quinta-feira, junho 30, 2005
DA NAÇÃO, DO HOMEM E DO INTERESSE NACIONAL
É possível considerar a Nação um somatório de uns tantos indivíduos e instituições, e aludir, assim, à vontade real da Nação como o produto das decisões, provavelmente eleitorais, desses indivíduos e instituições, as últimas expressas através dos seus representantes.
Não importa discutir, aqui, se esta concepção de nação é ou não exacta. O que importa acentuar é que ela se afasta, radicalmente, da que é tradicional encontrar em autores nacionalistas ou até, simplesmente, de direita.
Para o nacionalista, a Nação é uma entidade histórica que está para além dos indivíduos e das instituições, permanece enquanto estes passam e vão sendo substituídos. Ela representa um património moral comum, cuja conservação e aperfeiçoamento constitui um dever para indivíduos e instituições.
Em rigor, do ponto de vista do nacionalismo, não há uma vontade nacional porque a Nação não é um ente real com um querer próprio; mas, a admitir-se uma vontade da nação, esta não será a dos indivíduos mais a das instituições, e, apenas, a do governante legítimo que personifica a colectividade e, situando-se acima de quaisquer entidades particulares em vez de delas receber directrizes, as integra no serviço da Pátria. Em todo o caso, para evitar equívocos, o nacionalismo prefere falar, não na vontade nacional, mas sim no interesse nacional, no bem comum, a que as vontades, quer das pessoas quer dos grupos, se devem subordinar. E sempre por ele foi proclamado que o interesse nacional, o bem comum, não era um simples agregado de bens singulares, fossem eles dos indivíduos ou das instituições ou dos indivíduos e das instituições mesclados.
Maurras ensinava que «L`association est autre chose que l`addition des associés» (1). E o prof. Marcello Caetano, que não pode passar por um extremista, mesmo nas suas fases de estadonovismo mais intenso e ortodoxo, escrevia, com naturalidade, no volume "O Sistema Corporativo", como se tratasse de coisa ultra conhecida: «Desde que a nação é uma sociedade distinta das sociedades secundárias que a constituem, o interesse nacional não é a soma dos interesses individuais» (2).
É claro que se pode (com ou sem razão) discordar destes pontos de vista, e perfilhar teses diametralmente opostas e sustentar-se que a nação reduz-se aos cidadãos e aos corpos sociais adicionados; o que todavia não se pode fazer decentemente é baptizar essa concepção, mestiça de democracia individualista e democracia dita orgânica, de nacionalista, a menos que ao termo nacionalismo se dê o mais extravagante dos significados.
De qualquer modo, contudo, adopte-se ou não o conceito nacionalista de Nação, o que se assemelha completamente insustentável é que se afirme que uma determinada nação é necessariamente democrática. Isso não passa de um absurdo, pois o destino superior da nação não deve depender dos caprichos de votos individuais ou grupais. E da perspectiva não-nacionalista, não se vislumbra como é que a vontade popular é vinculada, por força, a um determinado regime ou sistema. Se se deseja respeitar semelhante vontade, é melhor aceitar o que ela, autonomamente, deliberar, em vez de decretar, como às vezes se faz, que a nação respeitará as instituições que a compõem. Talvez se se falasse na famosa vontade nacional indivíduo-grupalista, a declaração tivesse mais razoabilidade. Estaria a prescrever-se a tal vontade a proibição do suicídio, pela destruição daquilo que é em parte seu suporte.
Mas se se formular tal regra é porque a vontade em questão tem a possibilidade de se auto-aniquilar, sendo pois, capaz dos maiores desvarios. E então justificar-se-á que a proclamem merecedora de respeito e acatamento?
É uma cláusula de estilo, hoje em dia, a asserção que a nação deve encarar o homem qual coisa sagrada. Talvez isso seja lógico, para os que a reduzem exactamente às pessoas e agrupamentos. Depois de se pretender que cumpra respeitar os seus grupos constitutivos, é lógico que se julgue que ela deve também respeitar intensamente, o homem, que é o seu outro elemento de base. Como assenta neste e naqueles, que lhes tire o chapéu está bem, ainda que, ao que parece, a vontade nacional possa cometer proezas perigosas a esse respeito, o que explica a necessidade de normas e prescrições...
Mas a nação entendida à maneira nacionalista terá igualmente de prosternar-se perante o homem? Reflictamos.
Não há na actualidade quem não fale, com prolixidade abundância, na dignidade do homem. É indiscutível que, para o católico, o homem tem um fim último que transcende a comunidade política. Só que esse fim não confere ao homem nenhuma dignidade especial, porque ele pode desrespeitá-lo e repeli-lo. Dignidade apenas e só pode haver na maneira como se procede e, em semelhante conjuntura mais do que dignidade do homem ela é dignidade de certos homens — dos homens honestos — ou seja, passe o paradoxo, é dignidade dos homens dignos.
E para quê falar, então, na dignidade do homem em geral como se a possuíssem os judas, os traidores, os hipócritas, os pseudo-portugueses sem fé nem lei?
Virão a tê-la, se se arrependerem? Com certeza! Mas a potência não se confunde com o acto, e poder vir a ser algo, se se quiser, não é o mesmo que sê-lo já, porque só o querer mudar de rumo, já, não vem a ser nada.
O homem não possui outra dignidade que não seja a de cumprir os seus deveres para com a sociedade em que nasceu e para com Deus. E, se assim for, a que título irá a nação respeitar uma dignidade, inexistente em si, e que só toma corpo, passando, exactamente, pela devoção à pátria e desta é indissociável?
Em nossa opinião, em nenhum caso, o homem é um fim em si porque tem o poder de destruir-se, e como admitir um fim em si que possa auto-destruir-se, isto é, desejar suprimir o que por hipótese é bom?
O homem tem fins (não é um fim) uns mais valiosos do que outros, e é realizando-os que ele vale alguma coisa, como é negando-os que merece ser punido às vezes até com danação eterna. Mas se isto é verdade — e é-o sem discussão — para quê se procede à apoteose frenética da pessoa humana, independentemente da sua conduta recta ou má?
A adoração do homem é uma característica da nossa desvairada idade. Mas seria excelente que a não cultivassem os que pretendem opor-se aos erros modernos e restabelecer as justas hierarquias.
António José de Brito
Notas:
1 –Charles Maurras, Politique Réligieuse, 3.ª ed., p. 222.
2 - Marcello Caetano, O Sistema Corporativo, p. 51.
(In «A Rua», n.º 206, pág. 9, 22.05.1980)
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Não importa discutir, aqui, se esta concepção de nação é ou não exacta. O que importa acentuar é que ela se afasta, radicalmente, da que é tradicional encontrar em autores nacionalistas ou até, simplesmente, de direita.
Para o nacionalista, a Nação é uma entidade histórica que está para além dos indivíduos e das instituições, permanece enquanto estes passam e vão sendo substituídos. Ela representa um património moral comum, cuja conservação e aperfeiçoamento constitui um dever para indivíduos e instituições.
Em rigor, do ponto de vista do nacionalismo, não há uma vontade nacional porque a Nação não é um ente real com um querer próprio; mas, a admitir-se uma vontade da nação, esta não será a dos indivíduos mais a das instituições, e, apenas, a do governante legítimo que personifica a colectividade e, situando-se acima de quaisquer entidades particulares em vez de delas receber directrizes, as integra no serviço da Pátria. Em todo o caso, para evitar equívocos, o nacionalismo prefere falar, não na vontade nacional, mas sim no interesse nacional, no bem comum, a que as vontades, quer das pessoas quer dos grupos, se devem subordinar. E sempre por ele foi proclamado que o interesse nacional, o bem comum, não era um simples agregado de bens singulares, fossem eles dos indivíduos ou das instituições ou dos indivíduos e das instituições mesclados.
Maurras ensinava que «L`association est autre chose que l`addition des associés» (1). E o prof. Marcello Caetano, que não pode passar por um extremista, mesmo nas suas fases de estadonovismo mais intenso e ortodoxo, escrevia, com naturalidade, no volume "O Sistema Corporativo", como se tratasse de coisa ultra conhecida: «Desde que a nação é uma sociedade distinta das sociedades secundárias que a constituem, o interesse nacional não é a soma dos interesses individuais» (2).
É claro que se pode (com ou sem razão) discordar destes pontos de vista, e perfilhar teses diametralmente opostas e sustentar-se que a nação reduz-se aos cidadãos e aos corpos sociais adicionados; o que todavia não se pode fazer decentemente é baptizar essa concepção, mestiça de democracia individualista e democracia dita orgânica, de nacionalista, a menos que ao termo nacionalismo se dê o mais extravagante dos significados.
De qualquer modo, contudo, adopte-se ou não o conceito nacionalista de Nação, o que se assemelha completamente insustentável é que se afirme que uma determinada nação é necessariamente democrática. Isso não passa de um absurdo, pois o destino superior da nação não deve depender dos caprichos de votos individuais ou grupais. E da perspectiva não-nacionalista, não se vislumbra como é que a vontade popular é vinculada, por força, a um determinado regime ou sistema. Se se deseja respeitar semelhante vontade, é melhor aceitar o que ela, autonomamente, deliberar, em vez de decretar, como às vezes se faz, que a nação respeitará as instituições que a compõem. Talvez se se falasse na famosa vontade nacional indivíduo-grupalista, a declaração tivesse mais razoabilidade. Estaria a prescrever-se a tal vontade a proibição do suicídio, pela destruição daquilo que é em parte seu suporte.
Mas se se formular tal regra é porque a vontade em questão tem a possibilidade de se auto-aniquilar, sendo pois, capaz dos maiores desvarios. E então justificar-se-á que a proclamem merecedora de respeito e acatamento?
É uma cláusula de estilo, hoje em dia, a asserção que a nação deve encarar o homem qual coisa sagrada. Talvez isso seja lógico, para os que a reduzem exactamente às pessoas e agrupamentos. Depois de se pretender que cumpra respeitar os seus grupos constitutivos, é lógico que se julgue que ela deve também respeitar intensamente, o homem, que é o seu outro elemento de base. Como assenta neste e naqueles, que lhes tire o chapéu está bem, ainda que, ao que parece, a vontade nacional possa cometer proezas perigosas a esse respeito, o que explica a necessidade de normas e prescrições...
Mas a nação entendida à maneira nacionalista terá igualmente de prosternar-se perante o homem? Reflictamos.
Não há na actualidade quem não fale, com prolixidade abundância, na dignidade do homem. É indiscutível que, para o católico, o homem tem um fim último que transcende a comunidade política. Só que esse fim não confere ao homem nenhuma dignidade especial, porque ele pode desrespeitá-lo e repeli-lo. Dignidade apenas e só pode haver na maneira como se procede e, em semelhante conjuntura mais do que dignidade do homem ela é dignidade de certos homens — dos homens honestos — ou seja, passe o paradoxo, é dignidade dos homens dignos.
E para quê falar, então, na dignidade do homem em geral como se a possuíssem os judas, os traidores, os hipócritas, os pseudo-portugueses sem fé nem lei?
Virão a tê-la, se se arrependerem? Com certeza! Mas a potência não se confunde com o acto, e poder vir a ser algo, se se quiser, não é o mesmo que sê-lo já, porque só o querer mudar de rumo, já, não vem a ser nada.
O homem não possui outra dignidade que não seja a de cumprir os seus deveres para com a sociedade em que nasceu e para com Deus. E, se assim for, a que título irá a nação respeitar uma dignidade, inexistente em si, e que só toma corpo, passando, exactamente, pela devoção à pátria e desta é indissociável?
Em nossa opinião, em nenhum caso, o homem é um fim em si porque tem o poder de destruir-se, e como admitir um fim em si que possa auto-destruir-se, isto é, desejar suprimir o que por hipótese é bom?
O homem tem fins (não é um fim) uns mais valiosos do que outros, e é realizando-os que ele vale alguma coisa, como é negando-os que merece ser punido às vezes até com danação eterna. Mas se isto é verdade — e é-o sem discussão — para quê se procede à apoteose frenética da pessoa humana, independentemente da sua conduta recta ou má?
A adoração do homem é uma característica da nossa desvairada idade. Mas seria excelente que a não cultivassem os que pretendem opor-se aos erros modernos e restabelecer as justas hierarquias.
António José de Brito
Notas:
1 –Charles Maurras, Politique Réligieuse, 3.ª ed., p. 222.
2 - Marcello Caetano, O Sistema Corporativo, p. 51.
(In «A Rua», n.º 206, pág. 9, 22.05.1980)
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DA POLÍTICA E DO PENSAMENTO
Não há acção coerente e estável que não seja iluminada por uma doutrina, como não há teoria, por mais neutra que pretenda ser, que não tenha uma projecção (ainda que meramente negativa) na prática.
Por isso mesmo, é que qualquer política tem, na sua base, uma concepção do mundo e sobretudo, do homem. Se a esquerda, como muito bem sublinhou Vasco Pulido Valente, se caracteriza pela paixão da liberdade e da igualdade, é porque assenta numa ideia de homem optimista, directamente bebida em Pangloss. É claro que o homem deve ser livre, se for naturalmente bom, se o mal não lhe puder ser imputado, se tudo o que fizer se encontrar alheio às catástrofes e malfeitorias de que o universo está repleto (os culpados sendo a sociedade, o fascismo, a reacção, etc). Pois como se compreenderia que fossem colocados obstáculos, peias, limites a um ente que é a bondade em pessoa? Como seria legítimo que o submetessem ao que quer que fosse, que o governassem, que sobre ele impendesse uma autoridade?
A anarquia é, assim, a meta lógica da ideologia da liberdade. E se o homem é naturalmente bom e o mal não lhe pode ser imputado, todos os actos humanos serão louváveis, sem discriminação. Nessa altura, serão também equivalentes entre si, isto é, por outras palavras, serão iguais. Mas, se todos os actos humanos são iguais, os sujeitos que os praticam sê-lo-ão da mesma forma, uma vez que se não pode distinguir entre os que agem com equilíbrio e seriedade e os que agem dispatarada ou torpemente. Em suma, não há padrão valorativo que permita destrinçar os vários homens e submetê-los a um juízo axiológico. Não existe, portanto, coisa alguma que esteja acima deles e, da igualdade, exactamente como da liberdade, se deduz, sem hesitação, o anarquismo. Este é o cerne, a conclusão básica dos princípios da esquerda.
Em contrapartida, uma concepção do homem que veja nele um ser imperfeito, imagem de Deus, sim, muito afastada, porém, do seu infinito modelo, dotado de um querer livre e falível, capaz de tanto realizar o bem como o mal, já não implica a idolatria da liberdade e da igualdade, antes conduz a ver nas tendências anarquistas um enorme absurdo. Se há ente que precisa de ser governado é o homem, muito mais do que as forças da natureza e os animais.
À liberdade do homem há que pôr todas as barreiras para que só se exerça no sentido que é valioso, para que não ofenda os seus semelhantes e, em especial, não atente contra as normas superiores que do Absoluto derivam.
Autoridade é, portanto, um dogma fundamental, a condição necessária de toda a civilização, ainda que não seja condição suficiente. E quem diz autoridade diz submissão da liberdade ao que a controle e guie.
Por outro lado, se os homens não são o bem personificado, haverá sempre que distingui-los em função do seu comportamento e, até, das suas capacidades para, com maior ou menor eficiência, servirem os valores (o que não implica já uma apreciação moral e tão só uma apreciação exclusivamente técnica). De qualquer modo, no lugar da igualdade aparece-nos uma outra exigência — a da hierarquia: hierarquia de méritos e hierarquia de competências. E quem diz hierarquia, diz sobreposição de poderes de grau em grau até ao poder mais alto. Em vez da anarquia, de novo nos surge o requisito da autoridade.
Simplesmente, um problema se levanta aqui. Autoridade, sim, dir-se-á, autoridade que tenha por finalidade o estabelecimento e a garantia do que seja objectivamente válido, com plena independência do arbítrio dos homens; autoridade, enfim, guardiã dos interesses da Pátria concebida como um ser que engloba e ultrapassa os indivíduos e estes têm por obrigação categórica de respeitar. Tudo isso estaria óptimo e seria esplêndido. Só acontece que a autoridade unicamente pode ser exercida por homens e que se os homens são imperfeitos e capazes de praticar o mal, como é que a autoridade lhes será confiada? Se no entanto não lhes for confiada não há afinal quem a exerça.
Mais ainda: como é que a autoridade, exercida por homens, conseguirá obviar aos defeitos deles, se são eles que a manejam?
A dificuldade, se é de monta, não a consideramos insuperável. Repare-se que, se os homens exercem a autoridade, não são a autoridade. As instituições podem enquadrá-los de tal maneira que eles, exclusivamente, ponham em acto um poder impessoal que não se identifique com os seus quereres subjectivos. Por certo que as instituições são criadas pelos homens, mas estes criam-nas superando-se a si próprios, vencendo a sua particularidade e as suas limitações. Já Maurras afirmava que «par l`institution l`homme s`éternise». Com efeito, as instituições ficam, os homens passam. As instituições boas são, assim, a eternização do que o homem tem de bom. Nessa medida, e dada a sua perenidade, é-lhes possível transformar e objectivar as transitórias vontades dos homens que corporizem a soberania. A questão institucional é, assim, das decisivas. Impõe-se fomentar as instituições em que a autoridade se aproprie dos homens que a executem e não estes se apropriem da autoridade para os seus projectos privados.
É óbvio que esta solução assenta na tese que aos homens é possível superar-se e erguer algo para além das suas individualidades passageiras. Para quem negue semelhante possibilidade, instituições não passam de palavras, de meros nomes a que não corresponde nenhuma espécie de realidade.
Há aqui uma divergência ontológica acerca das potencialidades humanas com repercussões políticas patentes, tal como têm repercussões políticas as divergências axiológicas acerca das relações entre o homem e o bem.
Resumindo: não há noção do Estado e da comunidade, que não assente numa Weltanschauung, uma visão do mundo e da vida. E como uma Weltanschauung, quando racionalmente justificada e estruturada, é uma filosofia, supomos lícito sustentar que não há conceitos sólidos de governação e de sociedade que não necessitem de uma filosofia.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 200, pág. 7, 10.04.1980)
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Por isso mesmo, é que qualquer política tem, na sua base, uma concepção do mundo e sobretudo, do homem. Se a esquerda, como muito bem sublinhou Vasco Pulido Valente, se caracteriza pela paixão da liberdade e da igualdade, é porque assenta numa ideia de homem optimista, directamente bebida em Pangloss. É claro que o homem deve ser livre, se for naturalmente bom, se o mal não lhe puder ser imputado, se tudo o que fizer se encontrar alheio às catástrofes e malfeitorias de que o universo está repleto (os culpados sendo a sociedade, o fascismo, a reacção, etc). Pois como se compreenderia que fossem colocados obstáculos, peias, limites a um ente que é a bondade em pessoa? Como seria legítimo que o submetessem ao que quer que fosse, que o governassem, que sobre ele impendesse uma autoridade?
A anarquia é, assim, a meta lógica da ideologia da liberdade. E se o homem é naturalmente bom e o mal não lhe pode ser imputado, todos os actos humanos serão louváveis, sem discriminação. Nessa altura, serão também equivalentes entre si, isto é, por outras palavras, serão iguais. Mas, se todos os actos humanos são iguais, os sujeitos que os praticam sê-lo-ão da mesma forma, uma vez que se não pode distinguir entre os que agem com equilíbrio e seriedade e os que agem dispatarada ou torpemente. Em suma, não há padrão valorativo que permita destrinçar os vários homens e submetê-los a um juízo axiológico. Não existe, portanto, coisa alguma que esteja acima deles e, da igualdade, exactamente como da liberdade, se deduz, sem hesitação, o anarquismo. Este é o cerne, a conclusão básica dos princípios da esquerda.
Em contrapartida, uma concepção do homem que veja nele um ser imperfeito, imagem de Deus, sim, muito afastada, porém, do seu infinito modelo, dotado de um querer livre e falível, capaz de tanto realizar o bem como o mal, já não implica a idolatria da liberdade e da igualdade, antes conduz a ver nas tendências anarquistas um enorme absurdo. Se há ente que precisa de ser governado é o homem, muito mais do que as forças da natureza e os animais.
À liberdade do homem há que pôr todas as barreiras para que só se exerça no sentido que é valioso, para que não ofenda os seus semelhantes e, em especial, não atente contra as normas superiores que do Absoluto derivam.
Autoridade é, portanto, um dogma fundamental, a condição necessária de toda a civilização, ainda que não seja condição suficiente. E quem diz autoridade diz submissão da liberdade ao que a controle e guie.
Por outro lado, se os homens não são o bem personificado, haverá sempre que distingui-los em função do seu comportamento e, até, das suas capacidades para, com maior ou menor eficiência, servirem os valores (o que não implica já uma apreciação moral e tão só uma apreciação exclusivamente técnica). De qualquer modo, no lugar da igualdade aparece-nos uma outra exigência — a da hierarquia: hierarquia de méritos e hierarquia de competências. E quem diz hierarquia, diz sobreposição de poderes de grau em grau até ao poder mais alto. Em vez da anarquia, de novo nos surge o requisito da autoridade.
Simplesmente, um problema se levanta aqui. Autoridade, sim, dir-se-á, autoridade que tenha por finalidade o estabelecimento e a garantia do que seja objectivamente válido, com plena independência do arbítrio dos homens; autoridade, enfim, guardiã dos interesses da Pátria concebida como um ser que engloba e ultrapassa os indivíduos e estes têm por obrigação categórica de respeitar. Tudo isso estaria óptimo e seria esplêndido. Só acontece que a autoridade unicamente pode ser exercida por homens e que se os homens são imperfeitos e capazes de praticar o mal, como é que a autoridade lhes será confiada? Se no entanto não lhes for confiada não há afinal quem a exerça.
Mais ainda: como é que a autoridade, exercida por homens, conseguirá obviar aos defeitos deles, se são eles que a manejam?
A dificuldade, se é de monta, não a consideramos insuperável. Repare-se que, se os homens exercem a autoridade, não são a autoridade. As instituições podem enquadrá-los de tal maneira que eles, exclusivamente, ponham em acto um poder impessoal que não se identifique com os seus quereres subjectivos. Por certo que as instituições são criadas pelos homens, mas estes criam-nas superando-se a si próprios, vencendo a sua particularidade e as suas limitações. Já Maurras afirmava que «par l`institution l`homme s`éternise». Com efeito, as instituições ficam, os homens passam. As instituições boas são, assim, a eternização do que o homem tem de bom. Nessa medida, e dada a sua perenidade, é-lhes possível transformar e objectivar as transitórias vontades dos homens que corporizem a soberania. A questão institucional é, assim, das decisivas. Impõe-se fomentar as instituições em que a autoridade se aproprie dos homens que a executem e não estes se apropriem da autoridade para os seus projectos privados.
É óbvio que esta solução assenta na tese que aos homens é possível superar-se e erguer algo para além das suas individualidades passageiras. Para quem negue semelhante possibilidade, instituições não passam de palavras, de meros nomes a que não corresponde nenhuma espécie de realidade.
Há aqui uma divergência ontológica acerca das potencialidades humanas com repercussões políticas patentes, tal como têm repercussões políticas as divergências axiológicas acerca das relações entre o homem e o bem.
Resumindo: não há noção do Estado e da comunidade, que não assente numa Weltanschauung, uma visão do mundo e da vida. E como uma Weltanschauung, quando racionalmente justificada e estruturada, é uma filosofia, supomos lícito sustentar que não há conceitos sólidos de governação e de sociedade que não necessitem de uma filosofia.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 200, pág. 7, 10.04.1980)
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quarta-feira, junho 29, 2005
PROGRESSO OU RETROCESSO?
Em certos ambientes da chamada direita europeia, apresentadas pelos seus defensores como a derradeira palavra do saber, renasceram, hoje em dia, umas tantas ideias que não passam de velhos mitos, já muitas vezes ultrapassados e refutados, vestidos agora com roupagens de uma pretensa última moda.
A superstição da ciência, que bastantes estragos causou no século XIX, volta actualmente a dominar determinados meios, e vemos pessoas que se proclamam católicas, espiritualistas, antimaterialistas, a procurar, afanosamente, fundamentar as suas posições políticas nas disciplinas que estudam a conduta dos animais (como se o homem se limitasse à sua pura animalidade), ou nas que analisam o estilo de vida dos selvagens (como se a selvajaria fosse um paradigma definitivo), ou, ainda, nas que tudo explicam pelas pulsões inconscientes (como se o livre arbítrio e as responsabilidades pessoais fossem puras ilusões).
Não se trata, sequer, de proceder como Maurras, que, aproveitando o cientismo reinante na sua época, afirmou que as sociedades tinham também leis específicas como as que regiam as restantes realidades e procurou construir uma ciência política irredutível às outras ciências e de índole, aliás, predominantemente racional. Não! O que se faz presentemente, é reduzir o plano político ao nível do zoológico e do biológico. E, ao invés de Maurras, que não pretendia que a ciência política ditasse os fins a visar, mas antes que semelhantes fins é que orientassem as investigações da ciência política, bom número de teóricos contemporâneos que se proclamam de direita, não hesitam em sustentar que as normas de acção e os valores devem ser extraídos da ciência empírica e não o contrário.
Esquece-se, assim, o que é um ensinamento permanente da razão e repetidas vezes foi invocado, contra o positivismo, pelos pensadores mais poderosos do nosso tempo, a saber: que a ciência é meramente descritiva e que da simples factualidade empírica não é possível retirar qualquer imperativo dotado de validade. São, igualmente, factos empíricos os maiores monumento de abjecção e os prodígios de heroísmo, o 25 de Abril e a defesa do Alcazar. E se é uma lei científica que o arsénico, em boas doses, produz a morte, vamos passar a envenenar pessoas?
A ciência diz-nos o que é, aponta-nos o real. Mas o que é, pode ser o mal e o erro, o real pode ser quer bom quer mau. Há seres e realidades excelentes, como há seres e realidades abomináveis.
De resto, se aceitarmos e aplaudirmos todas as realidades porque realidades, então teremos de, simultaneamente, aplaudir e aceitar a tese oposta ao ponto de vista de que se deve aplaudir e aceitar a realidade porque realidade, uma vez que tal tese, existindo, também é uma realidade.
O cientismo implica desse modo a adesão ao anticientismo.
Em ética e política buscar apoio nos denominados avanços da ciência não passa de uma atitude altamente regressiva. Arvorar em mestres neopositivistas, como Louis Rougier, ou (em certa medida) Karl Popper, ou um étologo como Konrad Lorenz, é para a autêntica direita, a quem é lícito sem favor invocar os ensinamentos de um Platão, um Aristóteles, um S. Tomás, um Leibnitz, um Hegel, um Heidegger, um Gentile e muitas outras figuras cimeiras da filosofia ocidental, um verdadeiro e clamoroso retrocesso por muito que se procure disfarçá-lo e encobri-lo com o manto de um progresso indiscutível.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 173, pág. 21, 04.10.1979)
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A superstição da ciência, que bastantes estragos causou no século XIX, volta actualmente a dominar determinados meios, e vemos pessoas que se proclamam católicas, espiritualistas, antimaterialistas, a procurar, afanosamente, fundamentar as suas posições políticas nas disciplinas que estudam a conduta dos animais (como se o homem se limitasse à sua pura animalidade), ou nas que analisam o estilo de vida dos selvagens (como se a selvajaria fosse um paradigma definitivo), ou, ainda, nas que tudo explicam pelas pulsões inconscientes (como se o livre arbítrio e as responsabilidades pessoais fossem puras ilusões).
Não se trata, sequer, de proceder como Maurras, que, aproveitando o cientismo reinante na sua época, afirmou que as sociedades tinham também leis específicas como as que regiam as restantes realidades e procurou construir uma ciência política irredutível às outras ciências e de índole, aliás, predominantemente racional. Não! O que se faz presentemente, é reduzir o plano político ao nível do zoológico e do biológico. E, ao invés de Maurras, que não pretendia que a ciência política ditasse os fins a visar, mas antes que semelhantes fins é que orientassem as investigações da ciência política, bom número de teóricos contemporâneos que se proclamam de direita, não hesitam em sustentar que as normas de acção e os valores devem ser extraídos da ciência empírica e não o contrário.
Esquece-se, assim, o que é um ensinamento permanente da razão e repetidas vezes foi invocado, contra o positivismo, pelos pensadores mais poderosos do nosso tempo, a saber: que a ciência é meramente descritiva e que da simples factualidade empírica não é possível retirar qualquer imperativo dotado de validade. São, igualmente, factos empíricos os maiores monumento de abjecção e os prodígios de heroísmo, o 25 de Abril e a defesa do Alcazar. E se é uma lei científica que o arsénico, em boas doses, produz a morte, vamos passar a envenenar pessoas?
A ciência diz-nos o que é, aponta-nos o real. Mas o que é, pode ser o mal e o erro, o real pode ser quer bom quer mau. Há seres e realidades excelentes, como há seres e realidades abomináveis.
De resto, se aceitarmos e aplaudirmos todas as realidades porque realidades, então teremos de, simultaneamente, aplaudir e aceitar a tese oposta ao ponto de vista de que se deve aplaudir e aceitar a realidade porque realidade, uma vez que tal tese, existindo, também é uma realidade.
O cientismo implica desse modo a adesão ao anticientismo.
Em ética e política buscar apoio nos denominados avanços da ciência não passa de uma atitude altamente regressiva. Arvorar em mestres neopositivistas, como Louis Rougier, ou (em certa medida) Karl Popper, ou um étologo como Konrad Lorenz, é para a autêntica direita, a quem é lícito sem favor invocar os ensinamentos de um Platão, um Aristóteles, um S. Tomás, um Leibnitz, um Hegel, um Heidegger, um Gentile e muitas outras figuras cimeiras da filosofia ocidental, um verdadeiro e clamoroso retrocesso por muito que se procure disfarçá-lo e encobri-lo com o manto de um progresso indiscutível.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 173, pág. 21, 04.10.1979)
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O NOVO CONCEITO DE PÁTRIA
A tese mais curiosa defendida, hoje em dia, é que a pátria não são os territórios, antes e exclusivamente os homens. Trata-se de uma peregrina concepção congeminada acaso como álibi (de resto infeliz, consoante mostraremos), mas cuja consistência lógica é extremamente frágil. Porque os homens são diferentes entre si e passam, enquanto aquilo que se chama pátria é uno e permanente. Se Portugal fosse só os homens, Portugal não seria senão uma sucessão infinita de nacionalidades, tantas quantos os homens que se foram sucedendo. E já, para que essas nacionalidades sucessivas não fossem soma dos individuos tomados um por um, seria indispensável recorrer à noção de território. Como se distinguiria um grupo de indivíduos perante o estrangeiro (a não se admitir a raça qual critério válido) senão pela sua fixação num certo "habitat" geográfico?
Portugal seria hoje o conjunto dos portugueses actuais, porque seria a série dos indivíduos que vivem no rectângulo impropriamente chamado Portugal; doutra forma, o que separaria tais indivíduos dos chineses, dos persas, que também são indivíduos?
E repare-se, até, que, se acharmos que a pátria são os homens que habitam uma certa região do globo e pretendermos evitar o desfile fílmico das pátrias, tantas quantas as gerações que nas referidas regiões vão vivendo, o que resta de duradoiro são, apenas, essas regiões do território, em suma. A doutrina em discussão está, portanto, sempre a um milímetro de se converter na sua contrária.
Deixemos isso, no entanto.
Se as pátrias são os homens, transplantados estes para outros locais, a pátria persistiria ainda. A nossa população no Polo Norte seria Portugal.
Algumas perguntas surgem, contudo: teria de se manter, exactamente, o mesmo número de pessoas? Ou poderia haver uma discreta tolerância aritmética? E, neste último caso, até quantos homens teríamos a pátria? Bastaria uma simples maioria absoluta? E porque há-de ser homogéneo o local para onde se transplantem as populações? Se o território não é muito relevante, para que Portugal subsista, porque não distribuir os homens que o constituem "hic et nunc" por todo esse vasto mundo: dez nas Seichelles, quinze nas Fidji, cinco em Tristão da Cunha e assim sucessivamente?
Não vemos, nesta altura, o que os ligaria entre si. De qualquer forma, segundo a nova teoria, a pátria continuaria a existir. No instante, porém, em que as pessoas desaparecessem por morte, é que seríamos forçados a admitir que a pátria nada mais era. A nova teoria aqui esgotou os seus fantasiosos recursos. Abandonemos, todavia, o absurdo desta estranha concepção de pátria, que foi inventada, provavelmente, para justificar o abandono dos territórios por parte daqueles que tinham jurado bater-se pelas fronteiras até à morte. Esse o núcleo crucial da nova ideia de pátria: a tentativa de legitimar a destruição da pátria autêntica. Que não é unicamente nem o território nem os homens, mas um vínculo comum e perene que une estes através dos tempos permanecendo o mesmo, enquanto eles desaparecem uns atrás dos outros. Vínculo que representava um dever e se projecta numa soberania exercida num território e numa obra cultural que nele se desenrola. O território é, assim, o espaço da pátria, o testemunho visível da sua autonomia e perpetuidade, se, por detrás, estiver uma vontade firme de conservação e defesa. Eis o motivo pelo qual jamais se pode renunciar a ele, senão pela força, que não cria direito. A entrega voluntária, sem luta ou praticamente sem luta, de territórios nacionais, é um atentado contra a pátria, é, por isso mesmo, uma vergonha ou um crime sem par. Sacrificaram-se os habitantes neles radicados, imolaram-se os homens, atirando-os, como gado, para as mãos selvagens, cruéis, primárias dos novos amos. Centenas de milhar pereceram nas convulsões da "descolonização exemplar", mais de um milhão viu-se despojado de tudo, expulsos dos lares sob saraivadas de injúrias e insultos, passando a vegetar ao Deus dará, neste recanto da Europa à beira mar plantado. Depois de terem prometido solenemente aos "homens" que seriam ouvidos no tocante ao destino a dar às províncias ultramarinas, estas foram distribuidas por sobas às ordens de Moscovo sem ninguém ter sido consultado ou escutado, excepto, claro, os dignos desgovernantes que dispuseram, a bel-prazer, daquilo que lhes não pertencia.
Não há dúvida que, a considerar-se que a pátria são os homens, estes foram magnificamente tratados.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 64, pág. 10, 23.06.1977).
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Portugal seria hoje o conjunto dos portugueses actuais, porque seria a série dos indivíduos que vivem no rectângulo impropriamente chamado Portugal; doutra forma, o que separaria tais indivíduos dos chineses, dos persas, que também são indivíduos?
E repare-se, até, que, se acharmos que a pátria são os homens que habitam uma certa região do globo e pretendermos evitar o desfile fílmico das pátrias, tantas quantas as gerações que nas referidas regiões vão vivendo, o que resta de duradoiro são, apenas, essas regiões do território, em suma. A doutrina em discussão está, portanto, sempre a um milímetro de se converter na sua contrária.
Deixemos isso, no entanto.
Se as pátrias são os homens, transplantados estes para outros locais, a pátria persistiria ainda. A nossa população no Polo Norte seria Portugal.
Algumas perguntas surgem, contudo: teria de se manter, exactamente, o mesmo número de pessoas? Ou poderia haver uma discreta tolerância aritmética? E, neste último caso, até quantos homens teríamos a pátria? Bastaria uma simples maioria absoluta? E porque há-de ser homogéneo o local para onde se transplantem as populações? Se o território não é muito relevante, para que Portugal subsista, porque não distribuir os homens que o constituem "hic et nunc" por todo esse vasto mundo: dez nas Seichelles, quinze nas Fidji, cinco em Tristão da Cunha e assim sucessivamente?
Não vemos, nesta altura, o que os ligaria entre si. De qualquer forma, segundo a nova teoria, a pátria continuaria a existir. No instante, porém, em que as pessoas desaparecessem por morte, é que seríamos forçados a admitir que a pátria nada mais era. A nova teoria aqui esgotou os seus fantasiosos recursos. Abandonemos, todavia, o absurdo desta estranha concepção de pátria, que foi inventada, provavelmente, para justificar o abandono dos territórios por parte daqueles que tinham jurado bater-se pelas fronteiras até à morte. Esse o núcleo crucial da nova ideia de pátria: a tentativa de legitimar a destruição da pátria autêntica. Que não é unicamente nem o território nem os homens, mas um vínculo comum e perene que une estes através dos tempos permanecendo o mesmo, enquanto eles desaparecem uns atrás dos outros. Vínculo que representava um dever e se projecta numa soberania exercida num território e numa obra cultural que nele se desenrola. O território é, assim, o espaço da pátria, o testemunho visível da sua autonomia e perpetuidade, se, por detrás, estiver uma vontade firme de conservação e defesa. Eis o motivo pelo qual jamais se pode renunciar a ele, senão pela força, que não cria direito. A entrega voluntária, sem luta ou praticamente sem luta, de territórios nacionais, é um atentado contra a pátria, é, por isso mesmo, uma vergonha ou um crime sem par. Sacrificaram-se os habitantes neles radicados, imolaram-se os homens, atirando-os, como gado, para as mãos selvagens, cruéis, primárias dos novos amos. Centenas de milhar pereceram nas convulsões da "descolonização exemplar", mais de um milhão viu-se despojado de tudo, expulsos dos lares sob saraivadas de injúrias e insultos, passando a vegetar ao Deus dará, neste recanto da Europa à beira mar plantado. Depois de terem prometido solenemente aos "homens" que seriam ouvidos no tocante ao destino a dar às províncias ultramarinas, estas foram distribuidas por sobas às ordens de Moscovo sem ninguém ter sido consultado ou escutado, excepto, claro, os dignos desgovernantes que dispuseram, a bel-prazer, daquilo que lhes não pertencia.
Não há dúvida que, a considerar-se que a pátria são os homens, estes foram magnificamente tratados.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 64, pág. 10, 23.06.1977).
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UM APOLOGISTA DA MONARQUIA CHAMADO JOSÉ HERMANO SARAIVA
Saraiva (José Hermano e não António José) tem sido, ultimamente, assaz atacado pela chamada direita. Sinceramente, não percebemos porquê. Ele deve sentir-se alvo de uma negra ingratidão, que — quem sabe? —, dada a sua delicada sensibilidade, possivelmente já lhe arrancou lágrimas de pesar. Efectivamente, acusaram-no de deturpar a História de Portugal, de amesquinhar os grandes vultos do nosso Passado, de cultivar a mais reles demagogia, de interpretações delirantes, etc., etc.
Ora nada mais injusto e faccioso.
Saraiva comete, por ocasiões, pequenos erros (por exemplo, chamar, por três vezes, D. Jaime — o que já lhe foi amargamente exprobado — ao bastardo de D. João II, D. Jorge), mas, ao invés do que supõem os reaccionários incorrigíveis, ele não faz por ignorância. Muito ao contrário. O que Saraiva pretende é afastar das multidões ignaras, que o escutam, a verdade histórica, que são incapazes de manejar e utilizar adequadamente. Ele está apenas a pôr em prática a ideia renanista de Fradique Mendes de que é preciso preservar a ciência da curiosidade das plebes. Por isso, quando estas julgam que estão a aprender qualquer coisa, estão muito simplesmente a comer gato por lebre e a permanecer na mais tremebunda ignorância. Saraiva não cai na asneira de as instruir e esclarecer. É o cais. O que lhes fornece são fábulas, enquanto o saber autêntico, esse, permanece aferrolhado nos prodigiosos arcanos cerebrais, que a sua incipiente calva, à Pacheco, deixa entrever. Um ultra-contra-revolucionário, pois, é o que ele é.
Admiramo-nos que a chamada direita não se tenha apercebido dessa nítida faceta do imenso talento de Sua Excelência, que, aliás, outras atitudes também patenteiam com nímia clareza.
Assim, se ele nos conta que um criado, chamado Luís de Camões, tinha vagar para ler Quevedo, Garcilaso de la Vega, Petrarca, etc., (embora infelizmente não soubesse grego), o que está é a inocular no povo a tese de que o apogeu do nosso desenvolvimento cultural foi o período monárquico, em que os servos liam os melhores autores e os amos, se calhar, varriam o chão.
Ao assegurar que o mesmo Camões, já na miséria, escrevia epístolas em verso ao Duque de Aveiro, brincando com ele, resplandecendo em ironias, e blagues, Saraiva o que desejava salientar é a fraternidade, o à-vontade com que os pobres naquela época tratavam os grandes senhores, sem as contumélias, as amabilidades com que hoje em dia os vulgares cidadãos se dirigem ao sr. Mário Soares ou ao sr. Melo Antunes (dois grandes afortunados do presente). E, finalmente, ao garantir que o já referido Luís de Camões recebia uma tença de D. Sebastião, equivalente ao que, então, ganhava um mendigo (brilhante ideia), Saraiva o que intentava não era dizer que o Rei não passava de um ignorante ou de um sovina (longe disso), mas sim que, naqueles ditosos anos, os mendigos tinham um belo vencimento fixo, estando, acaso, sindicalizados e dedicando-se, já, às suas grevezinhas, com a imensa vantagem de que estas não afectavam a produção.
Saraiva, nos próprios écrans da Televisão destinada a propagar — e que propaga de facto - o mais intolerante e ultrajante esquerdismo, patenteia a imensa superioridade da época absolutista sobre a nossa. Nas barbas dos que se dedicam a intoxicar os telespectadores, Saraiva, com subtil firmeza, mostra como era bela a organização da sociedade do regime tradicional. E a conclusão impõe-se por si. O 25 de Abril não trouxe nada de positivo, não representa um progresso. Os e as criadas não lêem Quevedo, nem sequer José Régio; os desempregados, aos milhares, que agora abundam por esse rectângulo fora, não chalaceiam em epístolas em verso com os nobres senhores Vasco da Gama Fernandes ou Álvaro Cunhal e, sobretudo, os mendigos que voltamos a topar em cada esquina não recebem salários certos e bem averiguados, não estão sindicalizados e nem fazem greves com jornadas de não trabalho devidamente remuneradas.
Posto isto, que há-de pensar o público? Que a Monarquia é que era uma delícia. Precisamente o que pretende Saraiva e o que — parece impossível — a chamada direita não lhe é capaz de compreender nem à mão de Deus Padre.
Talvez tudo o que ele narra não passe de fantasias? E que importa isso? Saraiva não quer exibir aos profanos os mistérios do conhecimento, o que visa é exaltar o sistema político de antanho em confronto com o actual. Por meio de mitos? E porque não? Obrigado, Saraiva! Continuas igual a ti mesmo. Sempre na oposição, na corajosa luta clandestina. Na ominosa tirania de Salazar até te sentiste forçado a ser ministro, mas era para piscar o olho aos subversivos e protegê-los quanto podias. De momento, peroras na televisão comuna-estatal (1) (que esperamos, em breve, condecore o sr. Elyseu e dê a palavra de honra que o sr. César de Oliveira tem talento), mas é para produzires apologias indirectas da Realeza. Quem olhar exclusivamente às exterioridades suporá que a tónica dominante da tua vida é ser governamental — estar com os governos que se sucedem, bons ou maus, conservem ou destruam a Pátria — e que como historiador (esotérico) te sentes no dever de seguir, sem hesitar, os ventos da História. Trata-se, porém, de um equívoco, de uma ilusão. O que tu és é um inconformista nato, um homem que nunca está satisfeito com os patrões que serve e que, na hora própria (quando estão vencidos), não hesita, desassombradamente, em mandá-los à fava. Olha, Saraiva! Quem te não conhecer que te compre.
Nota:
1 - Dentro do seu comuno-tartufismo habitual, a Televisão dita portuguesa, quando, no Porto, foram partidas algumas cadeiras e mesas numa ou noutra sede de bairro de partidos marxistas, deu aos eventos um relevo do diabo e velou a face de ultrajada. Quando, porém, no sábado 24 de Março, em Braga, os comunistas atacaram a tiro e à bomba uma pacífica e autorizada manifestação, daí resultando vários feridos, um dos quais teme-se que fique mutilado, limitou-se a umas notícias anódinas e tão mal redigidas que, até, se ficava na dúvida se tinham ou não sido os manifestantes que, para se defender, recorreram a bombas e armas de fogo. No dia seguinte, dimanou a TV umas considerações de protesto, intercaladas, todavia, de àpartes sobre o reaccionarismo bracarense que, de certo modo, justificavam a exaltação dos assaltantes. À hora em que escrevemos estas linhas só esperamos que a Televisão dita portuguesa divulgue, ao máximo, o comunicado P.C., segundo o qual foram os manifestantes que se auto-agrediram, perfidamente, para comprometer os súbditos de Moscovo, lá do sítio, que, no dia 24, estavam todos em casa, pacificamente, a meditar na crise.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 147, pág. 9=
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Ora nada mais injusto e faccioso.
Saraiva comete, por ocasiões, pequenos erros (por exemplo, chamar, por três vezes, D. Jaime — o que já lhe foi amargamente exprobado — ao bastardo de D. João II, D. Jorge), mas, ao invés do que supõem os reaccionários incorrigíveis, ele não faz por ignorância. Muito ao contrário. O que Saraiva pretende é afastar das multidões ignaras, que o escutam, a verdade histórica, que são incapazes de manejar e utilizar adequadamente. Ele está apenas a pôr em prática a ideia renanista de Fradique Mendes de que é preciso preservar a ciência da curiosidade das plebes. Por isso, quando estas julgam que estão a aprender qualquer coisa, estão muito simplesmente a comer gato por lebre e a permanecer na mais tremebunda ignorância. Saraiva não cai na asneira de as instruir e esclarecer. É o cais. O que lhes fornece são fábulas, enquanto o saber autêntico, esse, permanece aferrolhado nos prodigiosos arcanos cerebrais, que a sua incipiente calva, à Pacheco, deixa entrever. Um ultra-contra-revolucionário, pois, é o que ele é.
Admiramo-nos que a chamada direita não se tenha apercebido dessa nítida faceta do imenso talento de Sua Excelência, que, aliás, outras atitudes também patenteiam com nímia clareza.
Assim, se ele nos conta que um criado, chamado Luís de Camões, tinha vagar para ler Quevedo, Garcilaso de la Vega, Petrarca, etc., (embora infelizmente não soubesse grego), o que está é a inocular no povo a tese de que o apogeu do nosso desenvolvimento cultural foi o período monárquico, em que os servos liam os melhores autores e os amos, se calhar, varriam o chão.
Ao assegurar que o mesmo Camões, já na miséria, escrevia epístolas em verso ao Duque de Aveiro, brincando com ele, resplandecendo em ironias, e blagues, Saraiva o que desejava salientar é a fraternidade, o à-vontade com que os pobres naquela época tratavam os grandes senhores, sem as contumélias, as amabilidades com que hoje em dia os vulgares cidadãos se dirigem ao sr. Mário Soares ou ao sr. Melo Antunes (dois grandes afortunados do presente). E, finalmente, ao garantir que o já referido Luís de Camões recebia uma tença de D. Sebastião, equivalente ao que, então, ganhava um mendigo (brilhante ideia), Saraiva o que intentava não era dizer que o Rei não passava de um ignorante ou de um sovina (longe disso), mas sim que, naqueles ditosos anos, os mendigos tinham um belo vencimento fixo, estando, acaso, sindicalizados e dedicando-se, já, às suas grevezinhas, com a imensa vantagem de que estas não afectavam a produção.
Saraiva, nos próprios écrans da Televisão destinada a propagar — e que propaga de facto - o mais intolerante e ultrajante esquerdismo, patenteia a imensa superioridade da época absolutista sobre a nossa. Nas barbas dos que se dedicam a intoxicar os telespectadores, Saraiva, com subtil firmeza, mostra como era bela a organização da sociedade do regime tradicional. E a conclusão impõe-se por si. O 25 de Abril não trouxe nada de positivo, não representa um progresso. Os e as criadas não lêem Quevedo, nem sequer José Régio; os desempregados, aos milhares, que agora abundam por esse rectângulo fora, não chalaceiam em epístolas em verso com os nobres senhores Vasco da Gama Fernandes ou Álvaro Cunhal e, sobretudo, os mendigos que voltamos a topar em cada esquina não recebem salários certos e bem averiguados, não estão sindicalizados e nem fazem greves com jornadas de não trabalho devidamente remuneradas.
Posto isto, que há-de pensar o público? Que a Monarquia é que era uma delícia. Precisamente o que pretende Saraiva e o que — parece impossível — a chamada direita não lhe é capaz de compreender nem à mão de Deus Padre.
Talvez tudo o que ele narra não passe de fantasias? E que importa isso? Saraiva não quer exibir aos profanos os mistérios do conhecimento, o que visa é exaltar o sistema político de antanho em confronto com o actual. Por meio de mitos? E porque não? Obrigado, Saraiva! Continuas igual a ti mesmo. Sempre na oposição, na corajosa luta clandestina. Na ominosa tirania de Salazar até te sentiste forçado a ser ministro, mas era para piscar o olho aos subversivos e protegê-los quanto podias. De momento, peroras na televisão comuna-estatal (1) (que esperamos, em breve, condecore o sr. Elyseu e dê a palavra de honra que o sr. César de Oliveira tem talento), mas é para produzires apologias indirectas da Realeza. Quem olhar exclusivamente às exterioridades suporá que a tónica dominante da tua vida é ser governamental — estar com os governos que se sucedem, bons ou maus, conservem ou destruam a Pátria — e que como historiador (esotérico) te sentes no dever de seguir, sem hesitar, os ventos da História. Trata-se, porém, de um equívoco, de uma ilusão. O que tu és é um inconformista nato, um homem que nunca está satisfeito com os patrões que serve e que, na hora própria (quando estão vencidos), não hesita, desassombradamente, em mandá-los à fava. Olha, Saraiva! Quem te não conhecer que te compre.
Nota:
1 - Dentro do seu comuno-tartufismo habitual, a Televisão dita portuguesa, quando, no Porto, foram partidas algumas cadeiras e mesas numa ou noutra sede de bairro de partidos marxistas, deu aos eventos um relevo do diabo e velou a face de ultrajada. Quando, porém, no sábado 24 de Março, em Braga, os comunistas atacaram a tiro e à bomba uma pacífica e autorizada manifestação, daí resultando vários feridos, um dos quais teme-se que fique mutilado, limitou-se a umas notícias anódinas e tão mal redigidas que, até, se ficava na dúvida se tinham ou não sido os manifestantes que, para se defender, recorreram a bombas e armas de fogo. No dia seguinte, dimanou a TV umas considerações de protesto, intercaladas, todavia, de àpartes sobre o reaccionarismo bracarense que, de certo modo, justificavam a exaltação dos assaltantes. À hora em que escrevemos estas linhas só esperamos que a Televisão dita portuguesa divulgue, ao máximo, o comunicado P.C., segundo o qual foram os manifestantes que se auto-agrediram, perfidamente, para comprometer os súbditos de Moscovo, lá do sítio, que, no dia 24, estavam todos em casa, pacificamente, a meditar na crise.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 147, pág. 9=
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terça-feira, junho 28, 2005
JOSÉ MARINHO OU A CLARIDADE EM FILOSOFIA
Uma das acusações que mais vulgarmente são dirigidas ao autor de "Elementos para uma Antropologia Situada" é a da sua falta de clareza. A esse propósito, nunca deixo de recordar o estudo de Francisco Romero inserido, salvo erro, no volume de "Filosofia de la Persona" acerca da claridade em filosofia. Aí se acentua que ideias claras podem ser em extremo falsas, como é o caso, por exemplo, da ideia «o homem é eterno», e que, em contrapartida, há ideias ditas nebulosas, que se apreendem com dificuldade, e que, no entanto, são em extremo exactas e fecundas.
É óbvio, todavia, que, se, no plano do filosofar, é impossível aceitar-se aquilo a que vulgarmente se chama falta de clareza, já não é lícito admitir-se o confusionismo mental, a obscuridade intencional e deliberadamente cultivada. Conta-se que Eugénio d`Ors (aliás um notável pensador), depois de escrever cada um dos seus artigos, lia-os à sua secretária, perguntando-lhe se os tinha entendido; no caso de resposta afirmativa, o mestre de "Glossário" exclamava logo, preocupado: «obscureçamo-lo um pouco». Trata-se de uma anedota, é evidente, mas que a traduzir uma realidade exprimiria a mais artificial e anti-filosófica das atitudes.
Inútil acrescentar que, se José Marinho não foi um cultor da clareza fácil, de nenhum modo se entregou ao barroquismo de uma impenetrabilidade vazia, criada exclusivamente com a mira de «épater le bourgeois».
A penetração e esforço com que temos de empenhar-nos na decifração dos seus trabalhos fundamentais não corresponde a nenhum malabarismo estesíaco de quem as elaborou, antes ao espontâneo e quase natural empenhamento num porfiado trabalho de aprofundamento ontológico e gnoseológico. De resto em nenhuma filosofia a sério se consegue penetrar sem um duro labor hermenêutico. Só Madame Stäel julgava que Fichte tinha possibilidade de lhe expor o seu sistema em dez minutos, sem que ela se desse ao incómodo de o ler e meditar.
Mesmo Descartes, que tanto teorizou a clareza, quantas e quantas vezes, à medida que lentamente procura ir ao fundo dos problemas, deixa de ser claro (apesar da aparência ilusória de uma compreensibilidade imediata) para nos obrigar a um trabalho árduo de reflexão e de reconstrução, só no fim do qual descobrimos a solução ou o argumento ou a dificuldade que ele nos queria apresentar.
José Marinho não se preocupou muito — honra lhe seja — com o tornar-se ou não acessível ao leitor desatento ou impaciente. Ele não sacrificou, jamais, nas aras da superficialidade, para obter aplausos e uma maior divulgação junto do público.
Ao invés, fixou-se num rumo especulativo pessoalíssimo, afastando-se, até dos trilhos habitualmente traçados nas escolas, para nos apresentar a visão e a revelação que o Ser trouxe até ele.
Depois de quanto expusemos cremos que todos perceberão intuitivamente que uma exposição crítica — ainda que assaz rápida — das concepções de José Marinho excederia de tão longe os limites desta simples nota que nem vale sequer tentá-la.
O que já me parece que vale a pena é dizer àqueles que, entre nós, ainda têm amor e interesse pela filosofia (que não se confunde com a série de lugares comuns bebidos em Marx hoje consagrados oficialmente nos estabelecimentos ditos de ensino e papagueados por uma multidão de snobs ou tontos) que na obra de José Marinho encontrarão sugestões originais, pontos de vista curiosos, e, sobretudo, um estímulo generoso e incessante que jamais deixará de os acompanhar de futuro na rota dolorosa e persistente da busca da verdade.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 21, pág. 20, 26.08.1976)
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É óbvio, todavia, que, se, no plano do filosofar, é impossível aceitar-se aquilo a que vulgarmente se chama falta de clareza, já não é lícito admitir-se o confusionismo mental, a obscuridade intencional e deliberadamente cultivada. Conta-se que Eugénio d`Ors (aliás um notável pensador), depois de escrever cada um dos seus artigos, lia-os à sua secretária, perguntando-lhe se os tinha entendido; no caso de resposta afirmativa, o mestre de "Glossário" exclamava logo, preocupado: «obscureçamo-lo um pouco». Trata-se de uma anedota, é evidente, mas que a traduzir uma realidade exprimiria a mais artificial e anti-filosófica das atitudes.
Inútil acrescentar que, se José Marinho não foi um cultor da clareza fácil, de nenhum modo se entregou ao barroquismo de uma impenetrabilidade vazia, criada exclusivamente com a mira de «épater le bourgeois».
A penetração e esforço com que temos de empenhar-nos na decifração dos seus trabalhos fundamentais não corresponde a nenhum malabarismo estesíaco de quem as elaborou, antes ao espontâneo e quase natural empenhamento num porfiado trabalho de aprofundamento ontológico e gnoseológico. De resto em nenhuma filosofia a sério se consegue penetrar sem um duro labor hermenêutico. Só Madame Stäel julgava que Fichte tinha possibilidade de lhe expor o seu sistema em dez minutos, sem que ela se desse ao incómodo de o ler e meditar.
Mesmo Descartes, que tanto teorizou a clareza, quantas e quantas vezes, à medida que lentamente procura ir ao fundo dos problemas, deixa de ser claro (apesar da aparência ilusória de uma compreensibilidade imediata) para nos obrigar a um trabalho árduo de reflexão e de reconstrução, só no fim do qual descobrimos a solução ou o argumento ou a dificuldade que ele nos queria apresentar.
José Marinho não se preocupou muito — honra lhe seja — com o tornar-se ou não acessível ao leitor desatento ou impaciente. Ele não sacrificou, jamais, nas aras da superficialidade, para obter aplausos e uma maior divulgação junto do público.
Ao invés, fixou-se num rumo especulativo pessoalíssimo, afastando-se, até dos trilhos habitualmente traçados nas escolas, para nos apresentar a visão e a revelação que o Ser trouxe até ele.
Depois de quanto expusemos cremos que todos perceberão intuitivamente que uma exposição crítica — ainda que assaz rápida — das concepções de José Marinho excederia de tão longe os limites desta simples nota que nem vale sequer tentá-la.
O que já me parece que vale a pena é dizer àqueles que, entre nós, ainda têm amor e interesse pela filosofia (que não se confunde com a série de lugares comuns bebidos em Marx hoje consagrados oficialmente nos estabelecimentos ditos de ensino e papagueados por uma multidão de snobs ou tontos) que na obra de José Marinho encontrarão sugestões originais, pontos de vista curiosos, e, sobretudo, um estímulo generoso e incessante que jamais deixará de os acompanhar de futuro na rota dolorosa e persistente da busca da verdade.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 21, pág. 20, 26.08.1976)
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«UMA COISA QUE PENSA» - UM NOVO LIVRO DE ÁLVARO RIBEIRO
A obra de Álvaro Ribeiro, mesmo para aqueles que não estão de acordo com as suas concepções fundamentais (consoante é o meu caso), merece iniludível respeito pelo que representa de coerência e persistente labor. E hoje em dia, em que alastra o mais pretensioso dogmatismo materialista, não há dúvida que os ensinamentos do autor de "Os Positivistas" oferecem salutares incentivos a quantos, em tão corrompido ambiente intelectual, se iniciem nos problemas da filosofia.
O último trabalho de Álvaro Ribeiro, intitulado, cartesianamente, "Uma Coisa que Pensa", destaca-se de entre a produção corrente da actualidade nacional não só pela fidelidade a si próprio de quem o redigiu mas também pela sua superioridade face aos anõezinhos que, no momento presente, não sabem fazer mais nada do que repetir, piorando-os, Marx e Engels.
"Uma Coisa que Pensa" é composto por três ensaios denominados: "Filologia e Filosofia"; "Pensar, Falar, Escrever" e "Elementos de Lógica Aristotélica". Pode dizer-se que todos eles, através da variedade dos seus temas, são dominados pela questão central das relações entre o pensamento e a linguagem. Nesta perspectiva, o último dos estudos, os "Elementos de Lógica Aristotélica", encerra uma interpretação curiosa e interessante, numa direcção anti-ontológica, do Organon do Estagirita (Estagirita sem sentido pejorativo), interpretação que não vamos aqui discutir, pois para isso seriam necessárias, pelo menos, dezenas de páginas, mas para a qual não queremos deixar de chamar a atenção.
Há neste volume de Álvaro Ribeiro uma série de teses inteiramente justas que merecem ser destacadas. Antes de mais nada, a clara denúncia de fraquezas da psicologia de observação, agravadas, ainda, na psicologia experimental ou de laboratório (p. 31). Depois, o repúdio da «tendência evolucionista quando pretende transcender o plano científico para o metafísico, onde insere uma fictícia teoria das causas» (p. 49), acompanhado da mostração das insuficiências de tal tendência no âmbito da questão da origem da linguagem. Por fim, é de salientar, de forma muito especial, a firmeza com que Álvaro Ribeiro sustenta que a filosofia não se situa no domínio da ciência e que é «por táctica errónea» que os «homens cultos» reclamam uma «filosofia científica» (p. 15).
Em todo o caso, eu creio que ele passa de um excesso para outro, quando considera a filosofia arte (p. 22) e defendendo uma «filosofia literária» (p. 15). Pela minha parte, perfilho a opinião expressa por Croce em «O que é Vivo e o que é Morto na Filosofia de Hegel»: se não se deve filosofar recorrendo ao compasso e ao esquadro, igualmente não se deve filosofar com o pincel ou a lira.
Numa palavra: não sou pela filosofia científica nem pela filosofia literária, antes, e exclusivamente, pela filosofia filosófica.
Ainda a propósito da noção de filosofia de Álvaro Ribeiro, quero observar o seguinte: para ele «a ciência afirma o que é e nega o que não é, enquanto a filosofia diz o que deve ser ou deveria ser» (p. 21); uma vez que inclui a lógica na esfera da filosofia (p. 152 e 153) não vemos muito bem como declara que «a lógica é a arte de expressar oralmente ou por escrito o pensamento» (p. 72); com efeito, o pensamento pode ser deficiente ou errado (p. 122) e, limitando-se a procurar exprimi-lo, de que modo essa parte da filosofia, que se chama a lógica, se colocará no ponto de vista do que deve ou deveria ser?
A concluir estas breves e desalinhadas considerações uma derradeira anotação. Álvaro Ribeiro alude à «falsa filosofia que tem sido e continua a ser ensinada... nas faculdades universitárias». E prossegue: «Falsa, porquê?... Quanto a mim acuso tal ensino de não ser português... Outros críticos, menos nacionalistas do que eu, poderão enunciar acusações de outra ordem» (p. 11. Texto de 1971, retomado agora). Obviamente não pretendo neste momento abordar a vexata quaestio da existência de filosofias nacionais (de passagem, limito-me a reflectir que não me parecem conciliáveis, em estrito rigor, os entusiasmos de Álvaro Ribeiro pela filosofia portuguesa e por Aristóteles). Unicamente desejo salientar (reportando-me até Abril de 1974) que a filosofia universitária se, durante bastante tempo, mereceu ser censurada pelo seu anti-filosófico culto da ciência, nas últimas décadas mudou, nitidamente, de rumo e já não é passível de semelhantes acusações. Recentemente, nas Universidades portuguesas, estava a processar-se uma notável renascença filosófica, de que são testemunho algumas dissertações de doutoramento demonstrativas dos contactos com certas correntes, como a fenomenologia husserliana e a ontologia heideggeriana (bem afastadas da estreiteza de vistas do cientismo), o renovado interesse pela metafísica dos conimbricenses, além da reedição de numerosas obras, precisamente de filósofos portugueses, e de amplos estudos a estes consagrados.
Claro que tudo isto foi quase por completo submergido, após a gloriosa revolução dos cravos, e veio a ser substituído por uma obstinada devoção ao Evangelho de S. Marx. Mais um motivo para que se saliente um esforço digno que honrou a nossa cultura.
Álvaro Ribeiro, por certo, não pensa assim, e está no seu pleníssimo direito. Eu, no entanto, não me sentiria de bem com a consciência se não praticasse o que julgo um acto de justiça em relação à antiga Universidade portuguesa.
Não é, todavia, uma discordância desta índole que empana os reais méritos do livro de Álvaro Ribeiro, a que presto a minha muito sincera homenagem.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 2, pág. 21, 15.04.1976)
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O último trabalho de Álvaro Ribeiro, intitulado, cartesianamente, "Uma Coisa que Pensa", destaca-se de entre a produção corrente da actualidade nacional não só pela fidelidade a si próprio de quem o redigiu mas também pela sua superioridade face aos anõezinhos que, no momento presente, não sabem fazer mais nada do que repetir, piorando-os, Marx e Engels.
"Uma Coisa que Pensa" é composto por três ensaios denominados: "Filologia e Filosofia"; "Pensar, Falar, Escrever" e "Elementos de Lógica Aristotélica". Pode dizer-se que todos eles, através da variedade dos seus temas, são dominados pela questão central das relações entre o pensamento e a linguagem. Nesta perspectiva, o último dos estudos, os "Elementos de Lógica Aristotélica", encerra uma interpretação curiosa e interessante, numa direcção anti-ontológica, do Organon do Estagirita (Estagirita sem sentido pejorativo), interpretação que não vamos aqui discutir, pois para isso seriam necessárias, pelo menos, dezenas de páginas, mas para a qual não queremos deixar de chamar a atenção.
Há neste volume de Álvaro Ribeiro uma série de teses inteiramente justas que merecem ser destacadas. Antes de mais nada, a clara denúncia de fraquezas da psicologia de observação, agravadas, ainda, na psicologia experimental ou de laboratório (p. 31). Depois, o repúdio da «tendência evolucionista quando pretende transcender o plano científico para o metafísico, onde insere uma fictícia teoria das causas» (p. 49), acompanhado da mostração das insuficiências de tal tendência no âmbito da questão da origem da linguagem. Por fim, é de salientar, de forma muito especial, a firmeza com que Álvaro Ribeiro sustenta que a filosofia não se situa no domínio da ciência e que é «por táctica errónea» que os «homens cultos» reclamam uma «filosofia científica» (p. 15).
Em todo o caso, eu creio que ele passa de um excesso para outro, quando considera a filosofia arte (p. 22) e defendendo uma «filosofia literária» (p. 15). Pela minha parte, perfilho a opinião expressa por Croce em «O que é Vivo e o que é Morto na Filosofia de Hegel»: se não se deve filosofar recorrendo ao compasso e ao esquadro, igualmente não se deve filosofar com o pincel ou a lira.
Numa palavra: não sou pela filosofia científica nem pela filosofia literária, antes, e exclusivamente, pela filosofia filosófica.
Ainda a propósito da noção de filosofia de Álvaro Ribeiro, quero observar o seguinte: para ele «a ciência afirma o que é e nega o que não é, enquanto a filosofia diz o que deve ser ou deveria ser» (p. 21); uma vez que inclui a lógica na esfera da filosofia (p. 152 e 153) não vemos muito bem como declara que «a lógica é a arte de expressar oralmente ou por escrito o pensamento» (p. 72); com efeito, o pensamento pode ser deficiente ou errado (p. 122) e, limitando-se a procurar exprimi-lo, de que modo essa parte da filosofia, que se chama a lógica, se colocará no ponto de vista do que deve ou deveria ser?
A concluir estas breves e desalinhadas considerações uma derradeira anotação. Álvaro Ribeiro alude à «falsa filosofia que tem sido e continua a ser ensinada... nas faculdades universitárias». E prossegue: «Falsa, porquê?... Quanto a mim acuso tal ensino de não ser português... Outros críticos, menos nacionalistas do que eu, poderão enunciar acusações de outra ordem» (p. 11. Texto de 1971, retomado agora). Obviamente não pretendo neste momento abordar a vexata quaestio da existência de filosofias nacionais (de passagem, limito-me a reflectir que não me parecem conciliáveis, em estrito rigor, os entusiasmos de Álvaro Ribeiro pela filosofia portuguesa e por Aristóteles). Unicamente desejo salientar (reportando-me até Abril de 1974) que a filosofia universitária se, durante bastante tempo, mereceu ser censurada pelo seu anti-filosófico culto da ciência, nas últimas décadas mudou, nitidamente, de rumo e já não é passível de semelhantes acusações. Recentemente, nas Universidades portuguesas, estava a processar-se uma notável renascença filosófica, de que são testemunho algumas dissertações de doutoramento demonstrativas dos contactos com certas correntes, como a fenomenologia husserliana e a ontologia heideggeriana (bem afastadas da estreiteza de vistas do cientismo), o renovado interesse pela metafísica dos conimbricenses, além da reedição de numerosas obras, precisamente de filósofos portugueses, e de amplos estudos a estes consagrados.
Claro que tudo isto foi quase por completo submergido, após a gloriosa revolução dos cravos, e veio a ser substituído por uma obstinada devoção ao Evangelho de S. Marx. Mais um motivo para que se saliente um esforço digno que honrou a nossa cultura.
Álvaro Ribeiro, por certo, não pensa assim, e está no seu pleníssimo direito. Eu, no entanto, não me sentiria de bem com a consciência se não praticasse o que julgo um acto de justiça em relação à antiga Universidade portuguesa.
Não é, todavia, uma discordância desta índole que empana os reais méritos do livro de Álvaro Ribeiro, a que presto a minha muito sincera homenagem.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 2, pág. 21, 15.04.1976)
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UMA DESCOLONIZAÇÃO EXEMPLAR QUE O PC PENSOU E O PS REALIZOU
Acontece, acontece que, por mero acaso, sem intenção deliberada, me encontre diante do écran iluminado da televisão, à hora do noticiário e da propaganda marxista. Assim sucedeu ainda há algum tempo. Repentinamente, vi-me perante o rosto mole de um dos nossos mais prestigiosos estadistas, com os seus óculos de intelectual que compulsa Gramsci com mão diurna e nocturna e o seu sorriso de auto-satisfação vitoriosa. Sua Excelência falava de Moçambique, das relações do rectângulo da Península Ibérica com Moçambique. Não desliguei. Em Moçambique, ainda antes da bandeira das quinas ser arreada sob o olhar entusiasmado do patriota Vasco Gonçalves, tinha sido entregue às sevícias da Frelimo um amigo meu de sempre. Um daqueles poucos que, voluntariamente, marcharam para o mato a combater a sério, na justa convicção que lutavam para a integridade e honra de Portugal. Exactamente um desses que o ex-Alto-Comissário da nossa ex-província da África Oriental tem dificuldade em considerar como portugueses. Foi na expectativa de escutar qualquer referência ou alusão que me permitisse alimentar esperanças acerca da sorte daquele camarada de ideias que continuei a escutar a palavra facunda e fecunda do ilustre homem público.
Esclareceu-nos ele que a descolonização levada a cabo a seguir ao 25 de Abril era qualquer coisa de tão importante e transcendente que só podia comparar-se ao ciclo das descobertas. Mas em sentido inverso, acrescentou, num tocante e penhorante esforço de lealdade.
Contra o que me é habitual não deixei de concordar com as palavras do inspirado governante. De facto, o sentido da descolonização é exactamente o inverso da gesta dos Descobrimentos. Através da última, Portugal constituiu-se como país glorioso. Graças à primeira dissolve-se, como nação, numa apagada e vil tristeza.
Mas, àparte o pequeno inconveniente de ter aniquilado a substância mesma da pátria (que não se confunde com o efémero conjunto dos indivíduos que, em certo momento, habitam uma porção de terra), não se pode deixar de reconhecer que a nossa descolonização, consoante uma personagem eminente já o declarou, representou algo de exemplar, incontestavelmente exemplar, exemplar sem tirar nem pôr.
Destacar os motivos dessa exemplaridade é tarefa que todas as consciências progressivas têm por dever e a que irei meter ombros dentro das minhas fracas possibilidades.
A meu ver, a descolonização dita portuguesa merece o qualificativo de exemplar pelas seguintes razões:
1) Porque tal descolonização foi efectuada sob o signo da democracia e entregou os pobres descolonizados a férreos regimes totalitários de partido único.
2) Porque tal descolonização foi efectuada à luz do princípio da auto-determinação dos povos e, a respeito dela, povo algum, daquém ou de além-mar, se consultou, ouviu ou escutou.
3) Porque tal descolonização foi efectuada depois de uma promessa solene do M.F.A., consignada no texto constitucional do seu programa, de que seria precedida de um amplo debate público e não houve o mínimo debate público sobre tão magno problema, que obteve resolução, autocraticamente, em negociações mais ou menos confidenciais.
4) Porque tal descolonização foi efectuada para libertar nacionalidades pretensamente oprimidas e semelhantes nacionalidades apenas praticam o lastimável lapso de não existir, consoante o provam os massacres de compatriotas, as guerras civis, a submissão a estrangeiros (russos, cubanos, americanos, chineses) a que se dedicaram os diversos movimentos terroristas mal lhes concederam a independência.
5) Porque tal descolonização foi efectuada para restabelecer a paz e depois dela já houve lutas e morticínios muitíssimo mais sangrentos do que os originados pelos treze anos das chamadas campanhas coloniais.
6) Porque tal descolonização foi efectuada para evitar o descalabro da nossa economia profundamente onerada, dizia-se, pelos gastos inerentes ao esforço bélico e, precisamente, a seguir à mesmíssima descolonização, é que a economia entrou em franco descalabro vivendo, agora, de uma despudorada mendicidade internacional.
7) Porque tal descolonização foi efectuada para fazer perder uma batalha decisiva ao imperialismo e as desgraçadas províncias ultramarinas, deitadas pela borda fora, são, hoje, presa do imperialismo soviético ou do imperialismo yankee que nelas combatem entre si, sanguinolentamente.
8) Porque tal descolonização foi efectuada com a solene garantia de serem respeitados os direitos dos brancos instalados em Angola, Moçambique, Guiné, etc., e esses direitos, logo que a soberania portuguesa desapareceu (e às vezes, antes disso) foram, imediatamente, postergados, violados, desprezados por um furioso racismo negro que fez com que milhares e milhares de pessoas, a fim de não serem trucidadas, se vissem forçadas a regressar à metrópole, na maior miséria e aflição, vindo, na qualidade de refugiados (ou retornados, conforme púdica e oficialmente se lhes chama), engrossar o largo cortejo dos sem emprego que a sublime política da gloriosa revolução dos cravos provocou.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 1, pág. 9, 08.04.1976)
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Esclareceu-nos ele que a descolonização levada a cabo a seguir ao 25 de Abril era qualquer coisa de tão importante e transcendente que só podia comparar-se ao ciclo das descobertas. Mas em sentido inverso, acrescentou, num tocante e penhorante esforço de lealdade.
Contra o que me é habitual não deixei de concordar com as palavras do inspirado governante. De facto, o sentido da descolonização é exactamente o inverso da gesta dos Descobrimentos. Através da última, Portugal constituiu-se como país glorioso. Graças à primeira dissolve-se, como nação, numa apagada e vil tristeza.
Mas, àparte o pequeno inconveniente de ter aniquilado a substância mesma da pátria (que não se confunde com o efémero conjunto dos indivíduos que, em certo momento, habitam uma porção de terra), não se pode deixar de reconhecer que a nossa descolonização, consoante uma personagem eminente já o declarou, representou algo de exemplar, incontestavelmente exemplar, exemplar sem tirar nem pôr.
Destacar os motivos dessa exemplaridade é tarefa que todas as consciências progressivas têm por dever e a que irei meter ombros dentro das minhas fracas possibilidades.
A meu ver, a descolonização dita portuguesa merece o qualificativo de exemplar pelas seguintes razões:
1) Porque tal descolonização foi efectuada sob o signo da democracia e entregou os pobres descolonizados a férreos regimes totalitários de partido único.
2) Porque tal descolonização foi efectuada à luz do princípio da auto-determinação dos povos e, a respeito dela, povo algum, daquém ou de além-mar, se consultou, ouviu ou escutou.
3) Porque tal descolonização foi efectuada depois de uma promessa solene do M.F.A., consignada no texto constitucional do seu programa, de que seria precedida de um amplo debate público e não houve o mínimo debate público sobre tão magno problema, que obteve resolução, autocraticamente, em negociações mais ou menos confidenciais.
4) Porque tal descolonização foi efectuada para libertar nacionalidades pretensamente oprimidas e semelhantes nacionalidades apenas praticam o lastimável lapso de não existir, consoante o provam os massacres de compatriotas, as guerras civis, a submissão a estrangeiros (russos, cubanos, americanos, chineses) a que se dedicaram os diversos movimentos terroristas mal lhes concederam a independência.
5) Porque tal descolonização foi efectuada para restabelecer a paz e depois dela já houve lutas e morticínios muitíssimo mais sangrentos do que os originados pelos treze anos das chamadas campanhas coloniais.
6) Porque tal descolonização foi efectuada para evitar o descalabro da nossa economia profundamente onerada, dizia-se, pelos gastos inerentes ao esforço bélico e, precisamente, a seguir à mesmíssima descolonização, é que a economia entrou em franco descalabro vivendo, agora, de uma despudorada mendicidade internacional.
7) Porque tal descolonização foi efectuada para fazer perder uma batalha decisiva ao imperialismo e as desgraçadas províncias ultramarinas, deitadas pela borda fora, são, hoje, presa do imperialismo soviético ou do imperialismo yankee que nelas combatem entre si, sanguinolentamente.
8) Porque tal descolonização foi efectuada com a solene garantia de serem respeitados os direitos dos brancos instalados em Angola, Moçambique, Guiné, etc., e esses direitos, logo que a soberania portuguesa desapareceu (e às vezes, antes disso) foram, imediatamente, postergados, violados, desprezados por um furioso racismo negro que fez com que milhares e milhares de pessoas, a fim de não serem trucidadas, se vissem forçadas a regressar à metrópole, na maior miséria e aflição, vindo, na qualidade de refugiados (ou retornados, conforme púdica e oficialmente se lhes chama), engrossar o largo cortejo dos sem emprego que a sublime política da gloriosa revolução dos cravos provocou.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 1, pág. 9, 08.04.1976)
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Convenção Nacional do PNR
Notícias sobre o PNR:
Decorreu no passado dia 25 de Junho a II Convenção Nacional do PNR, presidida por José António Pombal. Na primeira parte foram apresentadas duas moções estratégicas e aberto um período para a intervenção dos militantes. Na segunda parte procedeu-se à votação das moções e das listas para os diversos órgãos do partido.
Ambas as moções foram aprovadas por maioria absoluta. Foi eleito o novo Presidente do PNR, José Pinto-Coelho, assim como a nova Comissão Política Nacional e os membros dos restantes órgãos do partido. Além de José Pinto-Coelho, fazem parte da nova Comissão Política Nacional Humberto Nuno de Oliveira, José António Pombal, Pedro Frade, Rui Paulino, João Catarino e João Franco.
No seu discurso final, José Pinto-Coelho realçou que, daqui em diante, a nova equipa dirigente trabalhará no sentido de fazer do PNR um partido mais forte, coeso, determinado e destemido. Para isso, cabe à nova direcção a renovação e reorganização interna do partido que se impõe. Foi ainda anunciada a criação da Juventude Nacionalista, que será coordenada por Filipe Batista e Silva e deverá ser oficializada durante o Verão.
A mudança que se materializou nesta Convenção, e que foi entusiasticamente acolhida por todos os militantes presentes, representa para o PNR um motivo de esperança e coragem para o futuro. Com os novos quadros eleitos, o PNR estará preparado para se transformar, a breve trecho, numa verdadeira força de oposição nacional que realize a unidade dos nacionalistas e que congregue todos os Portugueses fartos do actual sistema de destruição nacional.
(ver Coimbra Nacional e PNR-Porto)
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Decorreu no passado dia 25 de Junho a II Convenção Nacional do PNR, presidida por José António Pombal. Na primeira parte foram apresentadas duas moções estratégicas e aberto um período para a intervenção dos militantes. Na segunda parte procedeu-se à votação das moções e das listas para os diversos órgãos do partido.
Ambas as moções foram aprovadas por maioria absoluta. Foi eleito o novo Presidente do PNR, José Pinto-Coelho, assim como a nova Comissão Política Nacional e os membros dos restantes órgãos do partido. Além de José Pinto-Coelho, fazem parte da nova Comissão Política Nacional Humberto Nuno de Oliveira, José António Pombal, Pedro Frade, Rui Paulino, João Catarino e João Franco.
No seu discurso final, José Pinto-Coelho realçou que, daqui em diante, a nova equipa dirigente trabalhará no sentido de fazer do PNR um partido mais forte, coeso, determinado e destemido. Para isso, cabe à nova direcção a renovação e reorganização interna do partido que se impõe. Foi ainda anunciada a criação da Juventude Nacionalista, que será coordenada por Filipe Batista e Silva e deverá ser oficializada durante o Verão.
A mudança que se materializou nesta Convenção, e que foi entusiasticamente acolhida por todos os militantes presentes, representa para o PNR um motivo de esperança e coragem para o futuro. Com os novos quadros eleitos, o PNR estará preparado para se transformar, a breve trecho, numa verdadeira força de oposição nacional que realize a unidade dos nacionalistas e que congregue todos os Portugueses fartos do actual sistema de destruição nacional.
(ver Coimbra Nacional e PNR-Porto)
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Comunicado da Causa Identitária
Perante o descalabro da política de imigração promovida por todos os governos, sem distinção, desde o 25 de Abril, chegamos a uma situação em que Portugal se defronta com uma autêntica invasão e colonização do seu território.
O chamado "arrastão" de Carcavelos foi só o culminar de agressões quotidianas, assaltos, intimidações, cometidas pelos, eufemisticamente, denominados de "jovens", na realidade imigrantes de segunda e terceira geração, que pelo seu comportamento semeiam o terror e o vandalismo nos locais públicos da grande Lisboa e margem sul, colocando a paz e segurança dos Portugueses em perigo.
Escandalosamente, o Presidente Jorge Sampaio, cada vez mais "presidente" dos imigrantes e menos dos Portugueses, propõe a mudança da lei da nacionalidade, com o intuito de esta ser concedida automaticamente a todos os nascidos acidentalmente em Portugal, independentemente da sua origem.
Esta proposta tem como ideia a mais fácil "integração" dos tais "jovens". Diríamos, em bom Português, que a emenda é pior do que o soneto.
A Causa Identitária está de acordo com a alteração da lei da nacionalidade, todavia pensamos que a mudança da mesma deverá consagrar o conceito de "jus sanguinis": só é PORTUGUÊS quem for descendente de Portugueses ao longo de várias gerações. A Identidade Nacional não está à venda em mercado livre: herda-se de um honrado e orgulhoso passado.
E óbvio que serão consideradas todas as situações excepcionais, que pela sua própria natureza só vêem confirmar a regra geral. A Causa Identitária lembra que outros estados (Irlanda) legislaram no sentido do "jus sanguinis". Em nossa opinião, Portugal devera seguir este exemplo a fim de preservar a nossa Identidade, Cultura e Valores.
Somos Portugueses de cepa e assim desejamos permanecer!
Por Portugal e pela Europa.
www.causaidentitaria.org
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O chamado "arrastão" de Carcavelos foi só o culminar de agressões quotidianas, assaltos, intimidações, cometidas pelos, eufemisticamente, denominados de "jovens", na realidade imigrantes de segunda e terceira geração, que pelo seu comportamento semeiam o terror e o vandalismo nos locais públicos da grande Lisboa e margem sul, colocando a paz e segurança dos Portugueses em perigo.
Escandalosamente, o Presidente Jorge Sampaio, cada vez mais "presidente" dos imigrantes e menos dos Portugueses, propõe a mudança da lei da nacionalidade, com o intuito de esta ser concedida automaticamente a todos os nascidos acidentalmente em Portugal, independentemente da sua origem.
Esta proposta tem como ideia a mais fácil "integração" dos tais "jovens". Diríamos, em bom Português, que a emenda é pior do que o soneto.
A Causa Identitária está de acordo com a alteração da lei da nacionalidade, todavia pensamos que a mudança da mesma deverá consagrar o conceito de "jus sanguinis": só é PORTUGUÊS quem for descendente de Portugueses ao longo de várias gerações. A Identidade Nacional não está à venda em mercado livre: herda-se de um honrado e orgulhoso passado.
E óbvio que serão consideradas todas as situações excepcionais, que pela sua própria natureza só vêem confirmar a regra geral. A Causa Identitária lembra que outros estados (Irlanda) legislaram no sentido do "jus sanguinis". Em nossa opinião, Portugal devera seguir este exemplo a fim de preservar a nossa Identidade, Cultura e Valores.
Somos Portugueses de cepa e assim desejamos permanecer!
Por Portugal e pela Europa.
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segunda-feira, junho 27, 2005
Um futuro incerto
Nada é mais incerto que o futuro... embora por vezes o presente não se apresente muito claro e o passado também se afigure algo obscuro.
Aconselho a leitura desta reflexão de Rebatet.
Aproveito para elogiar o bom trabalho do Coimbra Nacional, que tem mantido uma constante actividade, sobretudo polarizada na informação e no comentário, que muito dignifica os seus autores e muito bom serviço presta à causa nacional.
Aproveito ainda para destacar o aparecimento de um novo blogue dedicado ao Ideal Lusitano, e também a inacreditável notícia do Porta-Bandeira. Será possível? Não tenho palavras para dizer não, firmemente não, mil vezes não.
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Aconselho a leitura desta reflexão de Rebatet.
Aproveito para elogiar o bom trabalho do Coimbra Nacional, que tem mantido uma constante actividade, sobretudo polarizada na informação e no comentário, que muito dignifica os seus autores e muito bom serviço presta à causa nacional.
Aproveito ainda para destacar o aparecimento de um novo blogue dedicado ao Ideal Lusitano, e também a inacreditável notícia do Porta-Bandeira. Será possível? Não tenho palavras para dizer não, firmemente não, mil vezes não.
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NA MORTE DE UM AMIGO
O choque da notícia ainda, neste momento, me perturba. Faleceu o José Eduardo Correia de Barros. Não mais o verei, ali à mesa do Imperial, às vezes exaltado, outras vezes sorridente, comentando os acontecimentos e as personalidades; não mais o encontrarei a folhear livros na Tavares Martins, não mais confraternizarei com ele na dor deste país vilipendiado ou nas poucas jornadas de nostalgia nacionalista que ainda celebramos. Homem de amplos interesses culturais, de muito vasta leitura, não deixou obra escrita. Dele ficaram algumas caricaturas e quadros que discretamente mantinha no âmbito da família ou das amizades mais íntimas.
Militante nacional-sindicalista, acompanhou Rolão Preto na cisão, sendo duas vezes preso. Simplesmente, não tinha nele lugar o ressentimento. Achando, em 1933-34, o Estado Novo insuficientemente revolucionário, às primeiras heterodoxias do «Chefe» afastou-se imediatamente. Pactuar com a anti-nação não era para ele. Mantendo-se numa posição crítica de extrema-direita, aplaudia Salazar em tudo quanto era de interesse nacional, especialmente na defesa do Ultramar, onde o filho mais velho (que depois alinhou connosco no Movimento de Acção Portuguesa) combateu como simples soldado, nas ásperas picadas de Moçambique.
Monárquico de sempre, fiel aos princípios, horrorizavam-no uns tantos que se proclamavam sê-lo e não passavam de turiferários dos dogmas ridículos da revolução francesa.
Vivendo com dificuldades, numa existência modesta e sem ambições, nunca por interesses materiais renunciou a uma atitude de desassombro, nem procurou, sequer, as honrarias ou satisfações para a vaidade.
Viu outros com menos mérito do que ele alçapremarem-se a belos cargos e, a seguir, chegada a hora trágica do 25 de Abril, sumirem-se pela caixa de ponto, esquecendo-se de tudo o que tinham sido. Correia de Barros encolhia os ombros com desprezo. O seu estilo não era esse. Preferia a obscuridade e o risco a transigir, a abdicar, a tolerar o mal.
Legou-nos uma grande lição — uma lição de humildade, de firmeza e de carácter. Oxalá ela seja seguida.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 166, pág. 4, 08.09.1979)
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Militante nacional-sindicalista, acompanhou Rolão Preto na cisão, sendo duas vezes preso. Simplesmente, não tinha nele lugar o ressentimento. Achando, em 1933-34, o Estado Novo insuficientemente revolucionário, às primeiras heterodoxias do «Chefe» afastou-se imediatamente. Pactuar com a anti-nação não era para ele. Mantendo-se numa posição crítica de extrema-direita, aplaudia Salazar em tudo quanto era de interesse nacional, especialmente na defesa do Ultramar, onde o filho mais velho (que depois alinhou connosco no Movimento de Acção Portuguesa) combateu como simples soldado, nas ásperas picadas de Moçambique.
Monárquico de sempre, fiel aos princípios, horrorizavam-no uns tantos que se proclamavam sê-lo e não passavam de turiferários dos dogmas ridículos da revolução francesa.
Vivendo com dificuldades, numa existência modesta e sem ambições, nunca por interesses materiais renunciou a uma atitude de desassombro, nem procurou, sequer, as honrarias ou satisfações para a vaidade.
Viu outros com menos mérito do que ele alçapremarem-se a belos cargos e, a seguir, chegada a hora trágica do 25 de Abril, sumirem-se pela caixa de ponto, esquecendo-se de tudo o que tinham sido. Correia de Barros encolhia os ombros com desprezo. O seu estilo não era esse. Preferia a obscuridade e o risco a transigir, a abdicar, a tolerar o mal.
Legou-nos uma grande lição — uma lição de humildade, de firmeza e de carácter. Oxalá ela seja seguida.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 166, pág. 4, 08.09.1979)
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O ESTADO NOVO E O ESTADO
O termo Estado é empregue em muitos sentidos, de entre os quais três são de assinalar com destaque:
1) Estado enquanto sinónimo de comunidade autónoma, organizada politicamente, isto é, sob a égide de um Poder soberano;
2) Estado enquanto sinónimo, precisamente, do Poder soberano existente em tal comunidade;
3) Estado enquanto sinónimo de mera aparelhagem burocrática (acentuemos que é com esse significado que o Nacional-Socialismo, ou, pelo menos, a tendência dominante entre os autores nacionais-socialistas alude ao Estado — Der Staat ist ein Apparat).
Que não se concebe comunidade ou sociedade (prescindindo, aqui, da distinção célebre formulada por Tonnies) sem um Poder supremo parece-nos um axioma indiscutível. As pessoas e os grupos não se integram, espontaneamente, numa unidade, antes tendem para a divergência e a dissociação (conforme dizia Maurras «ce qui m`étonne ce n`est pas le désordre, c`est l`ordre». As suas actividades têm de ser coordenadas, fiscalizadas, disciplinadas, para delas resultar uma totalidade harmónica. Essa a missão capital do Poder que, para o efeito, precisa de possuir ao seu dispor dos instrumentos adequados.
A força, o volume, o âmbito de aplicação de semelhantes instrumentos têm de ser encarados pragmaticamente, em relação com a conservação e o desenvolvimento da comunidade cuja sobrevivência o Poder deve assegurar. A denominarmos Estado a aparelhagem de que o Poder se serve, não vemos que o seu dimensionamento possa ser traçado a priori. As circunstâncias é que permitem decidir em cada caso concreto. Onde os perigos de dissolução e as ameaças de anarquia forem grandes, decerto que o Poder está na obrigação de estender o domínio de intervenção dos chamados órgãos estaduais, a fim de reprimir e dominar os factores de desagregação. Onde se verifique o inverso já o Poder dispõe da possibilidade de reduzir o número e a esfera de acção directa desses órgãos, diminuindo-a ou tornando-a muito mais flexível.
De certo, o ideal será que pessoas e grupos, por si, sem pressões exteriores, desempenhem na promoção do bem social as funções positivas que tenham capacidade para exercer utilmente — capacidade, não muito larga, é evidentemente, visto que o interesse geral só pode ser cometido a quem esteja na perspectiva do universal e não numa perspectiva de particularidade, conforme é o caso das pessoas e grupos, divergentes entre si. Mas como o universal não é nada de separado dos diversos elementos singulares (pois que, então, o universal seria, por seu turno, também um elemento singular) antes é aquilo que neles está presente, ligando-os, unindo-os, harmonizando-os, admitimos perfeitamente que, para a própria promoção do universal, a actividade não coagida das pessoas e grupos, em consonância com o Poder que, sobre eles, os integra num todo, seja preferível e mais eficiente do que uma actividade estruturada a partir de cima, impulsionada de modo imediato pelos organismo emanados do Poder. Simplesmente, que há-de este fazer, se as pessoas e grupos, em vez de desempenharem funções positivas, no plano em que as conseguem desempenhar, entram no cultivo dum egoísmo atomístico, num subsersivismo manifesto?
Claro que intervir ampla e acentuadamente. Talvez se perca em eficácia em comparação com a solução preferível? Sim, do mal o menos, porém.
Sirvamo-nos de uma comparação grosseira, porque abstrai de certas considerações de ordem sobrenatural. Considerada a família a célula social, é incontestável que os pais são quem a pode chefiar da melhor maneira. Eles são, em princípio e normalmente, os melhores funcionários da sociedade. No entanto, se os pais educarem os filhos para o crime, para a perversão, etc., há que retirar-lhes o pátrio poder e confiar a tutela daqueles a individualidades designadas pelos tribunais ou a determinadas instituições, oficiais ou particulares, reconhecidas como idóneas. Não sustentamos que isto seja uma situação esplêndida. É, todavia, uma situação preferível a deixar correr as coisas.
Um autor entusiasticamente adepto da descentralização — José Pequito Rebelo — em texto inserido na segunda edição de "Pela Dedução à Monarquia" admite (salvo erro, pois estou a citar de memória) que, provisoriamente e perante a perversão derivada de um século de demo-liberalismo, o Estado absorva a Nação, com a finalidade pedagógica de diminuir ou suprimir os ímpetos centrífugos e destruidores para que, depois, os vários corpos sociais possam exercitar sem peias as tarefas que lhe são próprias.
Prolongando e desenvolvendo por nossa conta, esse ponto de vista — e mantendo como meta final o equilíbrio das liberdades «em baixo» com o predomínio da Autoridade «no alto» — diremos que o dimensionamento dos instrumentos burocráticos do Poder é coisa relativa, que depende dos condicionalismos. O que numa certa conjuntura é desejável noutra é imprudência. O que numa é excessivo noutra é indispensável.
Estamos perante matéria contingente. É esta a primeira razão porque não é resolver o problema do Estado a tentativa de dosear o grau da intervenção dos seus instrumentos. Ela jamais pode ficar nada de definitivo. E por maioria de razão, a descoberta dos meios indicados para concretizar esse grau de intervenção representa, apenas, um problema técnico, de alcance limitado. Aumentar ou diminuir os ministérios, dividir os serviços burocráticos por vários centros ou concentrá-los predominantemente numa capital é questão a discutir, sem dúvida, contudo de interesse reduzido. Salvo o devido respeito pela opinião contrária, a tomada das capitais não corresponde a algo de decisivo. Com Paris conquistada, a França continuou a resistir até ao armistício e, se desse ouvidos a De Gaulle, prosseguiria na luta. Com Madrid nas mãos dos vermelhos, em Março de 1939, o governo republicano não passava já de simulacro. E se D. Manuel tivesse desembarcado no Porto a república não se poderia considerar ainda vitoriosa, apesar de Lisboa estar nas mãos dos republicanos.
De qualquer forma, centralização ou descentralização são inteiramente condicionadas, na sua validade política, pela estrutura e organização interna do Poder. Com um Poder fraco dividido, a descentralização é a antecâmara do caos e a centralização equivalente a impotência e paralisia. Já com um Poder forte e coeso a descentralização revela-se, acaso, em determinadas ocasiões oportuníssima e a centralização pode dar bons frutos, apesar dos seus inconvenientes.
E eis a segunda razão porque resolver o problema do Estado não é o mesmo que tentar circunscrever e delimitar a extensão do terreno em que devem actuar os instrumentos que o Poder utiliza. A forma assumida por este é que determina as possibilidades de actuação dos seus órgãos e agentes. Politique d`abord. Uma aparelhagem dúctil e ligeira em mãos ineptas não serve de nada. Um mecanismo, ainda que pesado e difícil, em mãos firmes é capaz de prestar bons serviços.
Pode-se andar com os pés apertados como a mulher chinesa, ou com os pés espalmados como os dos negros de certas tribos. Mas se o cérebro não comanda os movimentos, a deslocação é impossível e a paralisia é inevitável, por muito bem constituídos, anatomicamente, que estejam os membros inferiores. O primeiro passo, pois, para resolver o problema do Estado e o das instituições em que se corporize o Poder é a chamada questão do regime.
Para além dela, no entanto, há ainda algo de mais relevante, de mais proeminente e destacado: é a resposta à pergunta para que serve o vínculo social, para que serve a comunidade política. É ela um fim último, um fim em si mesmo? Está, axiologicamente, colocada abaixo da liberdade dos indivíduos e das pessoas, existindo, em última análise, para promover, assegurar, esta última? Ou sendo superior aos indivíduos e pessoas está ordenada a um fim mais alto, a um Absoluto transcendente, que também é o fim dos indivíduos e pessoas? Trata-se dos temas decisivos, que dizem respeito ao destino do homem, aos direitos, aos deveres, ao sentido a imprimir à sociedade no seu conjunto.
O tipo de organização interna do Poder depende da solução dada a estas dúvidas. Se as pessoas e indivíduos são o valor máximo, evidentemente que têm de intervir decisivamente no Poder, dispor dele, numa palavra. É uma exigência intrínseca da dignidade que lhes pertence o auto-governar-se e não serem hetero-governadas. Em contrapartida, pode entender-se que um Poder organizado assim — às ordens do somatório das vontades das pessoas — tem legitimidade para estender ao máximo a sua esfera de intervenção. Isso só significaria um esforço de protecção e segurança do maior número de indivíduos. E também se poderá pensar o contrário e sustentar que os órgãos do Poder se devem restringir ao mínimo sendo isso a melhor garantia de respeito pelas pessoas. Numa palavra, estamos perante uma simples discussão de meio e unanimidade quanto aos fins. Centralização e descentralização são ambas, em princípio, compatíveis com uma axiologia personalista ou individualista.
Mas se se considerar, ao invés, que a comunidade política é o valor máximo, o Poder terá de estar acima da vontade dos indivíduos e destinar-se a impor-lhes uma disciplina exclusivamente supra-pessoal. Terá de ser um Poder independente, que apenas expresse esse interesse colectivo, por hipótese auto-suficiente. Nada impede, todavia, que se entenda que a comunidade política, proclamada fim de si mesma, está mais bem articulada, e desenvolve-se e potencia-se de maneira superior, se nela imperar um bom nível de descentralização. Ou que se julgue que o oposto é que é verdade.
Quer dizer que, também, centralização ou descentralização são compatíveis, em princípio, com uma axiologia totalista e imanentista.
Análogas reflexões são concebíveis no tocante à tese do primado da sociedade sobre a pessoa, embora ordenada a primeira a um fim último que a ultrapassa e transcende.
Isto demonstra, segundo imaginamos, que encarada do ponto de vista da simples existência da sociedade a questão descentralização — centralização não passa de um ponto de mera decisão conjuntural, sempre dependente, aliás, da forma como o Poder está internamente estruturado. E, no que diz respeito às noções éticas decisivas, concernentes ao sentido da vida política, ela é adiáfora, isto é, alheia às mesmas, que não impõem, do ponto de vista axiológico, uma solução centralizadora ou descentralizadora.
Assim, o fundamental é, a nosso ver, o problema do fim derradeiro da comunidade e o da organização interna do Poder que se conexiona em relação recíproca com o primeiro e directamente com o da eficácia da acção dos chamados organismos estaduais, estejam desenvolvidos e estruturados como estiverem.
Examinemos o Estado Novo de Salazar à luz de quanto expusemos. Supomos perfeitamente lícito sustentar que ele se distingue do statu quo vigente no que mais importa: no tocante à axiologia e no tocante à organização interna do Poder. O statu quo vigente é inspirado pela ideologia demo-liberal e seus prolongamentos marxizantes. O Estado Novo era guiado por um nacionalismo não totalitário uma vez que admitia que a pessoa existia para Deus — e Deus concebido de acordo com o Catolicismo — mas autoritário, porque, no plano natural, sustentava que a pessoa, para atingir a sua finalidade suprema, devia submeter-se à comunidade posto que, de acordo com o ensinamento de Aristóteles e de S. Tomás, o bem da cidade é mais divino do que o bem de um só.
O statu quo vigente é partidocrático, divisionista, sufragístico, defendendo a tese curiosa de que os governados é que devem governar e ser governantes. O Estado Novo suprimiu o fragmentarismo partidário, exalçou as virtudes do governo de um só ainda que de maneira imperfeita e sem jamais chegar às devidas conclusões institucionais. Aqui, neste particular, é que me parecem merecidas as críticas.
Seja como for, as divergências no essencial são flagrantes. Que houvesse mais ministérios do que na I República (embora menos do que hoje) não imaginamos que nos importe muito se a direcção (nos dois sentidos da palavra direcção) que lhes foi imprimida era radicalmente diversa.
Acaso a centralização do Estado Novo, por vezes, resultou excessiva e, noutros casos, pouco hábil. Depois de cerca de cem anos de desordem democrática, que não se cura numa ou duas décadas, supomos impossível seguir outro rumo. Se alguém recebe uma «pesada herança» esse alguém foi Salazar.
Dadas as circunstâncias de orientação no que é básico entre o Estado Novo e o statu quo vigente julgamos profundamente equivocado apresentar este qual sucessor doutrinário daquele. Se há sucessão, é puramente cronológica, já que a relação entre um e outro, no que concerne ao essencial, é de antagonismo irreconciliável, um antagonismo do tipo que existe entre a verdade e o erro, o ser e o nada.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 73, pág. 18, 01.08.1977, e n.º 74, pág. 10, 04.04.1977)
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1) Estado enquanto sinónimo de comunidade autónoma, organizada politicamente, isto é, sob a égide de um Poder soberano;
2) Estado enquanto sinónimo, precisamente, do Poder soberano existente em tal comunidade;
3) Estado enquanto sinónimo de mera aparelhagem burocrática (acentuemos que é com esse significado que o Nacional-Socialismo, ou, pelo menos, a tendência dominante entre os autores nacionais-socialistas alude ao Estado — Der Staat ist ein Apparat).
Que não se concebe comunidade ou sociedade (prescindindo, aqui, da distinção célebre formulada por Tonnies) sem um Poder supremo parece-nos um axioma indiscutível. As pessoas e os grupos não se integram, espontaneamente, numa unidade, antes tendem para a divergência e a dissociação (conforme dizia Maurras «ce qui m`étonne ce n`est pas le désordre, c`est l`ordre». As suas actividades têm de ser coordenadas, fiscalizadas, disciplinadas, para delas resultar uma totalidade harmónica. Essa a missão capital do Poder que, para o efeito, precisa de possuir ao seu dispor dos instrumentos adequados.
A força, o volume, o âmbito de aplicação de semelhantes instrumentos têm de ser encarados pragmaticamente, em relação com a conservação e o desenvolvimento da comunidade cuja sobrevivência o Poder deve assegurar. A denominarmos Estado a aparelhagem de que o Poder se serve, não vemos que o seu dimensionamento possa ser traçado a priori. As circunstâncias é que permitem decidir em cada caso concreto. Onde os perigos de dissolução e as ameaças de anarquia forem grandes, decerto que o Poder está na obrigação de estender o domínio de intervenção dos chamados órgãos estaduais, a fim de reprimir e dominar os factores de desagregação. Onde se verifique o inverso já o Poder dispõe da possibilidade de reduzir o número e a esfera de acção directa desses órgãos, diminuindo-a ou tornando-a muito mais flexível.
De certo, o ideal será que pessoas e grupos, por si, sem pressões exteriores, desempenhem na promoção do bem social as funções positivas que tenham capacidade para exercer utilmente — capacidade, não muito larga, é evidentemente, visto que o interesse geral só pode ser cometido a quem esteja na perspectiva do universal e não numa perspectiva de particularidade, conforme é o caso das pessoas e grupos, divergentes entre si. Mas como o universal não é nada de separado dos diversos elementos singulares (pois que, então, o universal seria, por seu turno, também um elemento singular) antes é aquilo que neles está presente, ligando-os, unindo-os, harmonizando-os, admitimos perfeitamente que, para a própria promoção do universal, a actividade não coagida das pessoas e grupos, em consonância com o Poder que, sobre eles, os integra num todo, seja preferível e mais eficiente do que uma actividade estruturada a partir de cima, impulsionada de modo imediato pelos organismo emanados do Poder. Simplesmente, que há-de este fazer, se as pessoas e grupos, em vez de desempenharem funções positivas, no plano em que as conseguem desempenhar, entram no cultivo dum egoísmo atomístico, num subsersivismo manifesto?
Claro que intervir ampla e acentuadamente. Talvez se perca em eficácia em comparação com a solução preferível? Sim, do mal o menos, porém.
Sirvamo-nos de uma comparação grosseira, porque abstrai de certas considerações de ordem sobrenatural. Considerada a família a célula social, é incontestável que os pais são quem a pode chefiar da melhor maneira. Eles são, em princípio e normalmente, os melhores funcionários da sociedade. No entanto, se os pais educarem os filhos para o crime, para a perversão, etc., há que retirar-lhes o pátrio poder e confiar a tutela daqueles a individualidades designadas pelos tribunais ou a determinadas instituições, oficiais ou particulares, reconhecidas como idóneas. Não sustentamos que isto seja uma situação esplêndida. É, todavia, uma situação preferível a deixar correr as coisas.
Um autor entusiasticamente adepto da descentralização — José Pequito Rebelo — em texto inserido na segunda edição de "Pela Dedução à Monarquia" admite (salvo erro, pois estou a citar de memória) que, provisoriamente e perante a perversão derivada de um século de demo-liberalismo, o Estado absorva a Nação, com a finalidade pedagógica de diminuir ou suprimir os ímpetos centrífugos e destruidores para que, depois, os vários corpos sociais possam exercitar sem peias as tarefas que lhe são próprias.
Prolongando e desenvolvendo por nossa conta, esse ponto de vista — e mantendo como meta final o equilíbrio das liberdades «em baixo» com o predomínio da Autoridade «no alto» — diremos que o dimensionamento dos instrumentos burocráticos do Poder é coisa relativa, que depende dos condicionalismos. O que numa certa conjuntura é desejável noutra é imprudência. O que numa é excessivo noutra é indispensável.
Estamos perante matéria contingente. É esta a primeira razão porque não é resolver o problema do Estado a tentativa de dosear o grau da intervenção dos seus instrumentos. Ela jamais pode ficar nada de definitivo. E por maioria de razão, a descoberta dos meios indicados para concretizar esse grau de intervenção representa, apenas, um problema técnico, de alcance limitado. Aumentar ou diminuir os ministérios, dividir os serviços burocráticos por vários centros ou concentrá-los predominantemente numa capital é questão a discutir, sem dúvida, contudo de interesse reduzido. Salvo o devido respeito pela opinião contrária, a tomada das capitais não corresponde a algo de decisivo. Com Paris conquistada, a França continuou a resistir até ao armistício e, se desse ouvidos a De Gaulle, prosseguiria na luta. Com Madrid nas mãos dos vermelhos, em Março de 1939, o governo republicano não passava já de simulacro. E se D. Manuel tivesse desembarcado no Porto a república não se poderia considerar ainda vitoriosa, apesar de Lisboa estar nas mãos dos republicanos.
De qualquer forma, centralização ou descentralização são inteiramente condicionadas, na sua validade política, pela estrutura e organização interna do Poder. Com um Poder fraco dividido, a descentralização é a antecâmara do caos e a centralização equivalente a impotência e paralisia. Já com um Poder forte e coeso a descentralização revela-se, acaso, em determinadas ocasiões oportuníssima e a centralização pode dar bons frutos, apesar dos seus inconvenientes.
E eis a segunda razão porque resolver o problema do Estado não é o mesmo que tentar circunscrever e delimitar a extensão do terreno em que devem actuar os instrumentos que o Poder utiliza. A forma assumida por este é que determina as possibilidades de actuação dos seus órgãos e agentes. Politique d`abord. Uma aparelhagem dúctil e ligeira em mãos ineptas não serve de nada. Um mecanismo, ainda que pesado e difícil, em mãos firmes é capaz de prestar bons serviços.
Pode-se andar com os pés apertados como a mulher chinesa, ou com os pés espalmados como os dos negros de certas tribos. Mas se o cérebro não comanda os movimentos, a deslocação é impossível e a paralisia é inevitável, por muito bem constituídos, anatomicamente, que estejam os membros inferiores. O primeiro passo, pois, para resolver o problema do Estado e o das instituições em que se corporize o Poder é a chamada questão do regime.
Para além dela, no entanto, há ainda algo de mais relevante, de mais proeminente e destacado: é a resposta à pergunta para que serve o vínculo social, para que serve a comunidade política. É ela um fim último, um fim em si mesmo? Está, axiologicamente, colocada abaixo da liberdade dos indivíduos e das pessoas, existindo, em última análise, para promover, assegurar, esta última? Ou sendo superior aos indivíduos e pessoas está ordenada a um fim mais alto, a um Absoluto transcendente, que também é o fim dos indivíduos e pessoas? Trata-se dos temas decisivos, que dizem respeito ao destino do homem, aos direitos, aos deveres, ao sentido a imprimir à sociedade no seu conjunto.
O tipo de organização interna do Poder depende da solução dada a estas dúvidas. Se as pessoas e indivíduos são o valor máximo, evidentemente que têm de intervir decisivamente no Poder, dispor dele, numa palavra. É uma exigência intrínseca da dignidade que lhes pertence o auto-governar-se e não serem hetero-governadas. Em contrapartida, pode entender-se que um Poder organizado assim — às ordens do somatório das vontades das pessoas — tem legitimidade para estender ao máximo a sua esfera de intervenção. Isso só significaria um esforço de protecção e segurança do maior número de indivíduos. E também se poderá pensar o contrário e sustentar que os órgãos do Poder se devem restringir ao mínimo sendo isso a melhor garantia de respeito pelas pessoas. Numa palavra, estamos perante uma simples discussão de meio e unanimidade quanto aos fins. Centralização e descentralização são ambas, em princípio, compatíveis com uma axiologia personalista ou individualista.
Mas se se considerar, ao invés, que a comunidade política é o valor máximo, o Poder terá de estar acima da vontade dos indivíduos e destinar-se a impor-lhes uma disciplina exclusivamente supra-pessoal. Terá de ser um Poder independente, que apenas expresse esse interesse colectivo, por hipótese auto-suficiente. Nada impede, todavia, que se entenda que a comunidade política, proclamada fim de si mesma, está mais bem articulada, e desenvolve-se e potencia-se de maneira superior, se nela imperar um bom nível de descentralização. Ou que se julgue que o oposto é que é verdade.
Quer dizer que, também, centralização ou descentralização são compatíveis, em princípio, com uma axiologia totalista e imanentista.
Análogas reflexões são concebíveis no tocante à tese do primado da sociedade sobre a pessoa, embora ordenada a primeira a um fim último que a ultrapassa e transcende.
Isto demonstra, segundo imaginamos, que encarada do ponto de vista da simples existência da sociedade a questão descentralização — centralização não passa de um ponto de mera decisão conjuntural, sempre dependente, aliás, da forma como o Poder está internamente estruturado. E, no que diz respeito às noções éticas decisivas, concernentes ao sentido da vida política, ela é adiáfora, isto é, alheia às mesmas, que não impõem, do ponto de vista axiológico, uma solução centralizadora ou descentralizadora.
Assim, o fundamental é, a nosso ver, o problema do fim derradeiro da comunidade e o da organização interna do Poder que se conexiona em relação recíproca com o primeiro e directamente com o da eficácia da acção dos chamados organismos estaduais, estejam desenvolvidos e estruturados como estiverem.
Examinemos o Estado Novo de Salazar à luz de quanto expusemos. Supomos perfeitamente lícito sustentar que ele se distingue do statu quo vigente no que mais importa: no tocante à axiologia e no tocante à organização interna do Poder. O statu quo vigente é inspirado pela ideologia demo-liberal e seus prolongamentos marxizantes. O Estado Novo era guiado por um nacionalismo não totalitário uma vez que admitia que a pessoa existia para Deus — e Deus concebido de acordo com o Catolicismo — mas autoritário, porque, no plano natural, sustentava que a pessoa, para atingir a sua finalidade suprema, devia submeter-se à comunidade posto que, de acordo com o ensinamento de Aristóteles e de S. Tomás, o bem da cidade é mais divino do que o bem de um só.
O statu quo vigente é partidocrático, divisionista, sufragístico, defendendo a tese curiosa de que os governados é que devem governar e ser governantes. O Estado Novo suprimiu o fragmentarismo partidário, exalçou as virtudes do governo de um só ainda que de maneira imperfeita e sem jamais chegar às devidas conclusões institucionais. Aqui, neste particular, é que me parecem merecidas as críticas.
Seja como for, as divergências no essencial são flagrantes. Que houvesse mais ministérios do que na I República (embora menos do que hoje) não imaginamos que nos importe muito se a direcção (nos dois sentidos da palavra direcção) que lhes foi imprimida era radicalmente diversa.
Acaso a centralização do Estado Novo, por vezes, resultou excessiva e, noutros casos, pouco hábil. Depois de cerca de cem anos de desordem democrática, que não se cura numa ou duas décadas, supomos impossível seguir outro rumo. Se alguém recebe uma «pesada herança» esse alguém foi Salazar.
Dadas as circunstâncias de orientação no que é básico entre o Estado Novo e o statu quo vigente julgamos profundamente equivocado apresentar este qual sucessor doutrinário daquele. Se há sucessão, é puramente cronológica, já que a relação entre um e outro, no que concerne ao essencial, é de antagonismo irreconciliável, um antagonismo do tipo que existe entre a verdade e o erro, o ser e o nada.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 73, pág. 18, 01.08.1977, e n.º 74, pág. 10, 04.04.1977)
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domingo, junho 26, 2005
NACIONALISMO E DESCENTRALIZAÇÃO
Há quem sustente que os esforços (improfícuos, aliás, até aqui) do sistema para descentralizar representam uma indiscutível vitória da doutrina nacionalista pela homenagem que expressam a uma das suas mais sérias reivindicações.
Quanto a nós, semelhante ponto de vista parece-nos amplamente equivocado. A descentralização aconselhada pelo nacionalismo apenas se compreende no conjunto das suas soluções. Ela postula, por isso, antes de mais nada, uma chefia suprema forte e pessoal que se imponha a valer. Uma vez vitoriosa a tendência concentradora no plano político, aceita-se como útil uma tendência desconcentradora no plano administrativo, de acordo com a fórmula tão repetida de Gama e Castro «o rei governa mas não administra».
Sem a condição prévia da existência de um chefe autêntico, a descentralização administrativa reduz-se a mais uma etapa no caminho da anarquia.
A descentralização preconizada pelo nacionalismo integra-se numa visão orgânica e hierárquica da sociedade. Julga-se conveniente que os orgãos soberanos se confinem a missões específicas e não procurem desempenhar, igualmente, funções que outras entidades poderão exercer com mais eficiência e proveito. A concentração excessiva, julga-a, por exemplo, António Sardinha, conducente ao enfraquecimento do Poder, sendo esse um dos motivos porque a repele (1). O Poder, para verdadeiramente ser Poder, não deve procurar realizar tudo, hipertrofiando-se, tornando-se apoplético, desmesurado, arrastado e tardo. Servidor do bem supremo que é a unidade, tem de aceitar a condição da vida da unidade — a variedade, a multiplicidade, que ela reúne, liga, disciplina e sem as quais não há actos de união possíveis.
Simplesmente, o que se não deve esquecer é que a variedade e a multiplicidade, para não serem factores de atomização e dispersão, têm de estar enquadradas na e pela unidade.
Por isso, a descentralização implica, previamente, uma direcção superior e una, uma força centrípeta que faça convergir as diferentes energias.
A autoridade ao alto, as liberdades «restritas e concretas» (2) — de novo, no dizer de Sardinha — em baixo (3), eis a fórmula nacionalista. A concentração no plano político e distensão no administrativo significam, porém, obviamente que as autarquias locais não são outras tantas pátrias independentes, mas, ao invés, pertencem à Pátria e têm de estar articuladas na totalidade que esta forma e de que é guardião e garante o Estado (no sentido mais usual da expressão Estado).
Quando, no entanto, tal totalidade não possui instrumento algum que a defenda e promova, quando a divisão e a discórdia estão instaladas na própria esfera do que deveria ser um núcleo central unificador, a descentralização perde todas as suas vantagens e torna-se uma das muitas fontes do caos reinante. Em democracia — e, em especial, em democracia partidocrática —, a descentralização (isto sem discutirmos a possibilidade ou a impossibilidade de uma democracia conseguir, estável e duradoiramente, descentralizar), se levada a cabo, constitui uma catástrofe. Os municípios ainda mais partidarizados, províncias opondo-se a províncias conforme a cor, enfim, a descida do espírito de seita e desobediência dos organismos de comando até aos confins das aldeias remotas — e aí temos a descentralização demo-partidocrática. Num regime de desordem ela só conseguirá repercutir e difundir a desordem. Unicamente num regime de ordem poderá ser um factor de revigoramento e pujança desta última, ao imprimir-lhe vitalidade e articulação.
Numa leitura ocasional deparamos, em revista francesa, com a afirmação de que Maurras, tendo sido entusiasta do regionalismo, perfilhara uma tese de esquerda. Como se houvesse algo de comum (além do nome) entre o regionalismo que certa esquerda apregoa e as concepções maurrasistas.
Aquele é o chamado protesto contra a pretensa opressão que do ordenamento nacional resulta, é o direito de grupos de homens, de acordo com as afinidades que sentem, se autodeterminarem e viverem exclusivamente por e para si, repudiando todas as regras imperativas e permanentes e aceitando exclusivamente o que é produto dos seus quereres arbitrários e ocasionais. O maurrasismo, por seu turno, é a defesa da nação pelo robustecimento das partes que a estruturam, as quais nunca podem esquecer o serviço do interesse comum. Entre o regionalismo das esquerdas e o regionalismo de Maurras há o abismo que medeia entre os que queiram desenvolver mãos, braços, pernas, coração, pulmões, nos limites que tornam um corpo cada vez mais firme e harmonioso, e os que pretendam fazer crescer mãos, pernas, braços, etc., cada um de per si até ao máximo, produzindo um corpo monstruoso que acaba por estoirar pela pressão do aumento autónomo e desproporcionado dos seus elementos constituintes. Em Maurras deparamos com o culto da unidade orgânica, no regionalismo da esquerda a aversão a toda a espécie de unidade, o amor extremado ao particularismo que dissolve e desagrega.
Nada mais é preciso acrescentar. Fujamos às confusões e ilusões e saibamos ver claramente que em democracia partidocrática não há descentralizações ou regionalizações que valham.
António José de Brito
Notas:
1 - «Tudo o que seja um abuso de centralização administrativa... resulta inevitavelmente num enfraquecimento da concentração política» (António Sardinha, Purgatório das Ideias, p. 273); «Se por exemplo se fala no municipalismo pensa-se em voltar aos forais tal como a Idade Média os concebe... O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização das mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 15.
2 - «É pelas liberdades de sentido restrito e concreto que dedicadamente nos inscrevemos» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 30).
3 – Les Libertés en bas, l`Autorité en haut (Charles Maurras, Enquête sur la Monarchie, ed. Définitive, p. 449.
A. J. B.
(In «A Rua», n.º 163, pág. 16, 26.07.1979)
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Quanto a nós, semelhante ponto de vista parece-nos amplamente equivocado. A descentralização aconselhada pelo nacionalismo apenas se compreende no conjunto das suas soluções. Ela postula, por isso, antes de mais nada, uma chefia suprema forte e pessoal que se imponha a valer. Uma vez vitoriosa a tendência concentradora no plano político, aceita-se como útil uma tendência desconcentradora no plano administrativo, de acordo com a fórmula tão repetida de Gama e Castro «o rei governa mas não administra».
Sem a condição prévia da existência de um chefe autêntico, a descentralização administrativa reduz-se a mais uma etapa no caminho da anarquia.
A descentralização preconizada pelo nacionalismo integra-se numa visão orgânica e hierárquica da sociedade. Julga-se conveniente que os orgãos soberanos se confinem a missões específicas e não procurem desempenhar, igualmente, funções que outras entidades poderão exercer com mais eficiência e proveito. A concentração excessiva, julga-a, por exemplo, António Sardinha, conducente ao enfraquecimento do Poder, sendo esse um dos motivos porque a repele (1). O Poder, para verdadeiramente ser Poder, não deve procurar realizar tudo, hipertrofiando-se, tornando-se apoplético, desmesurado, arrastado e tardo. Servidor do bem supremo que é a unidade, tem de aceitar a condição da vida da unidade — a variedade, a multiplicidade, que ela reúne, liga, disciplina e sem as quais não há actos de união possíveis.
Simplesmente, o que se não deve esquecer é que a variedade e a multiplicidade, para não serem factores de atomização e dispersão, têm de estar enquadradas na e pela unidade.
Por isso, a descentralização implica, previamente, uma direcção superior e una, uma força centrípeta que faça convergir as diferentes energias.
A autoridade ao alto, as liberdades «restritas e concretas» (2) — de novo, no dizer de Sardinha — em baixo (3), eis a fórmula nacionalista. A concentração no plano político e distensão no administrativo significam, porém, obviamente que as autarquias locais não são outras tantas pátrias independentes, mas, ao invés, pertencem à Pátria e têm de estar articuladas na totalidade que esta forma e de que é guardião e garante o Estado (no sentido mais usual da expressão Estado).
Quando, no entanto, tal totalidade não possui instrumento algum que a defenda e promova, quando a divisão e a discórdia estão instaladas na própria esfera do que deveria ser um núcleo central unificador, a descentralização perde todas as suas vantagens e torna-se uma das muitas fontes do caos reinante. Em democracia — e, em especial, em democracia partidocrática —, a descentralização (isto sem discutirmos a possibilidade ou a impossibilidade de uma democracia conseguir, estável e duradoiramente, descentralizar), se levada a cabo, constitui uma catástrofe. Os municípios ainda mais partidarizados, províncias opondo-se a províncias conforme a cor, enfim, a descida do espírito de seita e desobediência dos organismos de comando até aos confins das aldeias remotas — e aí temos a descentralização demo-partidocrática. Num regime de desordem ela só conseguirá repercutir e difundir a desordem. Unicamente num regime de ordem poderá ser um factor de revigoramento e pujança desta última, ao imprimir-lhe vitalidade e articulação.
Numa leitura ocasional deparamos, em revista francesa, com a afirmação de que Maurras, tendo sido entusiasta do regionalismo, perfilhara uma tese de esquerda. Como se houvesse algo de comum (além do nome) entre o regionalismo que certa esquerda apregoa e as concepções maurrasistas.
Aquele é o chamado protesto contra a pretensa opressão que do ordenamento nacional resulta, é o direito de grupos de homens, de acordo com as afinidades que sentem, se autodeterminarem e viverem exclusivamente por e para si, repudiando todas as regras imperativas e permanentes e aceitando exclusivamente o que é produto dos seus quereres arbitrários e ocasionais. O maurrasismo, por seu turno, é a defesa da nação pelo robustecimento das partes que a estruturam, as quais nunca podem esquecer o serviço do interesse comum. Entre o regionalismo das esquerdas e o regionalismo de Maurras há o abismo que medeia entre os que queiram desenvolver mãos, braços, pernas, coração, pulmões, nos limites que tornam um corpo cada vez mais firme e harmonioso, e os que pretendam fazer crescer mãos, pernas, braços, etc., cada um de per si até ao máximo, produzindo um corpo monstruoso que acaba por estoirar pela pressão do aumento autónomo e desproporcionado dos seus elementos constituintes. Em Maurras deparamos com o culto da unidade orgânica, no regionalismo da esquerda a aversão a toda a espécie de unidade, o amor extremado ao particularismo que dissolve e desagrega.
Nada mais é preciso acrescentar. Fujamos às confusões e ilusões e saibamos ver claramente que em democracia partidocrática não há descentralizações ou regionalizações que valham.
António José de Brito
Notas:
1 - «Tudo o que seja um abuso de centralização administrativa... resulta inevitavelmente num enfraquecimento da concentração política» (António Sardinha, Purgatório das Ideias, p. 273); «Se por exemplo se fala no municipalismo pensa-se em voltar aos forais tal como a Idade Média os concebe... O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização das mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 15.
2 - «É pelas liberdades de sentido restrito e concreto que dedicadamente nos inscrevemos» (António Sardinha, Na Feira dos Mitos, p. 30).
3 – Les Libertés en bas, l`Autorité en haut (Charles Maurras, Enquête sur la Monarchie, ed. Définitive, p. 449.
A. J. B.
(In «A Rua», n.º 163, pág. 16, 26.07.1979)
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«A FILOSOFIA TOMISTA EM PORTUGAL» DE PINHARANDA GOMES
Prosseguindo o seu meritório esforço de revelar aos portugueses o pensamento português, Pinharanda Gomes publicou mais um volume intitulado "A Filosofia Tomista em Portugal". O núcleo básico do trabalho é constituído pela tradução do muito falado mas pouco lido artigo de Ferreira Deusdado, publicado em 1898, com esse mesmo título, na "Revue Neo-Scolastique de Philosophie" de Lovaina. Pinharanda Gomes antecedeu-o de um interessante estudo crítico acerca das ideias de Deusdado: e como este, obviamente, se deteve em 1898, Pinharanda Gomes propôs-se prosseguir o labor do mestre insigne de "Criminalidade e Educação", traçando o panorama do movimento tomista no nosso país até 1973 (e arrancando de um pouco antes de 1898, isto é, de 1879, data da «Aeterni Patris» de Leão XIII).
Embora o texto do livro, na maior parte, seja de sua autoria, Pinharanda Gomes, num gesto de modéstia só digno de louvor, não fez colocar o seu nome na portada da obra, acaso porque a sua inspiração principal a bebeu em Ferreira Deusdado, que assim homenageou discretamente.
Claro que, do ponto de vista da pura erudição, não estamos, talvez, perante nada de totalmente inatacável. Mas como não somos profissionalmente eruditos, não possuímos autoridade para, nesse plano, nos pronunciarmos. Aliás, cremos que Pinharanda Gomes, mais do que apresentar algo de acabado e definitivo, pretendeu apresentar um esquema e fornecer elementos valiosos para uma futura história, minuciosa e integral, do tomismo nacional, no período compreendido entre 1879 e 1973.
De qualquer forma, tal qual surge, "A Filosofia Tomista em Portugal" representa, já, muitas e muitas horas de reflexão, investigação e pesquisas exaustivas. Não quer isto significar que, ali e além, não lhe encontremos defeitos. Mas o que há que não tenha defeitos? A perfeição só existe em Deus.
Determinados pontos suscitam, de facto, a nossa perplexidade. Por exemplo: Pinharanda Gomes atribui ao prof. Cabral de Moncada uma «tendência tomista». Este último autodenominava-se um neo-kantiano influenciado pela Fenomenologia (1). Desconfiando às vezes das filiações que os pensadores atribuem a si próprios — quanto a nós o prof. Cabral de Moncada foi, antes, um fenomenólogo influenciado pelo neo-kantismo — o que não vemos maneira é de o considerarmos tomista. Admirava S. Tomás, respeitava imenso o Tomismo? Sem dúvida. Daí a ter uma tendência tomista vai, no entanto, uma certa distância.
Por outro lado, supomos que Maria Manuela Saraiva, mais do que pelo existencialismo, foi marcada pela influência da Fenomenologia, ainda que, entre uma e outra corrente, nem sempre se faça uma distinção clara (Spiegelberg inclui Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, etc., em «The Phenomenological Movement»).
Não compreendemos, também, porque é que Pinharanda Gomes cita na bibliografia certos autores brasileiros deixando outros de fora. Pois Leonel Franca, v.g., não mereceria uma referência? E a propósito de bibliografia? O critério seguido por Pinharanda Gomes nem sempre o aplaudimos. Se é nela mencionado um ensaio de Cruz Pontes — «Latim e Filosofia» — que só indirectamente se relaciona com Tomismo, porque não referir as suas belas teses sobre Pedro Hispano?
E anote-se que a «Teoria do Conhecimento» de Diamantino Martins, não aparece ao lado de outros livros do mesmo pensador, decerto por lapso.
Mais um ou outro ponto mereceria comentário. Mas, tal como os apontados, são meros pormenores. E em meros pormenores não é de insistir.
Estamos, seja como for, perante um livro digno de todo o respeito e apreço, muito acima das vulgaridades marxista e marxizantes que hoje desabam sobre a nossa terra (e de que as actas de participação de compatriotas nossos — chamemos-lhes — no Congresso Hegel, de Lisboa, são, salvo excepções, deplorável testemunho).
Pinharanda Gomes, fiel a si próprio, não alinha no rebanho dos tristes devotos de S. Marx cá do rectângulo.
Ainda bem! E honra lhe seja por isso.
António José de Brito
Nota:
1 - Cfr. Luís Cabral de Moncada, «Para a História da Filosofia em Portugal no Século XX - Apontamento», Coimbra, 1960, pp.9-10.
(In «A Rua», n.º 135, pág. 18, 11.01.1979)
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Embora o texto do livro, na maior parte, seja de sua autoria, Pinharanda Gomes, num gesto de modéstia só digno de louvor, não fez colocar o seu nome na portada da obra, acaso porque a sua inspiração principal a bebeu em Ferreira Deusdado, que assim homenageou discretamente.
Claro que, do ponto de vista da pura erudição, não estamos, talvez, perante nada de totalmente inatacável. Mas como não somos profissionalmente eruditos, não possuímos autoridade para, nesse plano, nos pronunciarmos. Aliás, cremos que Pinharanda Gomes, mais do que apresentar algo de acabado e definitivo, pretendeu apresentar um esquema e fornecer elementos valiosos para uma futura história, minuciosa e integral, do tomismo nacional, no período compreendido entre 1879 e 1973.
De qualquer forma, tal qual surge, "A Filosofia Tomista em Portugal" representa, já, muitas e muitas horas de reflexão, investigação e pesquisas exaustivas. Não quer isto significar que, ali e além, não lhe encontremos defeitos. Mas o que há que não tenha defeitos? A perfeição só existe em Deus.
Determinados pontos suscitam, de facto, a nossa perplexidade. Por exemplo: Pinharanda Gomes atribui ao prof. Cabral de Moncada uma «tendência tomista». Este último autodenominava-se um neo-kantiano influenciado pela Fenomenologia (1). Desconfiando às vezes das filiações que os pensadores atribuem a si próprios — quanto a nós o prof. Cabral de Moncada foi, antes, um fenomenólogo influenciado pelo neo-kantismo — o que não vemos maneira é de o considerarmos tomista. Admirava S. Tomás, respeitava imenso o Tomismo? Sem dúvida. Daí a ter uma tendência tomista vai, no entanto, uma certa distância.
Por outro lado, supomos que Maria Manuela Saraiva, mais do que pelo existencialismo, foi marcada pela influência da Fenomenologia, ainda que, entre uma e outra corrente, nem sempre se faça uma distinção clara (Spiegelberg inclui Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, etc., em «The Phenomenological Movement»).
Não compreendemos, também, porque é que Pinharanda Gomes cita na bibliografia certos autores brasileiros deixando outros de fora. Pois Leonel Franca, v.g., não mereceria uma referência? E a propósito de bibliografia? O critério seguido por Pinharanda Gomes nem sempre o aplaudimos. Se é nela mencionado um ensaio de Cruz Pontes — «Latim e Filosofia» — que só indirectamente se relaciona com Tomismo, porque não referir as suas belas teses sobre Pedro Hispano?
E anote-se que a «Teoria do Conhecimento» de Diamantino Martins, não aparece ao lado de outros livros do mesmo pensador, decerto por lapso.
Mais um ou outro ponto mereceria comentário. Mas, tal como os apontados, são meros pormenores. E em meros pormenores não é de insistir.
Estamos, seja como for, perante um livro digno de todo o respeito e apreço, muito acima das vulgaridades marxista e marxizantes que hoje desabam sobre a nossa terra (e de que as actas de participação de compatriotas nossos — chamemos-lhes — no Congresso Hegel, de Lisboa, são, salvo excepções, deplorável testemunho).
Pinharanda Gomes, fiel a si próprio, não alinha no rebanho dos tristes devotos de S. Marx cá do rectângulo.
Ainda bem! E honra lhe seja por isso.
António José de Brito
Nota:
1 - Cfr. Luís Cabral de Moncada, «Para a História da Filosofia em Portugal no Século XX - Apontamento», Coimbra, 1960, pp.9-10.
(In «A Rua», n.º 135, pág. 18, 11.01.1979)
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SOCIEDADE CIVIL E PODER POLÍTICO
Há quem sustente, por vezes, que a lei deriva da sociedade civil, que o Estado não é senão uma emanação desta última, e outros pontos de vista análogos.
A ser isso exacto, teríamos de admitir que a sociedade civil poderia existir sem lei e Estado, uma vez que a causa é anterior ao efeito. Mas sem lei e Estado não há sociedade civil, há horda in-civil.
De resto, se a lei e o Estado provêm da sociedade civil como explicar que dela comecem de repente a dimanar as leis ditas opressivas e as construções do Estado ditas macrocefálicas que se traduzem na alienação e na destruição (ou quase destruição) da fonte que as originou? Estamos perante uma dificuldade semelhante à que se nos depara na conhecida tese de Rousseau, segundo a qual o homem solitário, intrinsecamente bom, seria corrompido pela sociedade que criou. Pois de que maneira o homem solitário e bom poderá criar um ente colectivo perverso e perversor?
Pelos vistos, a sociedade civil precisa de tutela para não se desviar torpemente na sua conduta, isto é, necessita de um poder e de uma normatividade que a protejam contra si mesma e que, nessa altura, não se concebe que derivem dela. Dir-nos-ão que não é a sociedade civil que gera leis macrocefálicas, mas sim uma e outra (ou outras) realidade (ou realidades) (Qual ou quais)?
Muito bem! Simplesmente, deixa, então de ser verdade que a lei deriva da sociedade civil e que o Estado é uma emanação desta derradeira. Claro que, acaso, nos objectarão que, quando se diz que a lei deriva e o Estado emana da sociedade civil, o que se pretende dizer é que a lei deve derivar, deve ser feita pela sociedade civil, que o Estado deve ser uma emanação desta.
O que foi enunciado sob a forma de uma asserção ontológica, afinal, teria exclusivamente um intuito deontológico, axiológico. Eis, porém, que, em tal circunstância, passa a oferecer perfeita razão de ser a interrogação: porque é que as coisas se devem passar assim? Se não há sociedade civil sem lei e sem governo, que motivo justifica que a lei e o governo devam provir da sociedade civil? O dever ser invocado não patenteia qualquer espécie de sentido. Ele pretende que o constituinte deriva daquilo que constitui, o que equivale a pretender que o automóvel é que deva inventar o engenheiro, as nuvens devam derivar do relâmpago and so on.
O pressuposto daquele dever-ser é um optimismo societário digno de Pangloss. Composta a sociedade civil de indivíduos, ou grupos, pretende-se que nela estão todas as virtudes e harmonias que, depois, haveria que transportar para a lei e o governo. Só que esse panglossismo social não possui consistência alguma. Indivíduos e grupos (e não menos os grupos que os indivíduos), para se não dilacerarem entre si, não se aniquilarem mutuamente, têm de estar submetidos a uma disciplina, a uma ordem. E tal ordem e tal disciplina não podem dimanar daqueles a quem são dirigidos, pois, nessa conjuntura, iriam ser expressão de lutas e defeitos a que se procuram sobrepor, para os corrigir.
Aliás, se a sociedade civil é que possui todas as virtudes e harmonias, para quê a lei e o Estado que, em tantos momentos, trazem complicações, degenerescências, opressões?
Se há um ordenamento social espontâneo, natural, imutável, o melhor é deixá-lo desenvolver-se por si e, no lugar de endossar-lhe super-estruturas estaduais, tentar afastá-las, visto que inúteis sempre e perturbadoras algumas ocasiões. E viva a anarquia! Em contrapartida, se não há um ordenamento social espontâneo, imutável, natural, e unicamente graças à existência de um Poder Central se conservam mais ou menos em equilíbrio as diversas e divergentes correntes e tendências e se neutralizarão as desorientações centrífugas, é absurdo que o Poder Central, feito para controlar e dominar as forças divergentes, diversas e centrífugas, seja confiado às mesmas.
Numa palavra o dilema põe-se: ou há sociedade civil sem governo, e não são precisos governos para nada; ou não há sociedade civil sem governo, e o governo não pode ser produto, emanação, representante, da sociedade civil, porque a sociedade civil é que resulta, entre outros factores, do factor governo.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 164, pág. 7, 02.08.1979)
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A ser isso exacto, teríamos de admitir que a sociedade civil poderia existir sem lei e Estado, uma vez que a causa é anterior ao efeito. Mas sem lei e Estado não há sociedade civil, há horda in-civil.
De resto, se a lei e o Estado provêm da sociedade civil como explicar que dela comecem de repente a dimanar as leis ditas opressivas e as construções do Estado ditas macrocefálicas que se traduzem na alienação e na destruição (ou quase destruição) da fonte que as originou? Estamos perante uma dificuldade semelhante à que se nos depara na conhecida tese de Rousseau, segundo a qual o homem solitário, intrinsecamente bom, seria corrompido pela sociedade que criou. Pois de que maneira o homem solitário e bom poderá criar um ente colectivo perverso e perversor?
Pelos vistos, a sociedade civil precisa de tutela para não se desviar torpemente na sua conduta, isto é, necessita de um poder e de uma normatividade que a protejam contra si mesma e que, nessa altura, não se concebe que derivem dela. Dir-nos-ão que não é a sociedade civil que gera leis macrocefálicas, mas sim uma e outra (ou outras) realidade (ou realidades) (Qual ou quais)?
Muito bem! Simplesmente, deixa, então de ser verdade que a lei deriva da sociedade civil e que o Estado é uma emanação desta derradeira. Claro que, acaso, nos objectarão que, quando se diz que a lei deriva e o Estado emana da sociedade civil, o que se pretende dizer é que a lei deve derivar, deve ser feita pela sociedade civil, que o Estado deve ser uma emanação desta.
O que foi enunciado sob a forma de uma asserção ontológica, afinal, teria exclusivamente um intuito deontológico, axiológico. Eis, porém, que, em tal circunstância, passa a oferecer perfeita razão de ser a interrogação: porque é que as coisas se devem passar assim? Se não há sociedade civil sem lei e sem governo, que motivo justifica que a lei e o governo devam provir da sociedade civil? O dever ser invocado não patenteia qualquer espécie de sentido. Ele pretende que o constituinte deriva daquilo que constitui, o que equivale a pretender que o automóvel é que deva inventar o engenheiro, as nuvens devam derivar do relâmpago and so on.
O pressuposto daquele dever-ser é um optimismo societário digno de Pangloss. Composta a sociedade civil de indivíduos, ou grupos, pretende-se que nela estão todas as virtudes e harmonias que, depois, haveria que transportar para a lei e o governo. Só que esse panglossismo social não possui consistência alguma. Indivíduos e grupos (e não menos os grupos que os indivíduos), para se não dilacerarem entre si, não se aniquilarem mutuamente, têm de estar submetidos a uma disciplina, a uma ordem. E tal ordem e tal disciplina não podem dimanar daqueles a quem são dirigidos, pois, nessa conjuntura, iriam ser expressão de lutas e defeitos a que se procuram sobrepor, para os corrigir.
Aliás, se a sociedade civil é que possui todas as virtudes e harmonias, para quê a lei e o Estado que, em tantos momentos, trazem complicações, degenerescências, opressões?
Se há um ordenamento social espontâneo, natural, imutável, o melhor é deixá-lo desenvolver-se por si e, no lugar de endossar-lhe super-estruturas estaduais, tentar afastá-las, visto que inúteis sempre e perturbadoras algumas ocasiões. E viva a anarquia! Em contrapartida, se não há um ordenamento social espontâneo, imutável, natural, e unicamente graças à existência de um Poder Central se conservam mais ou menos em equilíbrio as diversas e divergentes correntes e tendências e se neutralizarão as desorientações centrífugas, é absurdo que o Poder Central, feito para controlar e dominar as forças divergentes, diversas e centrífugas, seja confiado às mesmas.
Numa palavra o dilema põe-se: ou há sociedade civil sem governo, e não são precisos governos para nada; ou não há sociedade civil sem governo, e o governo não pode ser produto, emanação, representante, da sociedade civil, porque a sociedade civil é que resulta, entre outros factores, do factor governo.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 164, pág. 7, 02.08.1979)
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sábado, junho 25, 2005
A NOSSA POSIÇÃO
Noutras páginas deste jornal acharão os eleitores a análise pontual (fazendo-se alguma pouca história...) da conjuntura política. É necessário, todavia, agora que se pretende termos entrado na normalidade constitucional, esclarecer melhor as nossas posições de fundo. Ante um Governo que se diz definitivo só porque os seus antecessores eram constitucionalmente provisórios, parece azado fazer um certo ponto, recolocando-nos melhor no novo terreno político.
Desde o seu primeiro número que "A RUA" com suficiente clareza se considerou um jornal da Direita; ninguém estranhou, por isso mesmo, que, desde o nosso primeiro número, nos tivéssemos achado sempre em situação de críticos frontais do Governo que, sendo de Esquerda, assim se nos opunha.
Acontece, porém, que, durante estes quatro apaixonantes meses de trabalho, que tantos são os da precária vida de "A RUA", nós nunca tivemos ocasião de enfrentar o Governo por ser de Esquerda; quase humilhantemente, tivemos de nos limitar a censurá-lo por se mostrar incapaz, mesmo à luz dos próprios princípios, de resolver qualquer dos mais pequenos problemas nacionais. As grandes questões doutrinárias tivemos de as esquecer — tão estúpida e néscia se mostrou persistentemente a prática governativa esquerdista ao longo do tempo que nos publicámos. A bondade dos nossos princípios surdiu espontaneamente da incapacidade prática dos adversários, uns de governarem o País, os outros de se achegarem à governação, por via eleitoralista, mesmo com o nosso apoio explícito ou implícito.
Chegámos agora à situação de continuarmos a ser governados por quem nos levou à falência, e de não encontrarmos na Assembleia da República nenhum grupo que, programaticamente, possa ser considerado como alternativa válida para o caos existente. Os que, de certa maneira facilmente provável e a provar no devido tempo, procuraram o nosso apoio, tratam-nos agora como inimigos, atraídos que estão pela hipótese de se instalarem no poder, não por via das eleições em que participaram, mas da vitória provável em eleições estrangeiras de partidos com os quais, para terem apoio internacional e episcopal, reivindicam algumas afinidades.
Apesar da maior parte das personalidades que constituem o novo Governo terem já dado provas da sua real incapacidade político-administrativa, nós estamos dispostos a conceder a este elenco ministerial o maior crédito possível. Precisamos angustiosamente de um Governo que governe e, face à promessa formal do Primeiro-Ministro de suster a epilepsia revolucionária que nos tem vitimado, e de não avançar muito mais nos atentados ao que é essencial ao nosso conceito de sociedade política, vamos tentar, criticando embora, ser verdadeiramente complacentes, escusando-nos a participar no jogo geral das oposições parlamentares que esperam da ruína do País a ruína eleitoral do Partido Socialista e, portanto, a sua gloriosa futura vitória eleitoral, nas inevitáveis eleições que a queda de sucessivos Governos inevitavelmente provocará.
Temos sobre os partidos a vantagem de não sermos partido e, por agora ao menos, não pretendermos vir a sê-lo. Estamos pragmaticamente com todos os que pretendem apenas a reconstituição do País, para além dos postulados ideológicos que norteiam cada um. Negamo-nos peremptoriamente a deixarmo-nos partidarizar para clarificar o horizonte político, ou satisfazer os complexos da esquerda dos habilidosos que, apesar de pessoalmente vencidos, insistem nos erros tácticos e estratégicos que os conduziram a claras posições de mediocridade política, apesar dos nossos esforços.
A Direita pretende a revolução profunda da vida social e política dos portugueses que nem a Revolução do 28 de Maio, nem a do 25 de Abril, conseguiram fazer. Avaliado o contexto geopolítico em que nos inserimos, e bem valoradas as suas consequências geoestratégicas na gestão de Portugal, considera no entanto absolutamente indispensável que a sua revolução se faça no quadro do mais estrito respeito pela Constituição.
A Constituição não é irreformável; a auto-reforma é parte explícita do espírito jurídico que a enformou; deve, por isso mesmo, ser criticada para que, em plena legitimidade, se corporize o espírito que lhe é inerente e é motor primeiro do seu virtual dinamismo.
Constitucionalmente é preferível apressar a reforma da Constituição. É obrigação fundamental da Direita que discorda do texto constitucional, apressar a sua modificação. Não pode a Direita, todavia, fomentar a aceleração do processo reformista, acelerando simultaneamente o processo da ruína sócio-económica do País. Assim — até ao limite do possível — está disposta a creditar larga margem de acção ao Governo minoritário socialista, e discorda frontalmente de todas as acções parlamentares da oposição que, já agora, antes mesmo de o Governo começar a governar, visam à queda rápida de Mário Soares.
Embora a lógica constitucional torne teoricamente inviável um Governo minoritário, pode este Governo no entanto governar alguma coisa com o apoio do Presidente da República — e da opinião pública que forçará os partidos oposicionistas a concederem-lhe o crédito minimamente necessário à sua sustentação. Não pode, porém, fazer uma gestão partidária. A posição da Direita que, concretamente, é a de largos sectores do eleitorado dispersos por diversos partidos, é a do apoio reservado em função do interesse nacional. Já votámos P.S. a seu tempo. Não nos custa nada voltar a votar. Um Governo pragmático do P.S. interessa-nos tanto como um Governo pragmático do P.P.D. ou do C.D.S. Tem é que se cumprir a promessa do Primeiro-Ministro quando diz que o Governo é formado por socialistas que não querem nem podem agir numa óptica estritamente partidária, mas sim nacional; tem é que se governar em termos de absoluto rigor técnico, de forma a travar-se a desagregação moral e material do País.
Sabem os nosso leitores a pouca confiança que temos nas palavras e na capacidade do dr. Mário Soares. Sabem ainda que não depositamos grandes esperanças na viabilidade do actual Governo. Achamo-nos, porém, neste momento particularmente grave da nossa história, na obrigação de o aceitar e até de o não hostilizar. Não precisaremos de muito tempo para ver até onde pode ir a nossa complacência; — em poucas semanas pode o Governo P.S. mostrar se merece ou não a confiança dos portugueses, não confundindo pragamatismo com socialismo, intentando tomar a parte pelo todo, confundindo o seu partido com a Nação.
As próximas eleições para as autarquias locais consideramo-las nós, plebiscitariamente, como um voto nacional na gestão governativa do P.S. e na acção parlamentar dos partidos oposicionistas. A Direita, outra vez nas urnas sem organização partidária, e não tendo ainda feito a sua escolha, votará em quem, até ao fim das eleições, melhor tenha sabido cumprir politicamente o seu dever nacional. Pode ser que se abstenha como, espectacularmente, se absteve nas presidenciais.
Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 17, pág. 3, 29.07.1976)
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Desde o seu primeiro número que "A RUA" com suficiente clareza se considerou um jornal da Direita; ninguém estranhou, por isso mesmo, que, desde o nosso primeiro número, nos tivéssemos achado sempre em situação de críticos frontais do Governo que, sendo de Esquerda, assim se nos opunha.
Acontece, porém, que, durante estes quatro apaixonantes meses de trabalho, que tantos são os da precária vida de "A RUA", nós nunca tivemos ocasião de enfrentar o Governo por ser de Esquerda; quase humilhantemente, tivemos de nos limitar a censurá-lo por se mostrar incapaz, mesmo à luz dos próprios princípios, de resolver qualquer dos mais pequenos problemas nacionais. As grandes questões doutrinárias tivemos de as esquecer — tão estúpida e néscia se mostrou persistentemente a prática governativa esquerdista ao longo do tempo que nos publicámos. A bondade dos nossos princípios surdiu espontaneamente da incapacidade prática dos adversários, uns de governarem o País, os outros de se achegarem à governação, por via eleitoralista, mesmo com o nosso apoio explícito ou implícito.
Chegámos agora à situação de continuarmos a ser governados por quem nos levou à falência, e de não encontrarmos na Assembleia da República nenhum grupo que, programaticamente, possa ser considerado como alternativa válida para o caos existente. Os que, de certa maneira facilmente provável e a provar no devido tempo, procuraram o nosso apoio, tratam-nos agora como inimigos, atraídos que estão pela hipótese de se instalarem no poder, não por via das eleições em que participaram, mas da vitória provável em eleições estrangeiras de partidos com os quais, para terem apoio internacional e episcopal, reivindicam algumas afinidades.
Apesar da maior parte das personalidades que constituem o novo Governo terem já dado provas da sua real incapacidade político-administrativa, nós estamos dispostos a conceder a este elenco ministerial o maior crédito possível. Precisamos angustiosamente de um Governo que governe e, face à promessa formal do Primeiro-Ministro de suster a epilepsia revolucionária que nos tem vitimado, e de não avançar muito mais nos atentados ao que é essencial ao nosso conceito de sociedade política, vamos tentar, criticando embora, ser verdadeiramente complacentes, escusando-nos a participar no jogo geral das oposições parlamentares que esperam da ruína do País a ruína eleitoral do Partido Socialista e, portanto, a sua gloriosa futura vitória eleitoral, nas inevitáveis eleições que a queda de sucessivos Governos inevitavelmente provocará.
Temos sobre os partidos a vantagem de não sermos partido e, por agora ao menos, não pretendermos vir a sê-lo. Estamos pragmaticamente com todos os que pretendem apenas a reconstituição do País, para além dos postulados ideológicos que norteiam cada um. Negamo-nos peremptoriamente a deixarmo-nos partidarizar para clarificar o horizonte político, ou satisfazer os complexos da esquerda dos habilidosos que, apesar de pessoalmente vencidos, insistem nos erros tácticos e estratégicos que os conduziram a claras posições de mediocridade política, apesar dos nossos esforços.
A Direita pretende a revolução profunda da vida social e política dos portugueses que nem a Revolução do 28 de Maio, nem a do 25 de Abril, conseguiram fazer. Avaliado o contexto geopolítico em que nos inserimos, e bem valoradas as suas consequências geoestratégicas na gestão de Portugal, considera no entanto absolutamente indispensável que a sua revolução se faça no quadro do mais estrito respeito pela Constituição.
A Constituição não é irreformável; a auto-reforma é parte explícita do espírito jurídico que a enformou; deve, por isso mesmo, ser criticada para que, em plena legitimidade, se corporize o espírito que lhe é inerente e é motor primeiro do seu virtual dinamismo.
Constitucionalmente é preferível apressar a reforma da Constituição. É obrigação fundamental da Direita que discorda do texto constitucional, apressar a sua modificação. Não pode a Direita, todavia, fomentar a aceleração do processo reformista, acelerando simultaneamente o processo da ruína sócio-económica do País. Assim — até ao limite do possível — está disposta a creditar larga margem de acção ao Governo minoritário socialista, e discorda frontalmente de todas as acções parlamentares da oposição que, já agora, antes mesmo de o Governo começar a governar, visam à queda rápida de Mário Soares.
Embora a lógica constitucional torne teoricamente inviável um Governo minoritário, pode este Governo no entanto governar alguma coisa com o apoio do Presidente da República — e da opinião pública que forçará os partidos oposicionistas a concederem-lhe o crédito minimamente necessário à sua sustentação. Não pode, porém, fazer uma gestão partidária. A posição da Direita que, concretamente, é a de largos sectores do eleitorado dispersos por diversos partidos, é a do apoio reservado em função do interesse nacional. Já votámos P.S. a seu tempo. Não nos custa nada voltar a votar. Um Governo pragmático do P.S. interessa-nos tanto como um Governo pragmático do P.P.D. ou do C.D.S. Tem é que se cumprir a promessa do Primeiro-Ministro quando diz que o Governo é formado por socialistas que não querem nem podem agir numa óptica estritamente partidária, mas sim nacional; tem é que se governar em termos de absoluto rigor técnico, de forma a travar-se a desagregação moral e material do País.
Sabem os nosso leitores a pouca confiança que temos nas palavras e na capacidade do dr. Mário Soares. Sabem ainda que não depositamos grandes esperanças na viabilidade do actual Governo. Achamo-nos, porém, neste momento particularmente grave da nossa história, na obrigação de o aceitar e até de o não hostilizar. Não precisaremos de muito tempo para ver até onde pode ir a nossa complacência; — em poucas semanas pode o Governo P.S. mostrar se merece ou não a confiança dos portugueses, não confundindo pragamatismo com socialismo, intentando tomar a parte pelo todo, confundindo o seu partido com a Nação.
As próximas eleições para as autarquias locais consideramo-las nós, plebiscitariamente, como um voto nacional na gestão governativa do P.S. e na acção parlamentar dos partidos oposicionistas. A Direita, outra vez nas urnas sem organização partidária, e não tendo ainda feito a sua escolha, votará em quem, até ao fim das eleições, melhor tenha sabido cumprir politicamente o seu dever nacional. Pode ser que se abstenha como, espectacularmente, se absteve nas presidenciais.
Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 17, pág. 3, 29.07.1976)
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NÃO DESISTIREMOS
Chegámos outra vez à situação limite: todos os prognósticos apontam para o caos económico e político que Mário Soares, num fugaz momento de lucidez crítica, futurou na sua alocução do dia 10 de Setembro.
Pudemos sobreviver até agora — disse então o homenzarrinho — à custa da delapidação das nossas reservas e à custa do não investimento, o que representa uma pesada hipoteca para o futuro. Assim, até aqui foi fácil governar. Com rematada imprevidência, satisfazendo reivindicações irrealistas, subsidiando empresas inviáveis, malbaratando os poucos recursos e atirando para cima do Estado, através de uma política inconsiderada de avales, a resolução das dificuldades mais instantes. Esvaíram-se assim 80% das nossas reservas. E aumentando-se por forma alarmante a nossa dívida externa, que hoje atinge já a soma de 95,4 milhões de contos. Sucede que a nossa balança cambial acusa um défice diário da ordem dos 130 a 140 mil contos. A continuar, pois, essa tendência, ao ritmo a que temos ido nestes dois últimos anos, o Estado entrará em forçosamente em colapso.
Perante este tétrico panorama o país inteiro (incluindo nós) julgou que o governo minoritário tomaria (já) medidas decisivas e draconianas. Continuaram-se, todavia, a satisfazer reivindicações irrealistas, e a subsidiar empresas inviáveis através duma política inconsiderada de avales. Até ao fim de Fevereiro estarão esgotadas (completamente) as nossas reservas — os restos da pesada herança. A nossa dívida externa deve atingir a soma astronómica dos 110 milhões de contos. Em menos de quatro meses ficámos a dever mais cerca de 17 milhões. Desmultiplicando-se a pedir tostões à Europa e à América, o governo minoritário entrou pelo caminho de tentar solucionar o problema aceitando imposições onerosas e vexatórias da nossa soberania — o Fundo Monetário Internacional a fiscalizar a maneira como o nosso governo emprega os capitais que lhe são emprestados.
A situação é de tal maneira catastrófica, e a posição do governo de tal maneira duvidosa, que o Subsecretário de Estado norte-americano vindo a Lisboa para negociar novos empréstimos parece ter mandado fazer consultas à Procuradoria-Geral da República para saber se as assinaturas do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças, apostas nas declarações de dívidas, chegavam para comprometer o Estado português...
O governo, face à gravidade da situação, manda o responsável pela pasta das Finanças gritar desesperos vários para a televisão. Em ritmo acelerado sobem os preços dos géneros de primeira necessidade (subiram os transportes, subiu o azeite, e subiu a água) — outros há que se não encontram em parte alguma. No estrangeiro, um escudo não é cambiável. A plutocracia internacional apresta-se para se instalar com armas e bagagens. Com a finalidade de distrair a opinião pública, o governo e os seus mastins da comunicação social (o P.C. e o P.S., já agora conluiados abertamente) usam a mais baixa e sórdida demagogia. Os «pides» e a imprensa reaccionária servem de bombos da festa; um livro negro do fascismo é anunciado como se viesse resolver a crise económica.
Para medir bem a baixeza dos processos políticos do governo minoritário, é necessário atentar bem no que se passa: por um lado (evidentemente, não somos nós que o afirmamos; são as personalidades mais responsáveis da política e da economia) estamos à beira de perder o que nos resta da soberania económica e a caminho de perdermos a soberania política; por outro, o governo que desgoverna Portugal, atropelando a própria Constituição, e a sua adesão à Carta dos Direitos do Homem e ao Conselho da Europa, aprova leis penais com efeitos retroactivos, e ameaça a imprensa livre com medidas legislativas do pior tipo censório.
Para resolver os mais graves problemas nacionais, tem, portanto, o governo minoritário como programa, antes do mais, remeter à cadeia mais dum milhar de presos políticos; depois calar a imprensa oposicionista — por fim, editar um livro... Regressamos, claramente agora, aos tempos trágicos do gonçalvismo.
Tentar pôr um travão na demagogia desenfreada dos sindicatos, aumentando a produtividade e garantindo os capitais públicos e privados; evitar a rotura cambial; impedir a bancarrota — isso não é com o governo minoritário. O que é preciso, para disfarçar o desastre, é açular as bruxas, e reavivar ódios contra os homens que (ao contrário do que prometeu o Presidente da República) não vão ser julgados pelos seus crimes, mas por pertencerem a uma corporação policial, e que, em termos de legislação vigente, cumpriram ordens, defenderam Portugal no Ultramar, foram condecorados e, se praticaram excessos, prestaram também grandes serviços. O que é necessário é calar as vozes dos que, tendo sofrido o exílio e a prisão, tendo sofrido vexames e insultos, mesmo assim não se dobraram à prepotência paranóica da irresponsabilidade comunista e socialista que dominou Portugal durante mais de um ano.
Procura-se, para chegar a tanto, fazer pressão sobre a Justiça — e à porta dos tribunais a gandulagem mais vil faz o escarcéu do costume, apoiada pelo órgão oficioso do governo, aplaudida por todos os partidos situacionistas, por todos quantos, durante a tirania dos gonçalves, cometeram os crimes mais horríveis.
Um triste poeta alegre, no meio de tudo isto, resolve dirigir-se directamente à "A RUA" e acusar-nos de várias e nefandas perfídias. Chamou-nos ultra-direitistas (o que, mesmo sendo verdade, seria perfeitamente democrático) e considerou intolerável que pudéssemos fazer a apologia do regime deposto. Cabe-nos por agora dar uma pequena lição ao poetastro ministro. Já depenámos galos de maior crista.
Começamos por informar o desgraçado de que nos ralamos pouco com a alcunha de ultra-direitistas. Antes isso do que desertor, ou espião ao serviço do M.P.L.A. traindo camaradas de armas, ou ladrão, ou assaltante de bancos. Antes isso (até!) que socialista. Foram os desertores, os espiões, os ladrões e os socialistas que arruinaram Portugal; não foram os ultra-direitistas.
Logo após, convém informar o tristíssimo de que não é crime elogiar o regime deposto e de que, muito embora nunca o tivéssemos feito nos termos em que o alegre o insinua, mesmo assim, temos de convir que com o mal passado podemos nós; com o presente é que não. O que se trata agora é de avaliar a obra do governo minoritário e não a dos governos de Salazar ou de Marcello Caetano. Quem se mostra incapaz de nos governar é o Mário Soares; quem nos conduz à bancarrota são os socialistas; quem, contra todo o Direito, aprova leis com efeitos retroactivos é o governo minoritário; quem nos governa é o poeta alegre e seus companheiros de funçanata ministerial. Salazar morreu — e o povo venera-o. Caetano fugiu para o Brasil — e ainda bem. Interessa-nos o presente; o passado julgá-lo-á a História. E o presente é um rol dramático de necedades, trampolinices, e estupidezes; é o período mais negro e mais vergonhoso de toda a nossa história.
Intolerável — é isto. Intolerável é que os portugueses sejam obrigados a suportar o regime de mediocracia que nos rege. Intolerável é que o alegre possa ser ministro. Contra isso nos revoltamos todos cada vez mais. Contra isso, de Norte a Sul, sopra o vento da revolta, da indignação e da cólera.
Pode o governo minoritário, com a ajuda dos comunistas e dos outros comparsas, fazer aprovar na Assembleia da República as leis que quiser, para nos calar. Pode o governo minoritário, como já fez o sr. Zenha no dia 28 de Setembro, voltar a prender-nos e a vexar-nos. Duma coisa, porém, pode o desgraçado alegre estar certo: só nos verá calados, mortos. A nós têm que nos matar.
Chegámos aqui com o único propósito de defender Portugal e o seu povo. Orgulhamo-nos de ter conseguido reunir à nossa volta o núcleo mais forte e mais duro da resistência às alegrias do socialismo. A ficarmos pelo caminho, ficaremos sem vida. Se isto contentar o poeta — que lhe preste. A nós enche-nos de coragem. Não desistiremos.
Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 41, pág. 3, 13.01.1977)
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Pudemos sobreviver até agora — disse então o homenzarrinho — à custa da delapidação das nossas reservas e à custa do não investimento, o que representa uma pesada hipoteca para o futuro. Assim, até aqui foi fácil governar. Com rematada imprevidência, satisfazendo reivindicações irrealistas, subsidiando empresas inviáveis, malbaratando os poucos recursos e atirando para cima do Estado, através de uma política inconsiderada de avales, a resolução das dificuldades mais instantes. Esvaíram-se assim 80% das nossas reservas. E aumentando-se por forma alarmante a nossa dívida externa, que hoje atinge já a soma de 95,4 milhões de contos. Sucede que a nossa balança cambial acusa um défice diário da ordem dos 130 a 140 mil contos. A continuar, pois, essa tendência, ao ritmo a que temos ido nestes dois últimos anos, o Estado entrará em forçosamente em colapso.
Perante este tétrico panorama o país inteiro (incluindo nós) julgou que o governo minoritário tomaria (já) medidas decisivas e draconianas. Continuaram-se, todavia, a satisfazer reivindicações irrealistas, e a subsidiar empresas inviáveis através duma política inconsiderada de avales. Até ao fim de Fevereiro estarão esgotadas (completamente) as nossas reservas — os restos da pesada herança. A nossa dívida externa deve atingir a soma astronómica dos 110 milhões de contos. Em menos de quatro meses ficámos a dever mais cerca de 17 milhões. Desmultiplicando-se a pedir tostões à Europa e à América, o governo minoritário entrou pelo caminho de tentar solucionar o problema aceitando imposições onerosas e vexatórias da nossa soberania — o Fundo Monetário Internacional a fiscalizar a maneira como o nosso governo emprega os capitais que lhe são emprestados.
A situação é de tal maneira catastrófica, e a posição do governo de tal maneira duvidosa, que o Subsecretário de Estado norte-americano vindo a Lisboa para negociar novos empréstimos parece ter mandado fazer consultas à Procuradoria-Geral da República para saber se as assinaturas do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças, apostas nas declarações de dívidas, chegavam para comprometer o Estado português...
O governo, face à gravidade da situação, manda o responsável pela pasta das Finanças gritar desesperos vários para a televisão. Em ritmo acelerado sobem os preços dos géneros de primeira necessidade (subiram os transportes, subiu o azeite, e subiu a água) — outros há que se não encontram em parte alguma. No estrangeiro, um escudo não é cambiável. A plutocracia internacional apresta-se para se instalar com armas e bagagens. Com a finalidade de distrair a opinião pública, o governo e os seus mastins da comunicação social (o P.C. e o P.S., já agora conluiados abertamente) usam a mais baixa e sórdida demagogia. Os «pides» e a imprensa reaccionária servem de bombos da festa; um livro negro do fascismo é anunciado como se viesse resolver a crise económica.
Para medir bem a baixeza dos processos políticos do governo minoritário, é necessário atentar bem no que se passa: por um lado (evidentemente, não somos nós que o afirmamos; são as personalidades mais responsáveis da política e da economia) estamos à beira de perder o que nos resta da soberania económica e a caminho de perdermos a soberania política; por outro, o governo que desgoverna Portugal, atropelando a própria Constituição, e a sua adesão à Carta dos Direitos do Homem e ao Conselho da Europa, aprova leis penais com efeitos retroactivos, e ameaça a imprensa livre com medidas legislativas do pior tipo censório.
Para resolver os mais graves problemas nacionais, tem, portanto, o governo minoritário como programa, antes do mais, remeter à cadeia mais dum milhar de presos políticos; depois calar a imprensa oposicionista — por fim, editar um livro... Regressamos, claramente agora, aos tempos trágicos do gonçalvismo.
Tentar pôr um travão na demagogia desenfreada dos sindicatos, aumentando a produtividade e garantindo os capitais públicos e privados; evitar a rotura cambial; impedir a bancarrota — isso não é com o governo minoritário. O que é preciso, para disfarçar o desastre, é açular as bruxas, e reavivar ódios contra os homens que (ao contrário do que prometeu o Presidente da República) não vão ser julgados pelos seus crimes, mas por pertencerem a uma corporação policial, e que, em termos de legislação vigente, cumpriram ordens, defenderam Portugal no Ultramar, foram condecorados e, se praticaram excessos, prestaram também grandes serviços. O que é necessário é calar as vozes dos que, tendo sofrido o exílio e a prisão, tendo sofrido vexames e insultos, mesmo assim não se dobraram à prepotência paranóica da irresponsabilidade comunista e socialista que dominou Portugal durante mais de um ano.
Procura-se, para chegar a tanto, fazer pressão sobre a Justiça — e à porta dos tribunais a gandulagem mais vil faz o escarcéu do costume, apoiada pelo órgão oficioso do governo, aplaudida por todos os partidos situacionistas, por todos quantos, durante a tirania dos gonçalves, cometeram os crimes mais horríveis.
Um triste poeta alegre, no meio de tudo isto, resolve dirigir-se directamente à "A RUA" e acusar-nos de várias e nefandas perfídias. Chamou-nos ultra-direitistas (o que, mesmo sendo verdade, seria perfeitamente democrático) e considerou intolerável que pudéssemos fazer a apologia do regime deposto. Cabe-nos por agora dar uma pequena lição ao poetastro ministro. Já depenámos galos de maior crista.
Começamos por informar o desgraçado de que nos ralamos pouco com a alcunha de ultra-direitistas. Antes isso do que desertor, ou espião ao serviço do M.P.L.A. traindo camaradas de armas, ou ladrão, ou assaltante de bancos. Antes isso (até!) que socialista. Foram os desertores, os espiões, os ladrões e os socialistas que arruinaram Portugal; não foram os ultra-direitistas.
Logo após, convém informar o tristíssimo de que não é crime elogiar o regime deposto e de que, muito embora nunca o tivéssemos feito nos termos em que o alegre o insinua, mesmo assim, temos de convir que com o mal passado podemos nós; com o presente é que não. O que se trata agora é de avaliar a obra do governo minoritário e não a dos governos de Salazar ou de Marcello Caetano. Quem se mostra incapaz de nos governar é o Mário Soares; quem nos conduz à bancarrota são os socialistas; quem, contra todo o Direito, aprova leis com efeitos retroactivos é o governo minoritário; quem nos governa é o poeta alegre e seus companheiros de funçanata ministerial. Salazar morreu — e o povo venera-o. Caetano fugiu para o Brasil — e ainda bem. Interessa-nos o presente; o passado julgá-lo-á a História. E o presente é um rol dramático de necedades, trampolinices, e estupidezes; é o período mais negro e mais vergonhoso de toda a nossa história.
Intolerável — é isto. Intolerável é que os portugueses sejam obrigados a suportar o regime de mediocracia que nos rege. Intolerável é que o alegre possa ser ministro. Contra isso nos revoltamos todos cada vez mais. Contra isso, de Norte a Sul, sopra o vento da revolta, da indignação e da cólera.
Pode o governo minoritário, com a ajuda dos comunistas e dos outros comparsas, fazer aprovar na Assembleia da República as leis que quiser, para nos calar. Pode o governo minoritário, como já fez o sr. Zenha no dia 28 de Setembro, voltar a prender-nos e a vexar-nos. Duma coisa, porém, pode o desgraçado alegre estar certo: só nos verá calados, mortos. A nós têm que nos matar.
Chegámos aqui com o único propósito de defender Portugal e o seu povo. Orgulhamo-nos de ter conseguido reunir à nossa volta o núcleo mais forte e mais duro da resistência às alegrias do socialismo. A ficarmos pelo caminho, ficaremos sem vida. Se isto contentar o poeta — que lhe preste. A nós enche-nos de coragem. Não desistiremos.
Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 41, pág. 3, 13.01.1977)
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sexta-feira, junho 24, 2005
UNIDADE E DIVERSIDADE
Afastando do espírito os abraços sacrílegos entre o ditador de Angola, que preferiu à qualidade de português a de súbdito russo-cubano, e um chefe de Estado que, por ter obtido uma maioria de papelinhos numa urna, julga representar a Pátria (como se a Pátria se pudesse reduzir a uma soma de votos em vasos eleitorais); não dedicando sequer um instante de reflexão séria à ridícula crise entre o P.S. e os seus lacaios do C.D.S., procuremos meditar em torno de temas que não nos façam ou corar de vergonha ou sorrir de comiseração.
Num volume, aliás, cheio de interesse — Vu de Droite — Alain de Benoist procura definir o pensamento de Direita pelo repúdio do igualitarismo nivelador e pela apologia da diversidade.
Longe de nós a pretensão de caracterizar, aqui, exaustivamente, o pensamento da Direita. O que, todavia, cremos poder levar a cabo, é talvez afastar as caracterizações que se revelam insuficientes e inadequadas. E supomos que as notas que Alain de Benoist traz à colação são precisamente inaplicáveis às doutrinas imemorialmente consideradas de Direita.
Estas repelem, sem dúvida, o igualitarismo. Mas há mil maneiras de o fazer e o que interessa, de um ponto de vista analítico, é apontar de que forma e porquê é o igualitarismo repelido. Ora, pela nossa parte, não pensamos que a Direita o repudie por um amor desmedido e entusiasta da diversidade. O culto da diversidade significa o incremento de todos os antagonismos e incompatibilidades. A sua tendência limite está na anarquia, na guerra de todos contra todos de que tanto falava e preocupava Hobbes.
A diversidade, tomada como valor, aplica-se aos povos e aos indivíduos. Estes serão tanto mais diversos quanto mais se opuserem entre si. Oposição, porém, é sinónimo de mútua incompatibilidade, e mútua incompatibilidade de exclusão recíproca. Logo, o culto da diversidade só poderá encontrar satisfação na eliminação do diverso, pois que é isso que a exclusão recíproca de opostos exige.
Simplesmente com a eliminação do diverso ou, pelo menos, a redução a nada das diferenças mais acentuadas, está-se a destruir o culto da diversidade. Se este implica ou conduz, logicamente, àquela eliminação, nega-se a si próprio, é algo de inconcebível.
É incontestável que Alain de Benoist fala em estabelecer uma hierarquia com base na apologia do diverso. Trata-se, contudo, de uma mera declaração de intenções, muito de aplaudir, por certo, mas sem qualquer viabilidade num plano de coerência. Para haver hierarquia é preciso o diverso, por isso nem se discute. Só que o diverso unicamente não basta, antes tem de ser submetido a um padrão unitário, em função do qual possa ser valorado, disciplinado e situado.
De resto, e em rigor, a diversidade não é uma noção subsistente por si, como não o é, também, a de pura unidade. Os elementos diversos apenas são diversos se puderem ser comparados, isto é, se houver relações que os liguem entre si e, portanto, os unifiquem. Por seu turno, a unidade não é uma mónada isolada e exclusivamente existe se abranger e incluir em si tudo o que for diverso (não acontecendo isto a unidade é, ela, um membro de uma pluralidade).
A ideia subsistente em si e por si é a de unidade na diversidade e de diversidade na unidade, ideia que, repelindo o absurdo igualitarismo (absurdo, visto ter de considerar os diversos idênticos, enquanto iguais, e não idênticos, enquanto diversos), não cai no excesso contrário, que é o abandono a toda a força centrífuga e dissociadora.
Essa unidade do diverso, que mantém a pluralidade dentro dos limites razoáveis e a faz dar vida a uma totalidade sem produzir a dissolução anárquica, é o que corresponde ao tradicional conceito de ordem, daquela ordem a que aludia Maurras quando proclamava a Igreja católica «L`Église de l`Ordre» e que não se confunde com a simples tranquilidade nas ruas. Semelhante conceito representa património clássico do que habitualmente se designa pelo termo de Direita. Não possui, com certeza, a marca de uma novidade acabada de chegar de Paris, mas julgamos preferível mantermo-nos aferrados a ele do que abandonarmo-nos, por amor de uma duvidosa originalidade e pelo gosto mórbido da inovação, a noções assaz confusas e de consequências lastimáveis.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 111, pág. 6, 27.07.1978)
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Num volume, aliás, cheio de interesse — Vu de Droite — Alain de Benoist procura definir o pensamento de Direita pelo repúdio do igualitarismo nivelador e pela apologia da diversidade.
Longe de nós a pretensão de caracterizar, aqui, exaustivamente, o pensamento da Direita. O que, todavia, cremos poder levar a cabo, é talvez afastar as caracterizações que se revelam insuficientes e inadequadas. E supomos que as notas que Alain de Benoist traz à colação são precisamente inaplicáveis às doutrinas imemorialmente consideradas de Direita.
Estas repelem, sem dúvida, o igualitarismo. Mas há mil maneiras de o fazer e o que interessa, de um ponto de vista analítico, é apontar de que forma e porquê é o igualitarismo repelido. Ora, pela nossa parte, não pensamos que a Direita o repudie por um amor desmedido e entusiasta da diversidade. O culto da diversidade significa o incremento de todos os antagonismos e incompatibilidades. A sua tendência limite está na anarquia, na guerra de todos contra todos de que tanto falava e preocupava Hobbes.
A diversidade, tomada como valor, aplica-se aos povos e aos indivíduos. Estes serão tanto mais diversos quanto mais se opuserem entre si. Oposição, porém, é sinónimo de mútua incompatibilidade, e mútua incompatibilidade de exclusão recíproca. Logo, o culto da diversidade só poderá encontrar satisfação na eliminação do diverso, pois que é isso que a exclusão recíproca de opostos exige.
Simplesmente com a eliminação do diverso ou, pelo menos, a redução a nada das diferenças mais acentuadas, está-se a destruir o culto da diversidade. Se este implica ou conduz, logicamente, àquela eliminação, nega-se a si próprio, é algo de inconcebível.
É incontestável que Alain de Benoist fala em estabelecer uma hierarquia com base na apologia do diverso. Trata-se, contudo, de uma mera declaração de intenções, muito de aplaudir, por certo, mas sem qualquer viabilidade num plano de coerência. Para haver hierarquia é preciso o diverso, por isso nem se discute. Só que o diverso unicamente não basta, antes tem de ser submetido a um padrão unitário, em função do qual possa ser valorado, disciplinado e situado.
De resto, e em rigor, a diversidade não é uma noção subsistente por si, como não o é, também, a de pura unidade. Os elementos diversos apenas são diversos se puderem ser comparados, isto é, se houver relações que os liguem entre si e, portanto, os unifiquem. Por seu turno, a unidade não é uma mónada isolada e exclusivamente existe se abranger e incluir em si tudo o que for diverso (não acontecendo isto a unidade é, ela, um membro de uma pluralidade).
A ideia subsistente em si e por si é a de unidade na diversidade e de diversidade na unidade, ideia que, repelindo o absurdo igualitarismo (absurdo, visto ter de considerar os diversos idênticos, enquanto iguais, e não idênticos, enquanto diversos), não cai no excesso contrário, que é o abandono a toda a força centrífuga e dissociadora.
Essa unidade do diverso, que mantém a pluralidade dentro dos limites razoáveis e a faz dar vida a uma totalidade sem produzir a dissolução anárquica, é o que corresponde ao tradicional conceito de ordem, daquela ordem a que aludia Maurras quando proclamava a Igreja católica «L`Église de l`Ordre» e que não se confunde com a simples tranquilidade nas ruas. Semelhante conceito representa património clássico do que habitualmente se designa pelo termo de Direita. Não possui, com certeza, a marca de uma novidade acabada de chegar de Paris, mas julgamos preferível mantermo-nos aferrados a ele do que abandonarmo-nos, por amor de uma duvidosa originalidade e pelo gosto mórbido da inovação, a noções assaz confusas e de consequências lastimáveis.
António José de Brito
(In «A Rua», n.º 111, pág. 6, 27.07.1978)
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quinta-feira, junho 23, 2005
Mais livros para ser mais livre
A formidável livraria europeia LIBRAD tem agora separados os seus serviços em linha: LIBRAD-FRANÇA e LIBRAD-ITÁLIA.
Vale bem uma pesquisa atenta pelas diversas áreas.
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Pensar para agir
Depois do importante artigo sobre "A busca de um modelo organizativo", pode ler-se novo ensaio sobre temática afim: "A necessidade de uma teoria sobre a organização".
Tudo em "InfoKrisis", ao serviço dos militantes: para recordar, com os sentimentos fazem-se revoltas, com o pensamento fazem-se revoluções.
É indispensável em Portugal ler estes estudos e meditá-los devidamente, tanto mais que poderiam perfeitamente ser feitos sobre a realidade portuguesa.
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Tudo em "InfoKrisis", ao serviço dos militantes: para recordar, com os sentimentos fazem-se revoltas, com o pensamento fazem-se revoluções.
É indispensável em Portugal ler estes estudos e meditá-los devidamente, tanto mais que poderiam perfeitamente ser feitos sobre a realidade portuguesa.
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O povo é quem mais ordena!
Queriam, não queriam?!!!
Pois sobre a aplicação actual do slogan abrileiro disserta o Batalha Final com a habitual acutilância e oportunidade.
Outras actualizações desta tarde, a não perder: o Absonante (força na blogação, arranja lá tempo para dizer o que te vai na alma!) e também no Aliança Nacional (o que arde cura, dizia o Pimenta...).
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Pois sobre a aplicação actual do slogan abrileiro disserta o Batalha Final com a habitual acutilância e oportunidade.
Outras actualizações desta tarde, a não perder: o Absonante (força na blogação, arranja lá tempo para dizer o que te vai na alma!) e também no Aliança Nacional (o que arde cura, dizia o Pimenta...).
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Apontamentos
Apanágio dos homens inteligentes é a capacidade de se autoanalisar, de se pôr em causa, de se questionar, de se interrogar.
Mesmo que isso implique rir dos próprios ridículos. Aliás, o humor é incompatível com a imbecilidade e o primarismo.
E esse exercício também devia alargar-se à política: ai dos que não sabem rir-se, reagindo sempre a tudo com a mesma carantonha exaltada e agressiva. Ai dos que não têm na cabeça mais do que os reflexos mentais da paranóia e da desconfiança, com histerismos de eterno ameaçado.
A direita também precisa disto: da capacidade de se ver ao espelho, e não apenas no retrato que de si mesma pinta em imaginação; da lucidez de se ver nos olhos dos outros, e não apenas com os seus próprios óculos já deformados pelo sectarismo.
Seguindo neste caminho, encontramos muito mais direitas do que o elenco descrito pelo "Santos da Casa". Umas com mais graça que outras, e outras sem graça nenhuma, como é o caso de certa direita patibular que está para a direita como o Zé Cabra está para a música.
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Mesmo que isso implique rir dos próprios ridículos. Aliás, o humor é incompatível com a imbecilidade e o primarismo.
E esse exercício também devia alargar-se à política: ai dos que não sabem rir-se, reagindo sempre a tudo com a mesma carantonha exaltada e agressiva. Ai dos que não têm na cabeça mais do que os reflexos mentais da paranóia e da desconfiança, com histerismos de eterno ameaçado.
A direita também precisa disto: da capacidade de se ver ao espelho, e não apenas no retrato que de si mesma pinta em imaginação; da lucidez de se ver nos olhos dos outros, e não apenas com os seus próprios óculos já deformados pelo sectarismo.
Seguindo neste caminho, encontramos muito mais direitas do que o elenco descrito pelo "Santos da Casa". Umas com mais graça que outras, e outras sem graça nenhuma, como é o caso de certa direita patibular que está para a direita como o Zé Cabra está para a música.
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quarta-feira, junho 22, 2005
QUANDO ESCREVER ERA PERIGOSO...
Tinha, precisamente, acabado de folhear o volume com este título (1) do sr. José de Magalhães Godinho — o volume que, à semelhança do seu autor, nada deve à inteligência — e, ao pousar distraidamente a vista num vespertino que alguém colocara a meu lado, os meus olhos esbarraram na notícia da prisão de Manuel Maria Múrias. Detido à saída de casa, fora conduzido à Cadeia Central de Linhó onde expiaria os seus terríficos e tremebundos crimes. Um justo castigo impendia sobre ele, que não é um terrorista, como Arafat, que, de pistola à cinta, foi recebido pelo Presidente Eanes, nem um assassino como Santiago Carrillo que o chamado rei de Espanha, o eminentíssimo Cardeal Tarancón e o ilustre Adolfo Suarez acolhem, de braços abertos, com ternas saudações.
Manuel Maria Múrias pensa mal e isso é muito mais grave do que fazer ir pelos ares ou abater a tiro burgueses e fascistas. Alguns epítetos enérgicos, dirigidos aos nossos novos amos, só, de facto, o cárcere os pode punir — enquanto não for restabelecida, para o efeito, a pena de morte.
Se, no tempo em que, segundo o sr. José Magalhães Godinho, escrever era perigoso, se tivesse passado facto análogo ao que a prisão de Manuel Maria Múrias consubstancia, quantas intermináveis tiradas de indignação se não teriam escutado, quantos infindáveis brados contra a tirania se não teriam ouvido. E, por certo, no trabalho daquele douto senhor, um capítulo especial seria consagrado ao episódio em questão, onde não faltariam os apodos ferozes e vingadores lançados contra o ditador e a sua justiça.
A democracia, no entanto, tem os seus privilégios. Aí tudo é diferente. O encarceramento de um jornalista, porque jornalista, pouca emoção despertou entre os plumitivos da nossa Imprensa, sempre prontos a erguer lanças pela livre expressão dos papúas ou pela dignidade humana dos Kamtchatka, mas assaz alheios, por vezes, ao que se passa portas adentro.
Àparte um ou outro protesto isolado e que dignifica que os subscreveu, um silêncio gélido foi a atmosfera que acolheu na Imprensa o enclausuramento de Manuel Maria Múrias.
Suponho que este se não admira e que, à semelhança do filósofo, quanto mais conhece os homens — muito particularmente os homens que se arvoram em defensores profissionais da liberdade — mais gosta dos cães.
Pode-se repelir a doutrina de um Estado autoritário, mas não há dúvida que ele está a ser coerente consigo próprio e que não engana ninguém ao tentar dirigir a opinião pública e procurar eliminar os ataques que ponham em causa a sua política. Que dizer, porém, do procedimento dos governantes de um Estado democrático que clamam as excelências das confrontações ideológicas, excelsam a formidável bondade da existência de oposições, e, depois disso, colocam, com naturalidade, detrás das grades quem os hostiliza com maior ou menor veemência?
Quando escrever era perigoso, havia censura, uma clara e franca censura, mas não se usavam os métodos tortuosos, disfarçados, vis, que hoje se empregam para silenciar, em nome da tolerância, os que discordam do regime e dos seus próceres. E o certo é que, nesses ominosos tempos, que o sr. José de Magalhães Godinho condena com virtuosa indignação, não se chegou nunca a passar o que actualmente sucedeu e sucede com Vera Lagoa e Manuel Múrias, para só referir os casos mais gritantes. Eles são autenticamente afogados, submergidos com processos, alguns de fundamento ultra-ridículo. E o dilema acaba por surgir-lhes à mente: ou calar-se ou caminhar para o cárcere.
Manuel Múrias decidiu, uma vez por todas, que só se o amordaçassem é que deixaria de erguer o seu protesto solene contra a clique sinistra que nos desgoverna, após ter reduzido Portugal a um insignificante rectângulo da Península. Nesta conturbada época, têm saído da sua pena algumas páginas mestras de polémica, desde os artigos do "Bandarra", aos fundos de "A Rua", passando pelos escritos que inseriu na "Resistência", mal se libertou das grilhetas gonçalvistas.
Ele paga, agora, nesta nossa democracia - que é sinónimo de hipocrisia — o preço da sua coragem e do seu desassombro.
Sim, todos somos livres de afirmar o que entendemos, só que — pequenos pormenores - nem podemos discordar dos dogmas reinantes (aí está a lei celerada para nos manter na ortodoxia), nem criticar a sério a classe política dominante (aí temos vigilante o sr. Procurador-Geral da República).
Claro que, no tocante a este último, há nuances. Que, no "Diário", se injurie o sr. Sá Carneiro não comove por aí além o sr. Procurador. Que se toque, todavia, com um adjectivo mais rude nos heróicos Conselheiros da Revolução, que travavam batalhas famosas debaixo das Berliets ou no Presidente da República, que condecora romancistas (2), não só inimigos de Portugal, (o que se compreende porque aos inimigos de Portugal nunca ele se recusou a abraçá-los e a acarinhá-los), mas até inimigos dos pobres e humildes portugueses que, perdidos os bens adquiridos em Angola à custa do suor do seu rosto, para evitar a morte, buscaram refúgio no Brasil, onde chegaram com a camisa no corpo — e já o sr. Procurador não tem mais mão em si e brande, com dureza, os fulminantes raios da sua cólera.
Quando escrever era perigoso... Bons tempos esses! Perigoso é, actualmente, empunhar uma caneta e ter a veleidade de ser independente e patriota. Que o diga Manuel Múrias, a gozar no Linhó as benesses do pluralismo democrático.
António José de Brito
Notas:
1 - O título exacto é «Quando falar e escrever era perigoso».
2 - Aludimos ao sr. Jorge Amado, por cujo talento literário temos, aliás, a maior admiração. Só que o sr. general Ramalho Eanes não tem nem a envergadura intelectual nem a função constitucional de crítico literário e, na qualidade de Chefe de Estado e até de simples homem, não deveria esquecer as frases odiosas que o sr. Jorge Amado publicou a propósito dos refugiados de Angola que, nas mais trágicas circunstâncias, buscaram abrigo no Brasil. Tais frases estão transcritas em "O Diabo" de 26 de Fevereiro, mas já o sr. Adriano Moreira a elas se referira num dos seus recentes livros.
(In «A Rua», n.º 196, pág. 3, 13.03.1980)
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Manuel Maria Múrias pensa mal e isso é muito mais grave do que fazer ir pelos ares ou abater a tiro burgueses e fascistas. Alguns epítetos enérgicos, dirigidos aos nossos novos amos, só, de facto, o cárcere os pode punir — enquanto não for restabelecida, para o efeito, a pena de morte.
Se, no tempo em que, segundo o sr. José Magalhães Godinho, escrever era perigoso, se tivesse passado facto análogo ao que a prisão de Manuel Maria Múrias consubstancia, quantas intermináveis tiradas de indignação se não teriam escutado, quantos infindáveis brados contra a tirania se não teriam ouvido. E, por certo, no trabalho daquele douto senhor, um capítulo especial seria consagrado ao episódio em questão, onde não faltariam os apodos ferozes e vingadores lançados contra o ditador e a sua justiça.
A democracia, no entanto, tem os seus privilégios. Aí tudo é diferente. O encarceramento de um jornalista, porque jornalista, pouca emoção despertou entre os plumitivos da nossa Imprensa, sempre prontos a erguer lanças pela livre expressão dos papúas ou pela dignidade humana dos Kamtchatka, mas assaz alheios, por vezes, ao que se passa portas adentro.
Àparte um ou outro protesto isolado e que dignifica que os subscreveu, um silêncio gélido foi a atmosfera que acolheu na Imprensa o enclausuramento de Manuel Maria Múrias.
Suponho que este se não admira e que, à semelhança do filósofo, quanto mais conhece os homens — muito particularmente os homens que se arvoram em defensores profissionais da liberdade — mais gosta dos cães.
Pode-se repelir a doutrina de um Estado autoritário, mas não há dúvida que ele está a ser coerente consigo próprio e que não engana ninguém ao tentar dirigir a opinião pública e procurar eliminar os ataques que ponham em causa a sua política. Que dizer, porém, do procedimento dos governantes de um Estado democrático que clamam as excelências das confrontações ideológicas, excelsam a formidável bondade da existência de oposições, e, depois disso, colocam, com naturalidade, detrás das grades quem os hostiliza com maior ou menor veemência?
Quando escrever era perigoso, havia censura, uma clara e franca censura, mas não se usavam os métodos tortuosos, disfarçados, vis, que hoje se empregam para silenciar, em nome da tolerância, os que discordam do regime e dos seus próceres. E o certo é que, nesses ominosos tempos, que o sr. José de Magalhães Godinho condena com virtuosa indignação, não se chegou nunca a passar o que actualmente sucedeu e sucede com Vera Lagoa e Manuel Múrias, para só referir os casos mais gritantes. Eles são autenticamente afogados, submergidos com processos, alguns de fundamento ultra-ridículo. E o dilema acaba por surgir-lhes à mente: ou calar-se ou caminhar para o cárcere.
Manuel Múrias decidiu, uma vez por todas, que só se o amordaçassem é que deixaria de erguer o seu protesto solene contra a clique sinistra que nos desgoverna, após ter reduzido Portugal a um insignificante rectângulo da Península. Nesta conturbada época, têm saído da sua pena algumas páginas mestras de polémica, desde os artigos do "Bandarra", aos fundos de "A Rua", passando pelos escritos que inseriu na "Resistência", mal se libertou das grilhetas gonçalvistas.
Ele paga, agora, nesta nossa democracia - que é sinónimo de hipocrisia — o preço da sua coragem e do seu desassombro.
Sim, todos somos livres de afirmar o que entendemos, só que — pequenos pormenores - nem podemos discordar dos dogmas reinantes (aí está a lei celerada para nos manter na ortodoxia), nem criticar a sério a classe política dominante (aí temos vigilante o sr. Procurador-Geral da República).
Claro que, no tocante a este último, há nuances. Que, no "Diário", se injurie o sr. Sá Carneiro não comove por aí além o sr. Procurador. Que se toque, todavia, com um adjectivo mais rude nos heróicos Conselheiros da Revolução, que travavam batalhas famosas debaixo das Berliets ou no Presidente da República, que condecora romancistas (2), não só inimigos de Portugal, (o que se compreende porque aos inimigos de Portugal nunca ele se recusou a abraçá-los e a acarinhá-los), mas até inimigos dos pobres e humildes portugueses que, perdidos os bens adquiridos em Angola à custa do suor do seu rosto, para evitar a morte, buscaram refúgio no Brasil, onde chegaram com a camisa no corpo — e já o sr. Procurador não tem mais mão em si e brande, com dureza, os fulminantes raios da sua cólera.
Quando escrever era perigoso... Bons tempos esses! Perigoso é, actualmente, empunhar uma caneta e ter a veleidade de ser independente e patriota. Que o diga Manuel Múrias, a gozar no Linhó as benesses do pluralismo democrático.
António José de Brito
Notas:
1 - O título exacto é «Quando falar e escrever era perigoso».
2 - Aludimos ao sr. Jorge Amado, por cujo talento literário temos, aliás, a maior admiração. Só que o sr. general Ramalho Eanes não tem nem a envergadura intelectual nem a função constitucional de crítico literário e, na qualidade de Chefe de Estado e até de simples homem, não deveria esquecer as frases odiosas que o sr. Jorge Amado publicou a propósito dos refugiados de Angola que, nas mais trágicas circunstâncias, buscaram abrigo no Brasil. Tais frases estão transcritas em "O Diabo" de 26 de Fevereiro, mas já o sr. Adriano Moreira a elas se referira num dos seus recentes livros.
(In «A Rua», n.º 196, pág. 3, 13.03.1980)
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