata-se do blog Coincidencias, que se bate por catolicismo, nación y revolucion.
Podem fazer uma visita quando quiserem, e conhecer então esse bastião do patriotismo católico e social.
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Trata-se do blog Coincidencias, que se bate por catolicismo, nación y revolucion.
Podem fazer uma visita quando quiserem, e conhecer então esse bastião do patriotismo católico e social.
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quarta-feira, dezembro 22, 2004
Novas leituras
Em tempo de Natal, vão aparecendo mesmo assim leituras interessantes em linha.
Prosseguiu com a publicação de artigos de opinião o novo blogue O Quinto Império, chamando a atenção nomeadamente para um acontecimento desta época que tende a passar sempre despercebido: a concessão pelo Presidente da República de umas dezenas de indultos, a pretexto do Natal, em que de súbito trata de inutilizar todos os anos as correspondentes condenações proferidas pelos tribunais - sem que se conheça qualquer critério que explique a opção por esses arguidos e não por outros, que têm que cumprir as penas.
Surgiu também actualizado com novos textos o Portal Nacionalista, cuja leitura recomendo aos meus leitores.
Destaco neste caso a iniciativa da campanha contra a pedofilia, a que declaro o apoio e a adesão deste blogue. Vamos colocar o lacinho anti-pedófilos!
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Prosseguiu com a publicação de artigos de opinião o novo blogue O Quinto Império, chamando a atenção nomeadamente para um acontecimento desta época que tende a passar sempre despercebido: a concessão pelo Presidente da República de umas dezenas de indultos, a pretexto do Natal, em que de súbito trata de inutilizar todos os anos as correspondentes condenações proferidas pelos tribunais - sem que se conheça qualquer critério que explique a opção por esses arguidos e não por outros, que têm que cumprir as penas.
Surgiu também actualizado com novos textos o Portal Nacionalista, cuja leitura recomendo aos meus leitores.
Destaco neste caso a iniciativa da campanha contra a pedofilia, a que declaro o apoio e a adesão deste blogue. Vamos colocar o lacinho anti-pedófilos!
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CONTRA A DEMOCRACIA CRISTÃ
Publicou, recentemente, J. S. da Silva Dias, nome assaz conhecido dentre os católicos progressivos portugueses, um volume de "Estudos Políticos", escritos naquela linha ideológica que vem de Lacordaire passando por Sangnier até ao Sr. Jacques Maritain. Mais pela tendência doutrinária que representa do que pelo seu valor intrínseco merece a obra ser analisada e criticada nos pontos capitais. Em primeiro lugar naquilo que representa a sua noção ética fundamental: o personalismo; em segundo lugar nas soluções político-institucionais que como meios visam a concretização desse ideal; em terceiro e último lugar nos ensaios de conteúdo mais ou menos sociológico que estudam o «drama da hora presente», ou o destino histórico do conservantismo.
O ponto de partida personalista
Em vários passos do seu livro repudia J. S. da Silva Dias a ideia da liberdade considerada como um fim em si, ideia que com muita justeza identifica com «o reinado do ponto de vista e do cepticismo». Afirma, realmente, este que todas as verdades se equivalem; da mesma forma, partindo da liberdade como critério todos os actos são bons desde que sejam produtos duma vontade não constrangida. Posições paralelas como se vê e que de resto se revelam insustentáveis, pois se as verdades se equivalem que títulos apresenta o cepticismo para exigir que se acredite nele? E se todos os actos livres são bons como se poderá condenar do ponto de vista liberal os actos dos indivíduos que neguem a liberdade?
A esta concepção, meramente formal, contrapõe Silva Dias o preceito tradicional de que a liberdade é «um meio... subordinado ao dever (na aceitação dos fins)».
Surge, nesse momento, o problema crucial da hierarquia dos fins a aceitar, surge a questão da tábua de valores donde devemos partir.
Faz aqui a sua aparição o personalismo ético. Segundo esta doutrina há que distinguir no homem dois aspectos diversos: o indivíduo e a pessoa. O indivíduo é em si imperfeito, frágil, incompleto, só podendo existir como parte dum todo, a pessoa é na ordem natural o que há de mais elevado, é autónoma, é ela mesma um todo. Desta forma, o indivíduo tem como fim o ente de que é uma parte — a sociedade — mas esta é por sua vez um mero instrumento em relação à pessoa.
Por isso, quanto à independência individual pertence ao Estado discipliná-la: «incumbe-lhe harmonizar o seu exercício com as exigências do bem-comum, de modo que a minha liberdade não tolha a do meu vizinho, nem ambas tolham a de todos». Compete-lhe, no mesmo sentido, «defender e incorporar nas leis os valores, os ideais e os princípios que constituem o fundo ideológico comum do povo respectivo e são o ingrediente fundamental da paz civil». Além disso, «pode e deve intervir na defesa da moral e do direito... na medida em que a paz social exige ou permite». É claro, porém, que «para lá deste limite imperioso da liberdade individual existe uma vasta esfera em que só o Estado totalitário ousará intervir. É justamente nesse domínio que a liberdade da pessoa goza de soberania perante a autoridade do Estado».
Tais são os princípios personalistas que os seus defensores apresentam como uma superação do Liberalismo do século XIX. Estes preceitos básicos, contudo, encontram-se já nessa cartilha do pensamento político da passada centúria que foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nela se afirmam igualmente os limites da liberdade: pois esta consiste «em poder fazer tudo que não prejudique a outrém», mas, igualmente, também nela se afirma que o fim da sociedade é a manutenção e defesa dos direitos naturais do homem. As diferenças residem pois na terminologia.
Silva Dias fala em «ingredientes da paz civil» e da «paz social» que ao Estado compete defender; a Declaração, no equilíbrio das liberdades, missão que pode perfeitamente comportar a extensão dos poderes públicos bem além do laissez faire, laissez passer (como por exemplo o frisou Parodi no seu "Traditionalisme et Democratie") e ambos — Silva Dias e a Declaração — para além da Comunidade erguem imediatamente, em concordância notável, a «soberania de pessoa» dum lado e os «direitos naturais do homem» do outro.
Pondo de parte, porém, o problema de filiação histórica do personalismo, interessa discutir e determinar o seu valor racional.
Para se considerar a pessoa um fim seria necessário que esta fosse na ordem natural perfeita, valiosa em si e por si, logo incapaz de errar e de enganar-se. Doutra forma, reclamar a liberdade para ela, seria reclamar a liberdade para o erro e a mentira. Ora tendo de admitir-se que a pessoa é dotada de livre arbítrio sem o qual seria um ser inanimado, uma coisa e não pessoa, a união da Liberdade e da Perfeição, indica que ela é um Absoluto cuja vontade traz consigo pelo simples facto de querer o Bem e o Racional. Ora ao lado da pessoa situa-se o indivíduo, a pluralidade dos indivíduos e daqui se vê que sendo a primeira um Absoluto e a Perfeição contradiz em si todas as características dos últimos (não se podem admitir vários Absolutos porque então nenhum deles seria Absoluto). E como não é possível admitir num sujeito uno, idêntico a si mesmo, atributos contraditórios, a solução consiste em negar a unidade e a identidade do composto humano. Solução a que conduz a lógica da doutrina, pois se o homem é uno todos os actos seus teriam de ser julgados em função dum critério que os englobasse sem distinções e não determinados actos em função de valores para a pessoa, como se não fosse o mesmo homem no seu eu «que unifica os diversos elementos» (Louis Lachance, o.p.) quem estivesse presente nuns e noutros.
E não se pense um minuto em defender a solução personalista admitindo uma separação entre os dois elementos do homem mais acentuada ainda do que a separação cartesiana de alma e corpo. Se estão situados em dois planos ontológicos diversos é inútil proclamar os direitos da pessoa em face do Estado e defendê-los com ardor. Seria impossível a este, a essência, atentar contra ela. A sociedade estaria situada num domínio completamente alheio ao espírito que não poderia ofender.
Será, no entanto, totalmente, de repudiar a distinção entre indivíduo e pessoa? Não! Mas há que concebê-la - de maneira diferente do personalismo — antes como duas possibilidades do ser humano que ao mesmo tempo não pode realizar uma e outra coisa. O homem só pode conquistar dimensão moral procurando tornar suas, isto é, procurando executar as normas ditadas por um Bem objectivo que se situa acima dele. Essas Normas reúnem a todos numa comunidade, numa unidade de obras, em que o indivíduo supera a sua particularidade para se tornar então uma pessoa que em si mesmo recebe o dom divino da universalidade. Na medida em que se distingue, se isola egoisticamente dos seus semelhantes, apresenta toda a sua imperfeição e insuficiência, na medida em que nega o seu eu empírico para se tornar família, Nação, Estado, adquire então valor ético e é homem no sentido elevado da palavra. A Comunidade não existe como coisa transcendente em que ele se submerja e desapareça, existe para o seu aperfeiçoamento, mas o seu aperfeiçoamento não existe sem a Comunidade, de modo que um sem o outro não são compreensíveis, um círculo dialéctico os ligando, como o indissolúvel vínculo fora do qual só há a barbárie e o caos.
A noção de Democracia
Assente como premissa o personalismo, J. S. da Silva Dias procura no terreno das instituições uma solução intermédia entre dois enormes males: a Ditadura, estrutura política do totalitarismo opressor, e o Demo-liberalismo, estrutura do Individualismo anárquico.
Apregoando, no ponto de vista teórico, dum lado a subordinação do indivíduo, do outro a liberdade da pessoa, Silva Dias, procura estabelecer no terreno político uma tendência de equilíbrio negando o exclusivismo anti-partidarista e o uso do poder pessoal característico das Ditaduras, mas repudiando por forma análoga a «democracia opinativa» em que «os governantes não mandam por direito próprio» em que se «discute o caminho mais seguro para o predomínio anárquico das sociedades particulares sobre a sociedade política e o despotismo de uma sobre outra classe». As suas soluções tendem por um lado a assegurar a autoridade necessária do Estado, do outro a limitá-lo para que se não torne Leviatã.
No primeiro sentido, repudia o parlamentarismo achando que «Legislativo e executivo devem ser ambos soberanos, independentes e autónomos» com a restrição de que o executivo não pode revogar as leis emanadas do segundo nem tão pouco legislar em sentido contrário ao que imprimiu ao direito, «mas pode legislar nos casos particulares e de urgente necessidade pública» e reforça a competência por meio da representação orgânica.
No sentido contrário exige que os governantes sejam «designados pelo povo», sendo essa designação por sufrágio atomístico na eleição dos organismos bases (freguesias) e do Chefe de Estado, e por sufrágio universal ou por sufrágio universal e sufrágio orgânico nos Parlamentos políticos: «Está bem que haja uma ou duas assembleias representativas das opiniões individuais, mas ao lado delas ou constituindo parte delas devia existir uma representação de família, da profissão, do emprego, do concelho, etc.». A escolha dos governantes exige, em circunstâncias normais, o direito de formar partidos políticos.
Colocando-se no ponto de vista do autor ao exigir reforço da autoridade do Estado, não é difícil reconhecer que os meios empregados são péssimos. Reforçar a autoridade é reforçar a sua unidade, reforçar a sua unidade é inconcebível com dois poderes autónomos independentes e soberanos. Montesquieu, o teórico da separação dos poderes, pedia-a como garantia da liberdade, como método para o Estado se manter nos seus limites, não para assentar em base sólida o seu poderio.
Quanto ao resto a Democracia-Cristã só traz como novidade a adopção parcial do sufrágio corporativo. Ora este na representação de interesses como guia consultivo pode servir; na designação dos governantes não lhes dá competência no ponto de vista do interesse nacional. A soma da vontade dos indivíduos ou grupos nunca conseguirá atingir o todo.
De resto para quem repelir a miragem duma pessoa isolada e superior à sociedade o problema não consiste em rodear o Estado de barreiras mas antes em descobrir o processo para que seja cada vez mais Estado, isto é, realidade ética. Trata-se não de restringir o poder dos governantes, mas de dirigi-los no sentido do interesse geral. Como esse interesse é uma unidade, a primeira condição requerida consiste na unidade de poder — logo governo pessoal.
E, para que esse governo não resulte uma tirania arbitrária do Chefe, há que fazer coincidir pelo melhor processo o interesse geral com o seu interesse privado pela sucessão hereditária do poder. Abandonado o fantasma das restrições externas do Estado surge, assim, a Monarquia autoritária como garantia interna suprema da perpetuidade do Estado ou seja da Pátria.
Considerações sociológicas
Procura traçar o autor no breve ensaio destinado ao estudo da «sorte dos conservadores» a oposição psicológica-social entre aqueles que vivem com os olhos no passado «embalados pelos braços da tradição, com as suas proezas heróicas e os seus rasgos de generosidade» e os que permanecem de «olhos fitos no mundo utópico que há-de vir, só nele vendo uma condição político-social digna». Estes dois tipos na sua pureza são casos limites em torno dos quais oscilam os movimentos humanos. Realmente a pura tendência conservadora não existe nem pode existir. Na vida, as gerações sucedem-se, os costumes mudam, o movimento é uma realidade.
A mera tendência defensiva traz consigo o gérmen da derrota. Aqueles que se esquecem de agir, fazem, apenas, com que os outros ajam em seu lugar. Este repúdio do conservantismo estático poderá entender-se, no entanto, como a aceitação duma terceira posição, renovadora no sentido de Silva Dias, isto é, duma terceira posição que aceite os acontecimentos novos para a eles se adaptar, sem contudo os criar? Não! Trata-se antes de coisa bem diferente, trata-se de adoptar aquele «conservantismo revolucionário» (defendido por Moeller van der Bruck) que, baseado nos seus princípios é ele mesmo o dirigente da História, aquele conservantismo que não aceita acontecimentos criados por forças alheias e hostis para nelas humildemente se infiltrar, mas antes vive numa contínua auto-superação, numa contínua «permanência na renovação», num dinamismo perpétuo que pela solidez das ideias e audácia da obra o torne um sempre jovem triunfador.
No segundo ensaio, dedicado ao «drama da hora presente», Silva Dias estuda a genealogia dos diversos humanismos contemporâneos. Partindo do colapso da burguesia, do fracasso desta na realização do seu «culto da dignidade humana» afirma que a esta restou-lhe o apegar-se aos seus privilégios e regalias por meio do Fascismo, «reduto embora contrafeito do mundo conservador» ou o caminhar no sentido do comunismo que não distinguindo entre pessoa e indivíduo e tendo do homem uma noção prevalentemente materialista não pode deixar de se apresentar como uma tentativa de libertação do homem. Contra estas místicas e reassumindo o ideal da verdadeira dignidade humana surge o Personalismo, etc.
A afirmação — exacta, talvez — de que no Fascismo se recolheu «embora com intenção de desembaraçar-se do aliado» parte da burguesia liberal, faz reflectir, porém, num interessante ponto da vida futura da mística demo-cristã.
Quem se acolhe a ela? Surge como um movimento de pura renovação? Parece bem que pelo contrário os resíduos do liberalismo se lhe dirigem com uma satisfação evidente e que a sua democracia-cristã é cada vez mais democracia e cada vez menos cristã. Nas suas fileiras infiltram-se mais e mais crentes duvidosos mas democratas convictos. A sua doutrina procurando satisfazer melhor o ideal revolucionário de 89 e a sua benevolência para todos os que partilham do mesmo ideal de «dignidade humana» embora inimigos da Fé (S. Dias cita, por exemplo, com toda a consideração, Roosevelt, Trumann, Marshall, Atlee, Blum — protestantes, maçons, judeus, e pelo pensamento autênticas nulidades) fazem com que a sua semente pretensamente renovadora e religiosa esteja breve destinada a desaparecer para maior glória das Lojas e do Semitismo universal.
António José de Brito
(In «Mensagem» n.º 14, 23.12.1948)
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O ponto de partida personalista
Em vários passos do seu livro repudia J. S. da Silva Dias a ideia da liberdade considerada como um fim em si, ideia que com muita justeza identifica com «o reinado do ponto de vista e do cepticismo». Afirma, realmente, este que todas as verdades se equivalem; da mesma forma, partindo da liberdade como critério todos os actos são bons desde que sejam produtos duma vontade não constrangida. Posições paralelas como se vê e que de resto se revelam insustentáveis, pois se as verdades se equivalem que títulos apresenta o cepticismo para exigir que se acredite nele? E se todos os actos livres são bons como se poderá condenar do ponto de vista liberal os actos dos indivíduos que neguem a liberdade?
A esta concepção, meramente formal, contrapõe Silva Dias o preceito tradicional de que a liberdade é «um meio... subordinado ao dever (na aceitação dos fins)».
Surge, nesse momento, o problema crucial da hierarquia dos fins a aceitar, surge a questão da tábua de valores donde devemos partir.
Faz aqui a sua aparição o personalismo ético. Segundo esta doutrina há que distinguir no homem dois aspectos diversos: o indivíduo e a pessoa. O indivíduo é em si imperfeito, frágil, incompleto, só podendo existir como parte dum todo, a pessoa é na ordem natural o que há de mais elevado, é autónoma, é ela mesma um todo. Desta forma, o indivíduo tem como fim o ente de que é uma parte — a sociedade — mas esta é por sua vez um mero instrumento em relação à pessoa.
Por isso, quanto à independência individual pertence ao Estado discipliná-la: «incumbe-lhe harmonizar o seu exercício com as exigências do bem-comum, de modo que a minha liberdade não tolha a do meu vizinho, nem ambas tolham a de todos». Compete-lhe, no mesmo sentido, «defender e incorporar nas leis os valores, os ideais e os princípios que constituem o fundo ideológico comum do povo respectivo e são o ingrediente fundamental da paz civil». Além disso, «pode e deve intervir na defesa da moral e do direito... na medida em que a paz social exige ou permite». É claro, porém, que «para lá deste limite imperioso da liberdade individual existe uma vasta esfera em que só o Estado totalitário ousará intervir. É justamente nesse domínio que a liberdade da pessoa goza de soberania perante a autoridade do Estado».
Tais são os princípios personalistas que os seus defensores apresentam como uma superação do Liberalismo do século XIX. Estes preceitos básicos, contudo, encontram-se já nessa cartilha do pensamento político da passada centúria que foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nela se afirmam igualmente os limites da liberdade: pois esta consiste «em poder fazer tudo que não prejudique a outrém», mas, igualmente, também nela se afirma que o fim da sociedade é a manutenção e defesa dos direitos naturais do homem. As diferenças residem pois na terminologia.
Silva Dias fala em «ingredientes da paz civil» e da «paz social» que ao Estado compete defender; a Declaração, no equilíbrio das liberdades, missão que pode perfeitamente comportar a extensão dos poderes públicos bem além do laissez faire, laissez passer (como por exemplo o frisou Parodi no seu "Traditionalisme et Democratie") e ambos — Silva Dias e a Declaração — para além da Comunidade erguem imediatamente, em concordância notável, a «soberania de pessoa» dum lado e os «direitos naturais do homem» do outro.
Pondo de parte, porém, o problema de filiação histórica do personalismo, interessa discutir e determinar o seu valor racional.
Para se considerar a pessoa um fim seria necessário que esta fosse na ordem natural perfeita, valiosa em si e por si, logo incapaz de errar e de enganar-se. Doutra forma, reclamar a liberdade para ela, seria reclamar a liberdade para o erro e a mentira. Ora tendo de admitir-se que a pessoa é dotada de livre arbítrio sem o qual seria um ser inanimado, uma coisa e não pessoa, a união da Liberdade e da Perfeição, indica que ela é um Absoluto cuja vontade traz consigo pelo simples facto de querer o Bem e o Racional. Ora ao lado da pessoa situa-se o indivíduo, a pluralidade dos indivíduos e daqui se vê que sendo a primeira um Absoluto e a Perfeição contradiz em si todas as características dos últimos (não se podem admitir vários Absolutos porque então nenhum deles seria Absoluto). E como não é possível admitir num sujeito uno, idêntico a si mesmo, atributos contraditórios, a solução consiste em negar a unidade e a identidade do composto humano. Solução a que conduz a lógica da doutrina, pois se o homem é uno todos os actos seus teriam de ser julgados em função dum critério que os englobasse sem distinções e não determinados actos em função de valores para a pessoa, como se não fosse o mesmo homem no seu eu «que unifica os diversos elementos» (Louis Lachance, o.p.) quem estivesse presente nuns e noutros.
E não se pense um minuto em defender a solução personalista admitindo uma separação entre os dois elementos do homem mais acentuada ainda do que a separação cartesiana de alma e corpo. Se estão situados em dois planos ontológicos diversos é inútil proclamar os direitos da pessoa em face do Estado e defendê-los com ardor. Seria impossível a este, a essência, atentar contra ela. A sociedade estaria situada num domínio completamente alheio ao espírito que não poderia ofender.
Será, no entanto, totalmente, de repudiar a distinção entre indivíduo e pessoa? Não! Mas há que concebê-la - de maneira diferente do personalismo — antes como duas possibilidades do ser humano que ao mesmo tempo não pode realizar uma e outra coisa. O homem só pode conquistar dimensão moral procurando tornar suas, isto é, procurando executar as normas ditadas por um Bem objectivo que se situa acima dele. Essas Normas reúnem a todos numa comunidade, numa unidade de obras, em que o indivíduo supera a sua particularidade para se tornar então uma pessoa que em si mesmo recebe o dom divino da universalidade. Na medida em que se distingue, se isola egoisticamente dos seus semelhantes, apresenta toda a sua imperfeição e insuficiência, na medida em que nega o seu eu empírico para se tornar família, Nação, Estado, adquire então valor ético e é homem no sentido elevado da palavra. A Comunidade não existe como coisa transcendente em que ele se submerja e desapareça, existe para o seu aperfeiçoamento, mas o seu aperfeiçoamento não existe sem a Comunidade, de modo que um sem o outro não são compreensíveis, um círculo dialéctico os ligando, como o indissolúvel vínculo fora do qual só há a barbárie e o caos.
A noção de Democracia
Assente como premissa o personalismo, J. S. da Silva Dias procura no terreno das instituições uma solução intermédia entre dois enormes males: a Ditadura, estrutura política do totalitarismo opressor, e o Demo-liberalismo, estrutura do Individualismo anárquico.
Apregoando, no ponto de vista teórico, dum lado a subordinação do indivíduo, do outro a liberdade da pessoa, Silva Dias, procura estabelecer no terreno político uma tendência de equilíbrio negando o exclusivismo anti-partidarista e o uso do poder pessoal característico das Ditaduras, mas repudiando por forma análoga a «democracia opinativa» em que «os governantes não mandam por direito próprio» em que se «discute o caminho mais seguro para o predomínio anárquico das sociedades particulares sobre a sociedade política e o despotismo de uma sobre outra classe». As suas soluções tendem por um lado a assegurar a autoridade necessária do Estado, do outro a limitá-lo para que se não torne Leviatã.
No primeiro sentido, repudia o parlamentarismo achando que «Legislativo e executivo devem ser ambos soberanos, independentes e autónomos» com a restrição de que o executivo não pode revogar as leis emanadas do segundo nem tão pouco legislar em sentido contrário ao que imprimiu ao direito, «mas pode legislar nos casos particulares e de urgente necessidade pública» e reforça a competência por meio da representação orgânica.
No sentido contrário exige que os governantes sejam «designados pelo povo», sendo essa designação por sufrágio atomístico na eleição dos organismos bases (freguesias) e do Chefe de Estado, e por sufrágio universal ou por sufrágio universal e sufrágio orgânico nos Parlamentos políticos: «Está bem que haja uma ou duas assembleias representativas das opiniões individuais, mas ao lado delas ou constituindo parte delas devia existir uma representação de família, da profissão, do emprego, do concelho, etc.». A escolha dos governantes exige, em circunstâncias normais, o direito de formar partidos políticos.
Colocando-se no ponto de vista do autor ao exigir reforço da autoridade do Estado, não é difícil reconhecer que os meios empregados são péssimos. Reforçar a autoridade é reforçar a sua unidade, reforçar a sua unidade é inconcebível com dois poderes autónomos independentes e soberanos. Montesquieu, o teórico da separação dos poderes, pedia-a como garantia da liberdade, como método para o Estado se manter nos seus limites, não para assentar em base sólida o seu poderio.
Quanto ao resto a Democracia-Cristã só traz como novidade a adopção parcial do sufrágio corporativo. Ora este na representação de interesses como guia consultivo pode servir; na designação dos governantes não lhes dá competência no ponto de vista do interesse nacional. A soma da vontade dos indivíduos ou grupos nunca conseguirá atingir o todo.
De resto para quem repelir a miragem duma pessoa isolada e superior à sociedade o problema não consiste em rodear o Estado de barreiras mas antes em descobrir o processo para que seja cada vez mais Estado, isto é, realidade ética. Trata-se não de restringir o poder dos governantes, mas de dirigi-los no sentido do interesse geral. Como esse interesse é uma unidade, a primeira condição requerida consiste na unidade de poder — logo governo pessoal.
E, para que esse governo não resulte uma tirania arbitrária do Chefe, há que fazer coincidir pelo melhor processo o interesse geral com o seu interesse privado pela sucessão hereditária do poder. Abandonado o fantasma das restrições externas do Estado surge, assim, a Monarquia autoritária como garantia interna suprema da perpetuidade do Estado ou seja da Pátria.
Considerações sociológicas
Procura traçar o autor no breve ensaio destinado ao estudo da «sorte dos conservadores» a oposição psicológica-social entre aqueles que vivem com os olhos no passado «embalados pelos braços da tradição, com as suas proezas heróicas e os seus rasgos de generosidade» e os que permanecem de «olhos fitos no mundo utópico que há-de vir, só nele vendo uma condição político-social digna». Estes dois tipos na sua pureza são casos limites em torno dos quais oscilam os movimentos humanos. Realmente a pura tendência conservadora não existe nem pode existir. Na vida, as gerações sucedem-se, os costumes mudam, o movimento é uma realidade.
A mera tendência defensiva traz consigo o gérmen da derrota. Aqueles que se esquecem de agir, fazem, apenas, com que os outros ajam em seu lugar. Este repúdio do conservantismo estático poderá entender-se, no entanto, como a aceitação duma terceira posição, renovadora no sentido de Silva Dias, isto é, duma terceira posição que aceite os acontecimentos novos para a eles se adaptar, sem contudo os criar? Não! Trata-se antes de coisa bem diferente, trata-se de adoptar aquele «conservantismo revolucionário» (defendido por Moeller van der Bruck) que, baseado nos seus princípios é ele mesmo o dirigente da História, aquele conservantismo que não aceita acontecimentos criados por forças alheias e hostis para nelas humildemente se infiltrar, mas antes vive numa contínua auto-superação, numa contínua «permanência na renovação», num dinamismo perpétuo que pela solidez das ideias e audácia da obra o torne um sempre jovem triunfador.
No segundo ensaio, dedicado ao «drama da hora presente», Silva Dias estuda a genealogia dos diversos humanismos contemporâneos. Partindo do colapso da burguesia, do fracasso desta na realização do seu «culto da dignidade humana» afirma que a esta restou-lhe o apegar-se aos seus privilégios e regalias por meio do Fascismo, «reduto embora contrafeito do mundo conservador» ou o caminhar no sentido do comunismo que não distinguindo entre pessoa e indivíduo e tendo do homem uma noção prevalentemente materialista não pode deixar de se apresentar como uma tentativa de libertação do homem. Contra estas místicas e reassumindo o ideal da verdadeira dignidade humana surge o Personalismo, etc.
A afirmação — exacta, talvez — de que no Fascismo se recolheu «embora com intenção de desembaraçar-se do aliado» parte da burguesia liberal, faz reflectir, porém, num interessante ponto da vida futura da mística demo-cristã.
Quem se acolhe a ela? Surge como um movimento de pura renovação? Parece bem que pelo contrário os resíduos do liberalismo se lhe dirigem com uma satisfação evidente e que a sua democracia-cristã é cada vez mais democracia e cada vez menos cristã. Nas suas fileiras infiltram-se mais e mais crentes duvidosos mas democratas convictos. A sua doutrina procurando satisfazer melhor o ideal revolucionário de 89 e a sua benevolência para todos os que partilham do mesmo ideal de «dignidade humana» embora inimigos da Fé (S. Dias cita, por exemplo, com toda a consideração, Roosevelt, Trumann, Marshall, Atlee, Blum — protestantes, maçons, judeus, e pelo pensamento autênticas nulidades) fazem com que a sua semente pretensamente renovadora e religiosa esteja breve destinada a desaparecer para maior glória das Lojas e do Semitismo universal.
António José de Brito
(In «Mensagem» n.º 14, 23.12.1948)
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